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segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

A morte e a morte de Quincas Berro D'água

Caso Especial (Rede Globo, 1978). Direção: Walter Avancini; Música: Dori Caymmi; Elenco: Paulo Gracindo, Dionísio Azevedo, Dina Sfat, Flávio Migliaccio, Ana Maria Magalhães, Stênio Garcia, Antônio Pitanga.

Lançado em 1961 com amplo acolhimento de leitores e críticos, a novela A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água tornou-se uma das obras de Jorge amado mais festejadas, editadas e adaptadas para o cinema e a televisão. Em artigo escrito para o jornal Última Hora, do Rio de Janeiro, em 1959, que passou acompanhar a título de prefácio as seguidas reedições, Vinicius de Moraes considera-a uma obra prima do autor: “Em dois tentos simples, Jorge Amado acaba de escrever o que para mim é o melhor romance e a melhor novela da literatura brasileira: Gabriela, cravo e canela e A morte e a morte de Quincas Berro D’água”.
Filme (2010) Direção: Sérgio Machado; Roteiro: Sérgio Machado; Produtor: Mauricio Andrade Ramos e Walter Salles. ELENCO: Paulo José (Quincas); Luis Miranda (Pé de Vento); Frank Menezes (Curió); Flavio Bauraqui (Pastinha); Irandhir Santos (Cabo Martim); Marieta Severo (Manoela); Mariana Ximenes (Vanda); Vladmir Britcha (Leonardo); Walderez De Barros (Tia Marisa); Milton Gonçalves (Delegado Morais); Othon Bastos (Alonso).

Nessa novela curta, o autor articula a natureza popular das personagens com um enredo à beira do fantástico e uma linguagem enxuta, porém ambígua, agradável e leve. Nela, o previsível funcionário público Joaquim Soares da Cunha, marido, pai e cidadão cumpridor de seu papel social de burocrata estabilizado na sociedade, aos cinquenta anos joga tudo para alto, se entrega à boêmia e passa à perambulação, ébrio e em andrajos, pelas ruas da Bahia. Numa das bebedeiras, ganha o apelido que o acompanhará além da morte:  Quincas Berro D’água. A novela se inicia com seu cadáver em farrapos já estendido em um quarto insalubre de um beco baiano.

 Mesa do seminário comemorativo dos 100 anos de Jorge Amado, em 2012.

Na morte de Quincas, os parentes enxergam a oportunidade de resgatar no meio social o nome da família, maculado por suas orgias e por sua vida escandalosa. Para tanto, organizam um funeral à altura de um verdadeiro e honrado um ex-funcionário público.

No entanto, visitado em seu velório por antigos amigos de fuzarca (Curió, Negro Pastinha, Cabo Martim e Pé de Vento), que veem no ricto  estampado no rosto do cadáver um sorriso folia, Quincas termina sequestrado por eles e arrastado pelas ruas da Bahia em uma espécie de despedida gloriosa, hilária e pândega do mundo dos vivos.
A confusão se instaura, pois enquanto uns o juram morto, outros o veem passeando de braços dados com os companheiros de boêmia, entre gargalhadas e cusparadas de cachaça. A esbórnia se encerra no barco de Mestre Manuel, onde os amigos cumprem a suposta vontade do morto, levando-o em festa em pleno mar, ocasião em que um violento temporal se abate sobre o barco e encapela as águas, para onde o debochado Quincas resvala para sempre, enterrando no mar, consigo, a chance de a família ajustar contas com o falso verniz da sociedade.

Nesse destino de Quincas Berro D’água há uma certa metáfora do projeto literário do próprio Jorge Amado, que, à literatura enfatiotada e blasé, que sempre combateu, preferiu os personagens populares, os enredos apoiados na realidade dos trabalhadores e a crítica social – em que o humor se foi insinuando progressivamente ao longo da carreira do autor.

Referências bibliográficas

Amado, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro d’Água. In Os velhos marinheiros (o romance O capitão de longo curso), São Paulo: Martins, 1961.
Duarte, Eduardo Assis. Jorge Amado: romance em tempo de utopia. Natal: UFRN-Editora Universitária, 1995.
Gomes, Álvaro Cardoso. Jorge Amado. 2 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
Itazil Benício. Jorge Amado: retrato incompleto. Rio de Janeiro: Record, 1993.
Lafuente, Fernando Rodrigues (Coord.). Jorge Amado. Madri, Instituto de Cooperación Iberoamericana. 1987.
Martins, João de Barros. Jorge Amado: trinta anos de literatura. Rio de Janeiro, Record, 1993.
Raillard, Alice. Conversando com Jorge Amado.Trad. Annie Dymetaman. Rio de Janeiro, Record, 1991.
Táti, Miécio. Jorge Amado, vida e obra. Belo Horizonte, Itatiaia, 1961.
_________ O baiano Jorge Amado e sua obra. Rio de Janeiro, Record, 1980.
Tavares, Paulo. Criaturas de Jorge Amado. Dicionário de todos os personagens imaginários.... São Paulo, Livraria Martins Editora, s. d.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

SEARA VERMELHA: Uma seara que resiste ao tempo – Parte 7


Este artigo, capítulo de minha tese de doutorado na Universidade de São Paulo, foi publicado na íntegra no encarte da revista Princípios, quando da comemoração dos 100 anos de nascimento de Jorge Amado.  Hoje, a sétima e última parte.

A linguagem do romance, situada entre o padrão culto informal, mais identificada com o narrador, e o popular-regional, mais identificado com as personagens centrais do enredo significa maior eficiência comunicativa em relação a um leitor não especializado, que o autor deliberadamente logrou incorporar ao universo de leitores.

Obviamente, organizar  em torno e a partir da literatura um público jovem e adulto antes alheio a ela não se faz sem que se empreguem esquemas introdutórios e mesmo facilitadores de leitura, tais comoclichês, repetições, redundâncias, desenvolvimentos lineares, reduções interpretativas, entre outros.

