Este artigo, capítulo de minha tese de doutorado na
Universidade de São Paulo, foi publicado na íntegra no encarte da revista
Princípios, quando da comemoração dos 100 anos de nascimento de Jorge Amado. Neste
blog, será publicado em partes, a partir de hoje.
Em Seara vermelha,
de 1946, segundo livro de Jorge Amado mais lido no estrangeiro, simultaneamente
dedicado a Luís Carlos Prestes e João Amazonas, entre outros,coerente com seu
projeto literário, o autor optou por uma narrativa organizada de modo bastante
convencional sem maiores subversões de linguagem.
Nela o tempo respeita a ordem
cronológica e os planos narrativos, assim como as personagem, são
estruturados hierarquicamente, como numa metáfora das relações sociais em seu
desenvolvimento histórico.
Nessa hierarquia rígida, é do narrador de terceira pessoa
que emanam todos os enunciados através dos quais o enredo se desenvolve e as personagens,
em discurso direto, falam, e à posição privilegiada e onipresente desse
narrador se associa ainda um tom sentencioso que confere a seu discurso uma
significativa ilusão de onipotência e objetividade.
O narrador de Seara
vermelha ocupa posição central nesse romance: tudo ouve, tudo vê e prevê,
tudo sabe e tudo explica. Dado ao leitor pelo autor como metáfora da consciência revolucionária da época, seu
partidarismo, estrito senso, faz com que as personagens funcionem como caixa de
ressonância de sua voz intensamente ideologizada.
Foco que mobiliza toda a engrenagem narrativa de Seara vermelha, a voz do narrador se
oferece ao leitor como registro de uma supra-consciência no interior da qual os
fatos, as experiências e as outras consciências representadas pelas
personagens se refletem e ganham sentido.
Situada hipoteticamente num momento posterior àquele relatado,
essa “supra-consciência”, sob o disfarce de um raciocínio aparentemente
dedutivo, conduz unidirecionalmente a narrativa a soluções confirmadoras de seu
ponto de vista.
Disso resulta que o leitor, crente de estar “pensando
junto” com o narrador, na realidade está sendo induzido inapelavelmente a aderir a
um ponto de vista, a uma percepção do mundo, a um partido.
A aparência de verdade que todas as coisas assumem na voz
desse narrador é, assim, mais que busca
de representação da realidade, estratégia de convencimento
bem urdida, na qual personagens e fatos, sob o manto diáfano da narração, se
constituem em elementos de apoio à sustentação argumentativa – motivo pelo qual
esse e outros romances de Jorge Amado de igual feitio têm sido apontados como
romances de tese.
Os efeitos de integridade, coesão e coerência de Seara vermelha se devem em grande medida
ao tipo de narrador criado por Jorge Amado, que articula categorias da
dialética, sem dúvida, porém, de forma um tanto mecânica, por mais
contraditório que isso pareça.
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