O século XX foi atravessado por duas grandes ondas revolucionárias, cujo epicentro ocorre na Europa de fins do século XIX e cujos reflexos se espalharam pelo mundo e repercutem até os dias de hoje.
A primeira delas, não necessariamente em ordem de
importância, diz respeito ao campo da política, e está ligada diretamente à
obra de Karl Marx, para quem as crises capitalistas levariam o mundo
inexoravelmente ao socialismo. Não houve processo de independência nacional ou de
revolução social de fins do século XIX e de todo o século XX que não esteve de
alguma forma associada ao pensamento marxista.
A segunda onda que se ergue no fim do século XIX, atravessa
todo o XX e segue com força neste início de XXI, é da revolução sexual,
diretamente relacionada à obra de Sigmund Freud. Não houve e não há movimento
feminista ou contra discriminação de gênero ou identidade sexual desde Freud
que não se remeta de alguma forma à sua obra, seja para apoiar-se nela, seja
para buscar novos caminhos, criticando-a.
A influência desses dois pensadores é tão avassaladora sobre
a produção científica e intelectual, que se tornou comum explicar os processos
sociais e políticos do mundo contemporâneo pelo binômio “sexo e poder”, noutras
palavras, Freud e Marx.
No entanto, as revoluções sociais não são objeto deste
artigo — embora seja instigante buscar as aproximações e distanciamentos entre
Freud e Marx. O objetivo, aqui, é realizar uma reflexão não extensa sobre a
importância de Freud na pesquisa da psique humana.
Diferentemente de Marx, que buscou nas relações e nas
classes sociais as razões da infelicidade coletiva, Freud voltou suas atenções
para os mecanismos psíquicos internos do indivíduo, responsáveis por sua saúde
ou por sua insanidade emocional.
Seu modelo topográfico, em que consciente, pré-consciente e inconsciente
se articularam para descrever a vida psíquica humana foi um passo decisivo para
que as ciências da mente se afastassem de explicações mistificadoras ou de
ordem religiosa. Seu modelo estrutural, posterior, em que Id, Ego e Superego
descrevem o mecanismo estruturante do indivíduo foi outro passo de gigante para
as ciências da mente.
Ao abordar transtornos psíquicos como resultantes de traumas
relacionados ao desenvolvimento sexual, do nascimento à idade adulta, Freud
jogou luzes sobre problemas muitas vezes representados na literatura e nas
artes, porém de forma poética.
Nas relações conturbadas entre homens e mulheres, mãe-filho/a,
pai-filho/a, tão frequentes na literatura, Freud enxergou não retratos de anomalias
morais, mas representação artística de uma constante mais profunda, relacionada
ao próprio desenvolvimento da sexualidade humana.
Fugindo aos limites da moral de época, que tantas vezes
penetrou os domínios da ciência e a impregnou de preconceitos — porém sem
deixar de ser um homem de sua época, portanto, moldado pelos limites históricos
do tempo em que viveu — Freud esforçou-se por desromantizar a relação
homem-mulher e pais-filhos. Por essa razão, foi, e ainda é, alvo da ira de grupos
e indivíduos que preferem sacralizar relações humanas, a encará-las como
produto de relações sociais e políticas, mas também psicossexuais.
Ao propor que o indivíduo humano desenvolve sua sexualidade
desde o momento em que reúne condições fisio e neurológicas para tanto, Freud
deu a senha para que parte significativa da humanidade marchasse contra ele
mesmo. Melhor não ficou sua situação no meio científico conservador de sua
época, e menos aprovação teve ainda do senso comum, quando escreveu com todas
as letras que a mãe e o pai são os primeiros responsáveis tanto pelo
desenvolvimento saudável da sexualidade de seus filhos, quanto por seus traumas
na idade adulta.
A visão científica de Freud era incompatível com
representações ideológicas prevalentes ao longo dos séculos que se, por um
lado, colocavam a mãe em um altar e o pai em um trono, por outro, fechava os
olhos para as razões dos transtornos psíquicos, destinando os “anormais” e “loucos” para casas de alienados, para os
hospícios, para as cadeias, ou para a fogueira, junto com bruxas, perversos,
criminosos ou descontentes com a ordem vigente.
Ao buscar explicações científicas para transtornos
psíquicos, Freud foi forçado a esmiuçar as entranhas da mais antiga instituição
humana, a família, que se reveste dos véus simbólicos da religião, mas cuja
base concreta é o sexo.
Ao voltar sua lupa para os mecanismos psíquicos do
indivíduo, o que Freud descobriu foram associações complexas entre biologia,
fisiologia e introjeção de representações simbólicas de relações sociais: mãe,
pai, família, comunidade, Estado.
Descartadas razões de ordem física, em que se incluem lesões,
malformações e genética, que origem poderiam ter as neuroses e psicopatologias,
a não ser em mecanismos psíquicos afetados por relações ou eventos traumáticos,
introjetados em momentos decisivos da vida do indivíduo, o principal deles a
infância?
Dedicando sua vida de cientista humanista à luta contra o
sofrimento do indivíduo, Freud desenvolveu métodos de pesquisa e terapêuticos
que o levaram a creditar grande parte da origem dos traumas psíquicos da vida
adulta a eventos relacionados a perturbações do desenvolvimento sexual na
infância.
Durante o século XX, muitos estudiosos, estes com
conhecimento de causa, questionaram a ênfase de Freud na sexualidade como dimensão
central da saúde psíquica — ou de transtornos, neuroses e patologias psíquicas
—, e Jung não é, aqui, figura solitária.
No entanto, cabe a pergunta: não tivesse Freud chamado a
atenção a esse aspecto que, hoje, passa por obviedade, teriam as ciências da
mente alcançado o estágio em que se encontram?
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