Em Seara vermelha esses recursos, voltados à intenção de transformação do leitor em militante, se dão como verdadeiro manual de doutrina política. Hoje, muitas restrições podem ser feitas, e o são, a essa poética e a esse estilo, porém, não se pode negar que eles já foram largamente apreciados pelas mesmas razões que hoje são apontadas como defeitos.

Se lembrarmos que a Semana de Arte Moderna foi organizada para despir a linguagem artística do fraque e cartola em que estava vestida, seremos obrigados a reconhecer, para além do sucesso de público, a importância de Jorge Amado em aproximar o espetáculo das palavras do homem comum, enquanto tema, enquanto personagem e enquanto endereçamento de discurso.

A verdade é que Jorge Amado jamais dirigiu-se à elite letrada: sua preocupação foi sempre escrever sobre o povo e para o povo, que nunca é o que as classes cultas, ai delas, desejam que ele seja.
Seara vermelha acrescenta a essa desconformidade à do registro literário de um estágio do pensamento e das práticas sociais revolucionárias da primeira metade do século XX brasileiro, de que o autor foi protagonista, em seus desacertos, mas também em seus momentos gloriosos.

Os caminhos da permanência de uma obra literária são quase sempre insondáveis. É o caso de perguntar como uma obra tão perseguida, queimada na fogueira, proscrita, acusada como vulgar e mesmo sem valor, resiste ao tempo, às objeções e permanece.
Talvez Jorge Amado tenha escutado, ao aproximar seu ouvido do coração povo, algo que parte de nossa crítica, tão subalterna em face de modelos importados, não tenha sido até hoje capaz – se é que um dia o será.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Almeida, Alfredo W. Berno de. Jorge Amado: política e literatura. Rio de Janeiro, Campus, 1979.
Bastide, Roger; Táti, Miécio et alii. Jorge Amado, povo e terra. São Paulo, Martins, 1972.
Carone, Edgar. O PCB. São Paulo, Difel, 1982.
Duarte, Eduardo Assis. Jorge Amado: romance em tempo de utopia. Natal, UFRN-Editora Universitária. 1995.
Gomes, Álvaro Cardoso. Jorge Amado. 2 ed. São Paulo, Nova Cultural, 1988.
___________.Roteiro de leitura: Capitães de Areia, de Jorge Amado.São Paulo, Ática, 1996.
Konder, Leandro. A derrota da dialética: a recepção das idéias de Marx até o começo dos anos 30. Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1988.
___________.Intelectuais brasileiros e marxismo. Belo Horizonte, Ofina de Livros, 1991.
Martins, João de Barros. Jorge Amado: trinta anos de literatura. Rio de Janeiro, Record, 1993.
Raillard, Alice. Conversando com Jorge Amado.Trad. Annie Dymetaman. Rio de Janeiro, Record, 1991.
Rubin, Rosane; Carneiro, Maciel. Jorge Amado: oitenta anos de vida e obra. Salvador, Casa da Palavra, 1992.
Santos, Itazil Benício. Jorge Amado: retrato incompleto. Rio de Janeiro, Record, 1993.
Táti, Miécio.O baiano Jorge Amado e sua obra. Rio de Janeiro, Record, 1980.


terça-feira, 29 de janeiro de 2013

SEARA VERMELHA: Uma seara que resiste ao tempo – Parte 6



Este artigo, capítulo de minha tese de doutorado na Universidade de São Paulo, foi publicado na íntegra no encarte da revista Princípios, quando da comemoração dos 100 anos de nascimento de Jorge Amado.  Hoje, a sexta parte.


A cruzar o enredo linear e os planos narrativos de Seara vermelha, as repetições vão ecoando nas diversas vozes e nos planos narrativos: o narrador denuncia a associação entre alienação-messianismo-cangaço-latifúndio e essa denúncia vai se repetindo nas vozes das personagens e se concretizando na forma de cenas. O mesmo ocorre em relação a inúmeros outros enunciados, desde os relativos às premonições de Zefa até as enfáticas descrições sensuais de Marta e de Gertrudes.

Aqui, as repetições e redundâncias cumprem funções estruturais: estabelecem vínculos e identidades entre personagens, movem a máquina do enredo, com a ressalva de que têm também funções pedagógico-literárias e pedagógico-políticas,  que tem valido a esse romance uma dupla acusação: a de populismo literário e a de populismo político.

Sobre esse particular, Alfredo Bosi, em seu História concisa da literatura brasileira, assim discorre:

Cronista de tensão mínima, soube expressar largos painéis coloridos e facilmente comunicáveis que lhe franqueariam um grande e nunca desmentido êxito junto ao público. Ao leitor curioso e glutão a sua obra tem dado de tudo um pouco: pieguice e volúpia em vez de paixão, estereótipos em vez de trato orgânico dos conflitos sociais, pitoresco em vez de captação estética do meio, tipos “folclóricos” em vês de pessoas, descuido formal a pretexto da oralidade... Além do uso às vezes imotivado do calão: o que é, na cabeça do intelectual burguês, a imagem do eros do povo. O populismo literário deu uma mistura de equívocos, e o maior deles será por certo o de passar por arte revolucionária. No caso de Jorge Amado, porém, bastou a passagem do tempo para desfazer o engano”. (Bosi, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo, Cultrix, 1975, p. 456-457)

Aqui, em que pese o grande intelectual que é Alfredo Bosi e o peso de suas palavras nos meios acadêmicos, tudo indica que seu juízo crítico, afetado seguramente por indisposições subjetivas, periclitou, uma vez que a obra do escritor soteropolitano não cessa de ser reafirmada junto ao público e a consideráveis setores da crítica.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

SEARA VERMELHA: Uma seara que resiste ao tempo – Parte 5

Este artigo, capítulo de minha tese de doutorado na Universidade de São Paulo, foi publicado na íntegra no encarte da revista Princípios (out/nov 2012), quando da comemoração dos 100 anos de nascimento de Jorge Amado.  Hoje, a quinta parte.

Não por acaso cangaço, messianismo e loucura são associados tão diretamente: as personagens que os representam são identificadas com a alienação, nível mais baixo da pirâmide simbólica criada pelo autor para representar os estágios de consciência de classe.

E também não é casual a ordem cronológica adotada para representar os eventos. À medida que a leitura avança pelas páginas, o leitor vai sendo conduzido sem tropeços pelo narrador pela rede de eventos até entregá-lo, são e salvo, à porta do comitê do PCB ao final do volume.

Durante essa aventura simbólica o leitor assiste às injustiças contra os inocentes, à penúria dos retirantes, aos insucessos e trapaças dos inimigos de classe, aos desvarios do cangaço e do messianismo, à violência contra os revolucionários etc.

E toda essa via crucis a que o leitorassiste tem a função de ensiná-lo que o acúmulo de quantidade resulta em salto de qualidade, noutras palavras, que quantidades dessas experiências dolorosas levam irremediavelmente à luta de emancipação (o salto de qualidade), nos moldes dos versos de Castro Alves que servem de epígrafe inicial do livro:

Cai, orvalho do sangue do escravo,
Cai, orvalho na face do algoz.
Cresce, cresce, seara vermelha,
Cresce, cresce, vingança feroz...
(Amado, Jorge. Seara vermelha. 46 ed. Rio de Janeiro, Record,  p. 274).


Assim,tanto a estrutura hierarquizada dos planos narrativos– e no interior de cada um deles as personagens  – quanto a ordem cronológica linear contam em favor dos revolucionários: de baixo para cima da pirâmide de entes narrativos vai-se em direção à consciência revolucionária, cujo representante máximo é o próprio narrador; e do início ao fim do romance, em avanços cronológicos, vai-se em direção da revolução democrático-burguesa, cujo representante concreto no enredo é Neném, elo entre o enredo e uma da epígrafes iniciais do livro, assinada por Luís Carlos Prestes:

... está no latifúndio, na má distribuição da propriedade territorial, no monopólio da terra, a causa fundamental do atraso, da miséria e da ignorância do nosso povo.
Seara vermelha centra seu enredo numa família de flagelados da seca, expulsa da terra e forçada a cruzar a caatinga a pé . A família sofre baixas na travessia, se desmembra, mas não se extingue e atinge seu objetivo:
O trem resfolegava. A máquina começou a andar, vagarosa ainda. Aumentou a velocidade, Gregório saltara. Jucundina levantou-se então, afastou a mão de Jerônimo que a segurava, jogou-se para a janela. Jerônimo levantou-se também para obrigá-la a sentar-se. Mas em vez de fazê-lo debruçou-se sobre ela a tempo de ver ainda, no canto da estação, de vestido vermelho, a figura de Marta acenando com a mão. O trem apitava na curva. (Idem. O trem-14, p. 190).

Embora linear , o enredo assume forma de espiral quando Neném, ao final do romance, num tempo ficcional posterior, retorna à caatinga para realizar sua pregação revolucionária e para dar início a uma nova história, situada além do desfecho do romance.

*     *     *
Seara Vermelha, o filme (1964), por Rubens Ewald Filho:

Adaptação de um livro um pouco esquecido, sobre família que tem que se mudar para cidade grande e sua destruição. Embora este filme não seja reprisado, nem esteja disponível, nunca consegue esquecer desta adaptação do italiano Alberto D´Aversa (1920-69), importante professor e diretor de teatro. Nem da cena final nunca vista: quando a heroína enojada (Esther Mellinger) jogava uma cusparada bem na lente da câmera. Com Sadi Cabral, Fregolente, Margarida Cardoso.




sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

SEARA VERMELHA: Uma seara que resiste ao tempo – Parte 4


Este artigo, capítulo de minha tese de doutorado na Universidade de São Paulo, foi publicado na íntegra no encarte da revista Princípios, quando dacomemoração dos 100 anos de nascimento de Jorge Amado.  Hoje, a quarta parte.

O camponês banido da terra e tornado retirante, o militar que se torna revolucionário, a prostituta, o cangaceiro, o fanático religioso, o capataz a serviço do latifúndio, o fazendeiro, o político corrupto etc. são agentes sociais entendidos pelo autor como participantes da luta de classes e concretizados no enunciado na forma de personagens.

O distanciamento progressivo entre Artur e os trabalhadores da fazenda não é apenas um evento a mover o enredo, mas uma metáfora da traição de classe, do mesmo modo que a adesão de Juvêncio ao comunismo é não apenas mais uma solução narrativa, mas convocação para que o leitor, levado a assumir posição no esquema traçado pelo narrador, proceda de igual modo.

O sentido das associações e divórcios entre narrador e personagens é tão declaradamente assumido que até mesmo vísceras das disputas intestinas do movimento comunista são expostas um tanto gratuita, simplória e memso sectariamente:

– Trotskista e policial é a mesma coisa... – resumia o sapateiro, rasgando as últimas páginas do livro condenado./ Na cadeia, muito depois, Juvêncio teria tempo para ler e ter sua opinião sobre os trotskistas – tão arraigada nele devido à paixão com que o sapateiro falara – iria se reforçar diante das provas e dos fatos (Amado, Jorge. Seara vermelha. 46 ed. Rio de Janeiro, Record,  p. 274).

E o são para que o leitor, levado pelo narrador a associar-se ao ponto de vista de Juvêncio, posicione-se na vida real tal como a personagem se posicionou na cadeia, ante a rixa entre stalinistas e trotskistas.
Em Seara vermelha, tanto quanto a posição ocupada pelo narrador onipotente e onipresente, todo o projeto literário subjacente reflete esse comunismo de época de que Jorge Amado foi tão partidário.

O personalismo dos grandes retratos do dirigente partidário máximo pendurados nas paredes dos comitês tem sua contrapartida, nesse romance, no destaque dado ao narrador sabe-tudo e nas alusões elogiosas a militantes de destaque, em cujos registros de fala o paternalismo é percebido indisfarçavelmente.

Em tudo a estrutura de Seara vermelha alude à maneira particular pela qual o PCB procurava se organizar segundo o princípio do centralismo democrático, entendido de modo bastante particular: no plano narrativo superior está o narrador, assim como no Comitê Central estava o Secretário Geral do Partido.

O dirigismo bastante criticado no comunismo de então é irmão gêmeo dos procedimentos da efabulação desse romance, que é como aquele dedo do dirigente a apontar o rumo certo das ações.

A confirmar essa hierarquização rígida dos planos narrativos, reflexo mais de pensamento cartesiano e hieraquizador do que dialético, os entes ficcionais funcionam como uma pirâmide de pavimentos, no topo da qual vai o narrador, seguido logo abaixo pelas personagens representativas dos revolucionários, sob os quais vão, por sua vez, outros tantos empilhados, representações dos variados graus de consciência de classe, do inferior ao superior.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

SEARA VERMELHA: Uma seara que resiste ao tempo – Parte 3


Este artigo, capítulo de minha tese de doutorado na Universidade de São Paulo, foi publicado na íntegra no encarte da revista Princípios, quando dacomemoração dos 100 anos de nascimento de Jorge Amado.  Hoje, a terceira parte.

A legalização do PCB e seu vertiginoso crescimento no imediato pós-II Guerra criou em torno de suas teses uma aura de respeito e confiança que empolgou uma grande parcela da intelectualidade. Para um Jorge Amado tantas vezes perseguido por sua corajosa literatura fiel ao PCB, nada mais coerente do que, nesse curto período de legalidade democrática, continuar a fazer em condições favoráveis e de maneira ainda mais desassombrada o que fizera em condições extremamente adversas.

É por isso que, no centro dos conflitos representados pelo romance, está a luta entre camponeses e latifundiários, e é também por isso que Neném, ao final dele, retorna à terra em que nasceu: concretização da consciência do narrador na forma de personagem, ele vai sublevar os camponeses, coluna mestra da primeira etapa da revolução brasileira, segundo o pensamento do PCB da época. Pode-se se objetar hoje sobre o grau de acerto do Partido e do ficcionista – o primeiro em razão das teses, o segundo em razão da adesão incondicional a elas – porém, jamais sobre a generosidade e a coragem de ambos que, mesmo quando erraram foram, num sentido moral, ético e humano, grandes.

O pendor radicalmente partidário a que em nenhum momento Seara vermelha se furta está na base das simpatias e antipatias entre o narrador e as personagens.

Representações estilizadas de classes sociais ou de setores de classes, as personagens são retratadas de modo a conquistar o leitor para a causa política defendida pelo narrador,do que deriva a crítica ácida de setores acadêmicos, para os quais esse é um dos mais panfletários romances da obra de Jorge Amado e da literatura brasileira.

Desde o início do romance, quando o capataz Artur vai sendo diferenciado e distanciado do conjunto de trabalhadores, até o final, quando Neném volta ao sertão baiano e reecontra Militão, as aproximações e distanciamentos funcionam como metáforas da luta de classes nos moldes entendidos pelo PCB de então, e talvez o esquematismo dessas associações e dissociações se deve menos às técnicas composicionais empregadas pelo autor e mais ao pensamento partidário que subjaz a elas. 

Porém, há aqui um grande mérito de Jorge Amado, para quem a história e a sociedade são placenta legítima de a criação literária: nesse e em seus demais romances militantes está registrada uma forma de pensar do movimento revolucionário de época, que, nem por ser hoje objeto de críticas, deve ser ignorado ou escamoteado.

*     *     *


Seara Vermelha, o filme (1964), por Rubens Ewald Filho:

Adaptação de um livro um pouco esquecido, sobre família que tem que se mudar para cidade grande e sua destruição. Embora este filme não seja reprisado, nem esteja disponível, nunca consegue esquecer desta adaptação do italiano Alberto D´Aversa (1920-69), importante professor e diretor de teatro. Nem da cena final nunca vista: quando a heroína enojada (Esther Mellinger) jogava uma cusparada bem na lente da câmera. Com Sadi Cabral, Fregolente, Margarida Cardoso.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

SEARA VERMELHA: Uma seara que resiste ao tempo – Parte 2


Este artigo, capítulo de minha tese de doutorado na Universidade de São Paulo, foi publicado na íntegra no encarte da revista Princípios, quando da comemoração dos 100 anos de nascimento de Jorge Amado.  Hoje, a segunda parte.

Fixado de uma vez para sempre num ponto de vista imóvel, a posteriori e acima, esse narrador, que dá por verdade uma verdade, a sua verdade,  segrega os opostos dialéticos acreditando confrontá-los, e entende essa segregação como síntese da luta entre contrários.

Assim, cangaço e revolução não podem coexistir numa só personagem, Jucundina segue um caminho de aprendizagem cumulativo e sem recuos, a ação revolucionária de Neném resulta necessariamente na filiação sem conflitos de Tonho ao Partido Comunista do Brasil.

Esse narrador criado por Jorge Amado apresenta-se, pois, despido de contradições, o que para a dialética é não uma contradição, mas um contra-senso, uma vez que se para ela o desenvolvimento social decorre da luta de classes, o desenvolvimento das idéias decorre da luta de idéias, à qual é inerente a contradição.
Jorge Amado foi deputado pelo Partido Comunista do Brasil em 1946, ano de publicação de Seara vermelha.

Esse romance, representativo de um alto grau de partidarização de sua obra e seu narrador, é efetivamente ficcionalização de um comunismo brasileiro de época, que se teve em Luís Carlos Prestes, no campo da política, seu principal expoente – não é a toa que, além de a João Amazonas, o livro seja dedicado a ele –, teve em Jorge Amado, no campo literário, seu mais assumido e desassombrado representante, para o bem e para o mal.

Para esse comunismo de época – aparentemente muito harmônico mas que explodirá em contradições com a morte de Stalin e com o posterior XX Congresso do PCUS, na URSS –, a dialética assume feições de panaceia, cujo domínio “seguro” levaria a pensamentos em perfeita harmonia com a realidade. Não se está aqui, a bem da verdade, muito longe de Descartes –e de um certo determinismo adaptado às necessidades de um raciocínio político um entre voluntarista e messiânico.

Tratado como escritor oficial do Partido, Jorge Amado procurou dar ao leitor não apenas sua versão sobre a revolta de 1935, mas também e principalmente representar na forma de romance o diagnóstico de época do próprio Partido sobre as causas das mazelas sociais do Brasil de então, bom como sua proposta de ação revolucionária.

Para o Partido Comunista do Brasil (PCB) do período, a revolução brasileira respeitaria a duas etapas, uma antilatifundiária e democrático-burguesa, pelo fato de as estruturas fundiárias predominantes serem – de acordo com o mesmo PCB – de caráter feudal, e outra socialista, sendo que a segunda só seria alcançada após a efetivação da primeira, que estaria na ordem do dia.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

SEARA VERMELHA: Uma seara que resiste ao tempo – Parte 1


Este artigo, capítulo de minha tese de doutorado na Universidade de São Paulo, foi publicado na íntegra no encarte da revista Princípios, quando da comemoração dos 100 anos de nascimento de Jorge Amado. Neste blog, será publicado em partes, a partir de hoje.

Em Seara vermelha, de 1946, segundo livro de Jorge Amado mais lido no estrangeiro, simultaneamente dedicado a Luís Carlos Prestes e João Amazonas, entre outros,coerente com seu projeto literário, o autor optou por uma narrativa organizada de modo bastante convencional sem maiores subversões de linguagem. 

Nela o tempo respeita a ordem cronológica e os planos narrativos, assim como as personagem, são estruturados hierarquicamente, como numa metáfora das relações sociais em seu desenvolvimento histórico.
Nessa hierarquia rígida, é do narrador de terceira pessoa que emanam todos os enunciados através dos quais o enredo se desenvolve e as personagens, em discurso direto, falam, e à posição privilegiada e onipresente desse narrador se associa ainda um tom sentencioso que confere a seu discurso uma significativa ilusão de onipotência e objetividade.

O narrador de Seara vermelha ocupa posição central nesse romance: tudo ouve, tudo vê e prevê, tudo sabe e tudo explica. Dado ao leitor pelo autor como metáfora da consciência revolucionária da época, seu partidarismo, estrito senso, faz com que as personagens funcionem como caixa de ressonância de sua voz intensamente ideologizada.

Foco que mobiliza toda a engrenagem narrativa de Seara vermelha, a voz do narrador se oferece ao leitor como registro de uma supra-consciência no interior da qual os fatos, as experiências e as outras consciências representadas pelas personagens se refletem e ganham sentido.

Situada hipoteticamente num momento posterior àquele relatado, essa “supra-consciência”, sob o disfarce de um raciocínio aparentemente dedutivo, conduz unidirecionalmente a narrativa a soluções confirmadoras de seu ponto de vista.

Disso resulta que o leitor, crente de estar “pensando junto” com o narrador, na realidade está sendo induzido inapelavelmente a aderir a um ponto de vista, a uma percepção do mundo, a um partido.

A aparência de verdade que todas as coisas assumem na voz desse narrador é, assim,  mais que busca de representação da realidade, estratégia de convencimento bem urdida, na qual personagens e fatos, sob o manto diáfano da narração, se constituem em elementos de apoio à sustentação argumentativa – motivo pelo qual esse e outros romances de Jorge Amado de igual feitio têm sido apontados como romances de tese.

Os efeitos de integridade, coesão e coerência de Seara vermelha se devem em grande medida ao tipo de narrador criado por Jorge Amado, que articula categorias da dialética, sem dúvida, porém, de forma um tanto mecânica, por mais contraditório que isso pareça.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Jorge Amado, o nosso capitão de areia


Artigo para a revista PRINCÍPIOS, Outubro de 2012, escrito a partir de dois outros, já publicados neste blog e na obra Entre Livros (São Paulo, Plêiade, 2012.)

No centenário do nascimento de Jorge Amado, um romance significativo de sua obra, Capitães de Areia, cuja primeira edição foi incinerada pela ditadura do Estado Novo, em 1937, continua a assombrar mentalidades reacionárias, atormentadas por um fantasma que ameaça seu mundo: a justiça social.





No ano de 2009 tive a honra de defender Jorge Amado junto ao Ministério Público do Estado de São Paulo. Este, como Carlos Gardel –  que depois de morto canta cada vez melhor –, continua atazanando as consciências culpadas das elites paulistas egressas da revolução de 32.

Setores empedernidamente reacionários da sociedade paulista, que plantam conservadorismo nas consciências desavisadas para colher votos nas eleições, continuam enxergando no grande escritor baiano inúmeras vezes cotado para o prêmio Nobel um subversivo instigador da juventude e, agora, a esta altura do século XXI, um aliciador de menores.

Esse setor, acérrimo adversário do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), por entender que esse mecanismo de preservação de direitos “protege bandidos”, recorreu ao próprio ECA para sustentar suas argumentações inquisitoriais e falso-moralistas. Segundo essa parcela de mentalidade medieval da sociedade brasileira, o livro Capitães de Areia contém trechos pornográficos que ferem o Estatuto da Criança e do Adolescente, o que justificaria sua cassação do currículo escolar - o mesmo livro que, queimado pela ditadura do Estado Novo, foi aceito no currículo escolar por uma outra ditadura igualmente ou talvez mais feroz, qual seja a militar.

Milton Hatoum, no prefácio da edição mais recente dessa obra (São Paulo, Cia. Das Letras, 2008) em circulação há décadas na rede pública estadual, discorre sobre o impacto que em sua formação, toda ela ocorrida nos anos de chumbo, exerceu esse livro contundente, multipremiado, objeto de um sem número de dissertações de mestrado e teses de doutorado pelo Brasil e pelo mundo afora, e traduzido para mais de 20 diferentes idiomas da Terra.

A defesa técnico-pedagógico-literária que fui convidado a realizar na oportunidade, na condição de Doutor em Letras especializado na obra do escritor soteropolitano, foi contundente e convincente, o que sustentou a permanência dessa obra essencial de nossa literatura na sala de aula de nossas escolas públicas e nas mãos e nos corações de nossos estudantes.

Porém, no ano de 2010, em agosto, sempre esse mês aziago, um promotor público, movido por estranhos e impulsos, mandou recolher Capitães de Areia das escolas de uma cidade do interior de São Paulo, o que foi  feito sob o silêncio sorridente do então governo Serra.


Capitães de areia, convertido para o cinema e cuja estreia ocorreu em outubro de 2011 (Dir. Cecília Amado, neta do escritor, e Guy Gonçalves), é uma obra significativamente representativa da fase da obra de Jorge Amado que o projetou no cenário literário brasileiro e dele para o mundo.  A seguir, reproduzo o texto de um documento histórico, bastante esclarecedor da relevância desse livro para a literatura brasileira e para a consciência democrática:

ATA DE INCINERAÇÃO
Aos dezenove dias do mês de novembro de 1937, em frente à Escola de Aprendizes Marinheiros, nesta cidade do Salvador e em presença dos senhores membros da comissão de buscas e apreensões de livros, nomeada por ofício número seis, da então Comissão Executora do Estado de Guerra, composta dos senhores capitão do Exército Luís Liguori Teixeira, segundo-tenente intendente naval Hélcio Auler e Carlos Leal de Sá Pereira, da Polícia do Estado, foram incinerados, por determinação verbal do sr. coronel Antônio Fernandes Dantas, comandante da Sexta Região Militar, os livros apreendidos e julgados como simpatizantes do credo comunista, a saber: 808 exemplares de Capitães da areia, 223 exemplares de Mar morto, 89 exemplares de Cacau, 93 exemplares de Suor, 267 exemplares de Jubiabá, 214 exemplares de País do carnaval, 15 exemplares de Doidinho, 26 exemplares de Pureza, 13 exemplares de Bangüê, 4 exemplares de Moleque Ricardo, 14 exemplares de Menino de Engenho, 23 exemplares de Educação para a democracia, 6 exemplares de Ídolos tombados, 2 exemplares de Ideias, homens e fatos, 25 exemplares de Dr. Geraldo, 4 exemplares de Nacional socialismo germano, 1 exemplar de Miséria através da polícia.
Tendo a referida ordem verbal sido transmitida a esta Comissão pelo sr. Capitão de Corveta Garcia D'Ávila Pires de Carvalho e Albuquerque e a incineração sido assistida pelo referido oficial, assim se declara para os devidos fins.
Os livros incinerados foram apreendidos nas livrarias Editora Baiana, Catilina e Souza e se achavam em perfeito estado.
Por nada mais haver, lavra-se o presente termo, que vai por todos os membros da Comissão assinado, e, por mim segundo-tenente intendente naval Hélcio Auler, que, servindo de escrivão, datilografei. (assinados)
Luís Liguori Teixeira, Cap. Presidente
Hélcio Auler, Segundo-Tenente Int. N.
Carlos Leal de Souza Pereira

(Transcrito do jornal Estado da Bahia, de 17-12-37).
FONTE: Duarte, Eduardo Assis. “Literatura e Cidadania”. Campinas, UNICAMP Disponível em http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/leitura%20e%20cidadania.htm. Acesso em 22 agosto 2012.

A queima dessa obra em 1937, em sua primeira edição pela Livraria José Olympio Editora, marca um dos períodos mais obscurantistas da vida brasileira. Porém, não deixa de ser curioso que, se essa ditadura condenou Capitães de Areia, a que veio depois não viu nesse livro qualquer grande risco, uma vez que em 1966 ele fazia parte do currículo oficial e era lido por adolescentes do país.

Sobre esse particular, é esclarecedor o Posfácio de Milton Hatoum à edição de Capitães de Areia realizada pela Cia. Das Letras. Diz o insigne ficcionista brasileiro à pagina 273:

"Em 1937 Capitães de Areia foi censurado e depois queimado em Salvador", disse minha professora de português, quando eu estudava no Ginásio Amazonense Pedro II, em Manaus. A frase da professora aumentou a curiosidade dos estudantes por esse romance, um dos livros obrigatórios do curso de literatura brasileira. Por sorte, a leitura deu prazer aos jovens leitores. Agora, ao reler a história dos meninos do trapiche, encontrei o mesmo deleite, mas com outro olhar: o leitor de 1966 não é o mesmo de 2008.

Milton Hatoum nasceu em 1952, portanto em 1966, em plena ditadura militar, aos 14 anos de idade, ele era “obrigado” a ler – com prazer, confessa – o mesmo livro que a muitos partidários da censura ainda hoje, em plena vigência do regime democrático, causa comichões e apoplexia, como a atitude desse agente do ministério público obscurantista bem serve de exemplo e alerta. 

Não deixa de ser espantoso que uma ditadura tenha queimado a obra, junto com outras do mesmo autor e de outros, enquanto outra ditadura, por muitos considerada mais feroz, a tenha acolhido para leitura de adolescentes em início de puberdade.

Ray Brabury, em seu Fahrenheit 451, trata exatamente desse triste assunto: o da censura e queima de livros por mentalidades e regimes obscurantistas.

Nesse excelente romance, que já nasceu clássico e que foi adaptado para o cinema por François Truffaut, Ray Bradbury discorre sobre um futuro não muito distante, quando os livros, proibidos, serão incendiados junto com seus possuidores, convertidos, por um modo de vida e um regime totalitários, em horda de leitores clandestinos e potencialmente perigosos . O livro é uma contundente alegoria contra regimes autoritários, para os quais nada pode haver de mais perigoso do que certos tipos de livros.
No posfácio da edição de 2003 (São Paulo, Editora Globo, 2003) o autor norte-americano diz:

Esfole, desosse, desmonte, escarifique, derreta, encurte, destrua. Todo adjetivo de quantidade, todo verbo de movimento, toda metáfora que pesasse mais que um mosquito – eliminados! Todo símile que teria feito a boca de um submentacapto se contorcer – desaparecido! Qualquer paralelo que explicasse a filosofia barata de um escritor de primeiro nível – perdido!

(...)

Existe mais de uma maneira de queimar um livro. E o mundo está cheio de pessoas carregando fósforos acesos.

Algumas leituras apressadas de Capitães de Areia, ao acusarem o livro de “libidinoso”, “imoral”, e mesmo “pornográfico”, fazem eco a práticas da censura e da queima de livros, quando o que está em jogo nesse romance é o abandono de crianças largadas à sua própria sorte e obrigadas a realizarem sua aprendizagem nas ruas, onde são exploradas e violentadas todos os dias.

Nesse caso, pornográfico não é o livro, mas, a miséria que ele tem a coragem de denunciar na forma de romance.  Porém, quanto a isso, a mesma mentalidade que caça livros para incineração no interior de São Paulo, silencia, e ri, indecentemente.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Jorge Amado cassado novamente


Ano passado tive a honra de defender, junto ao Ministério Público do Estado, Jorge Amado. Este, como Carlos Gardel –  que depois de morto canta cada vez melhor –, continua atazanando as consciências culpadas das elites paulistas egressas da revolução de 32.

Setores altamente reacionários da sociedade paulista, que plantam conservadorismo nas consciências desavisadas para colher votos nas eleições, continuam enxergando no grande escritor baiano, inúmeras vezes cotado para o prêmio Nobel, um subversivo instigador da juventude e, agora, a esta altura do século XXI, um aliciador de menores.

Esse setor, que é contrário ao ECA, por entender que esse Estatuto “protege bandidos”, recorre ao próprio ECA para sustentar suas argumentações inquisitoriais e falso-moralistas. Segundo essa parcela medieval da sociedade brasileira, o livro “Capitães de Areia” contém trechos pornográficos que ferem o Estatuto da Criança e do Adolescente, o que justificaria sua cassação do currículo escolar.

Esse mesmo livro, que foi queimado pela ditadura do Estado Novo, mas que foi aceito no currículo de uma outra ditadura igualmente ou talvez mais feroz, qual seja a militar.

Milton Hatoum, no prefácio da edição mais recente dessa obra, em circulação há décadas na rede pública estadual, discorre sobre o impacto que em sua formação, toda ela ocorrida nos anos de chumbo, exerceu esse livro contundente, multipremiado, objeto de um sem número de dissertações de mestrado e teses de doutorado pelo Brasil e pelo mundo afora, e traduzido para mais de 20 diferentes idiomas da Terra.

A defesa técnico-pedagógico-literária que fui convidado a realizar na oportunidade, na condição de Doutor em Letras especializado na obra do escritor soteropolitano, foi contundente e convincente, o que sustentou a permanência dessa obra essencial de nossa literatura na sala de aula de nossas escolas públicas e nas mãos e nos corações de nossos estudantes.

Fico triste, cabisbaixo, como na canção de Chico Buarque, ao saber que neste mês de agosto – ô mês aziago, como bem diz a sabedoria popular e o romance de Rubem Fonseca – um promotor público, movido por estranhas forças e impulsos medievais para lá de catacúmbicos – mandou recolher “Capitães de Areia” das escolas de uma cidade do interior de São Paulo.

Fico mais triste ainda em observar o silêncio estrondoso do atual Secretário da Educação, Paulo Renato de Souza, em relação a esses sombrios episódios inquisitoriais insistentemente recorrentes no ambiente soturno de sua gestão.

O tucano Aécio Neves, quando coisa semelhante ocorreu em Minas, veio a público, defendeu pontos de vista democráticos e pôs ponto final, na terra da liberdade, à perseguição falso-moralista e retrógrada –  digna de Torquemada, Felinto Muller e Sérgio Paranhos Fluery –  aos “tão temidos” textos literários.

Ora, direis, há tucanos e tucanos. Si, pero no mucho, eu vos direi no entanto.

Eu, crente que sou na humanidade, e agora sem condições de defender o grande escritor baiano, uma vez que não fui convidado, acompanho com aflição o desfecho dessa perseguição às novas joanas darcs contemporâneas – perseguição movida por um promotor assombrado pela alma atormentada de Erasmo Dias –  torcendo para que o Secretário de Estado da Educação de São Paulo honre seu passado democrático, venha a público, quebre seu comprometedor silêncio estrondoso e faça a coisa certa, antes que o referido promotor e outros, estimulados e fortalecidos pelo mesmo silêncio, vestidos de capuzes e armados de alicates quebra-dedos, batam a sua porta, no segundo andar do edifício Caetano de Campos, e o cassem também.

domingo, 11 de abril de 2010

Capitães de Areia, de Jorge Amado

Posfácio: Milton Hatoum

ATA DE INCINERAÇÃO

Aos dezenove dias do mês de novembro de 1937, em frente à Escola de Aprendizes Marinheiros, nesta cidade do Salvador e em presença dos senhores membros da comissão de buscas e apreensões de livros, nomeada por ofício número seis, da então Comissão Executora do Estado de Guerra, composta dos senhores capitão do Exército Luís Liguori Teixeira, segundo-tenente intendente naval Hélcio Auler e Carlos Leal de Sá Pereira, da Polícia do Estado, foram incinerados, por determinação verbal do sr. coronel Antônio Fernandes Dantas, comandante da Sexta Região Militar, os livros apreendidos e julgados como simpatizantes do credo comunista, a saber: 808 exemplares de Capitães da areia, 223 exemplares de Mar morto, 89 exemplares de Cacau, 93 exemplares de Suor, 267 exemplares de Jubiabá, 214 exemplares de País do carnaval, 15 exemplares de Doidinho, 26 exemplares de Pureza, 13 exemplares de Bangüê, 4 exemplares de Moleque Ricardo, 14 exemplares de Menino de Engenho, 23 exemplares de Educação para a democracia, 6 exemplares de Ídolos tombados, 2 exemplares de Idéias, homens e fatos, 25 exemplares de Dr. Geraldo, 4 exemplares de Nacional socialismo germano, 1 exemplar de Miséria através da polícia.

Tendo a referida ordem verbal sido transmitida a esta Comissão pelo sr. Capitão de Corveta Garcia D'Ávila Pires de Carvalho e Albuquerque e a incineração sido assistida pelo referido oficial, assim se declara para os devidos fins.

Os livros incinerados foram apreendidos nas livrarias Editora Baiana, Catilina e Souza e se achavam em perfeito estado.

Por nada mais haver, lavra-se o presente termo, que vai por todos os membros da Comissão assinado, e, por mim segundo-tenente intendente naval Hélcio Auler, que, servindo de escrivão, datilografei. (assinados)

Luís Liguori Teixeira, Cap. Presidente
Hélcio Auler, Segundo-Tenente Int. N.
Carlos Leal de Souza Pereira

Transcrito do jornal Estado da Bahia, de 17-12-37.”

FONTE: Duarte, Eduardo Assis. “Literatura e Cidadania”. Campinas, UNICAMP Disponível em http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/leitura%20e%20cidadania.htm.

A queima dessa obra em 1937 marca um dos períodos mais obscurantistas da vida brasileira. Porém, não deixa de ser curioso que, se essa ditadura condenou Capitães de Areia, a que veio depois não viu nesse livro qualquer grande risco, uma vez que em 1966 ele fazia parte do currículo e era lido por adolescentes.

Sobre esse particular, é esclarecedor o Posfácio de Milton Hatoum a esta edição de Capitães de Areia. Diz o insigne ficcionista brasileiro à pagina 273:.

“Em 1937 Capitães de areia foi censurado e depois queimado em Salvador”, disse minha professora de português, quando eu estudava no Ginásio Amazonense Pedro II, em Manaus.

A frase da professora aumentou a curiosidade dos estudantes por esse romance, um dos livros obrigatórios do curso de literatura brasileira. Por sorte, a leitura deu prazer aos jovens leitores. Agora, ao reler a história dos meninos do trapiche, encontrei o mesmo deleite, mas com outro olhar: o leitor de 1966 não é o mesmo de 2008.

Milton Hatoum nasceu em 1952, portanto, em 1966, em plena ditadura militar, aos 14 anos de idade, ele era “obrigado” a ler – com prazer, confessa – o mesmo livro que a muitos partidários da censura ainda hoje, em plena vigência do regime democrático, causa comichões e apoplexia.
Não deixa de ser espantoso que uma ditadura tenha queimado a obra, junto com outras do mesmo autor, enquanto outra ditadura, por muitos considerada mais feroz, a tenha acolhido para leitura de adolescentes em início de puberdade.

Ray Brabury, no seu Fahrenheit 451, trata exatamente desse triste assunto: o da censura e queima de livros por mentalidades e regimes obscurantistas.

Nesse excelente romance, que já nasceu clássico e que foi adaptado para o cinema por François Truffaut, Ray Bradbury discorre sobre um futuro não muito distante, quando os livros, proibidos, serão incendiados junto com seus possuidores. É uma contundente alegoria contra regimes autoritários, para os quais nada pode haver de mais perigoso do que certos tipos de livros.

No posfácio da presente edição em destaque, o autor norte-americano diz:.

Esfole, desosse, desmonte, escarifique, derreta, encurte, destrua. Todo adjetivo de quantidade, todo verbo de movimento, toda metáfora que pesasse mais que um mosquito – eliminados! Todo símile que teria feito a boca de um submentacapto se contorcer – desaparecido! Qualquer paralelo que explicasse a filosofia barata de um escritor de primeiro nível – perdido!.

(...)

Existe mais de uma maneira de queimar um livro. E o mundo está cheio de pessoas carregando fósforos acesos.

Fonte: Bradbury, Ray. Frahrenheit 451. São Paulo. Editora Globo, 2003.

Algumas leituras apressadas de Capitães de Areia, ao acusarem o livro de “libidinoso”, “imoral”, e mesmo “pornográfico”, fazem eco a práticas da censura e da queima de livros, quando o que está em jogo nesse romance é o abandono de crianças largadas à sua própria sorte e obrigadas a realizarem sua aprendizagem nas ruas, onde são exploradas e violentadas todos os dias.

Nesse caso, pornográfico não é o livro, mas a miséria que ele tem a coragem de denunciar na forma de romance. Comparar a realidade que ele retrata com a atual situação de crianças em risco social é uma atividade bastante interessante a ser realizada na escola, principalmente em épocas de filistinismo moralista como esta em que estamos nos afundando não sabemos até quando - nem até que ponto.

FONTE: Amado, Jorge. Capitães de Areia. Posfácio Milton Hatoum. São Paulo. Cia. Das Letras, 2008.