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segunda-feira, 22 de julho de 2019

Os 120 anos de Hemingway


Ernest Hemingway (Oak Park, Illinois, 21/07/1899) é até hoje um dos mais lidos romancistas norte-americanos em todo o mundo, suas obras estão diretamente relacionadas a três grandes eventos que moldaram o século XX: as Primeira e Segunda Guerra Mundiais e a Guerra Civil Espanhola - e ao final da vida se veria ainda em meio à Revolução Cubana, que estourou literalmente às cercas de seu quintal.

O projeto literário de Hemingway é explícito desde seus primeiros contos, em que a radiografia de sua geração de escritores, a chamada Geração Perdida, egressa da Primeira Guerra Mundial, é feita sem glamour, de forma direta, objetiva e crua. Porém, já nesses contos, dos quais saltará para o desafio do grande romance americano, a matéria autobiográfica compõe a massa de fatos e sentimentos dos quais o autor extrairá seu estilo.

Ocorre que para Hemingway o cotidiano por si não oferecia atrativos, daí a sua busca pelas emoções nascidas dos eventos de escala histórica e dos que revelavam o extraordinário, encoberto por sob a camada enganadora de tinta da vida ordinária de motoristas de ambulâncias, garçons, enfermeiras, camareiras... Noutras palavras: por sob cada trabalhador mora um herói em potencial - que sua literatura procura desvendar.

No conto A Capital do Mundo, ambientado numa Madri à beira da guerra civil, um modesto garçom sonha tornar-se toureiro. Na ausência de uma arena e de touro reais, seu colega de turno, já madrugada instaurada numa cozinha de pensão meio à penumbra, improvisará facas nos pés de uma cadeira e o atacará o mais realisticamente possível, para que ele apresente suas habilidades de drible, um guardanapo de mesas fazendo-lhe as vezes de lenço vermelho.

Paco morrerá nessa noite não vítima da chifrada de um miúra, mas ao ser atravessado por uma faca amarrada aos pés de uma cadeira, enquanto suas irmãs camareiras assistem a um filme de Greta Garbo, o qual o narrador considerará um passo em falso na carreira da atriz.

Em Adeus às Armas, romance de 1929, os heróis não são generais ou políticos, mas um motorista de ambulância e uma voluntária do serviço hospitalar. Elaborado a partir de sua própria experiência na Primeira Guerra, quando engajou-se na Cruz Vermelha após ser reprovado no alistamento militar, o livro retrata o amor desesperado de dois jovens em meio à carnificina na fronteira entre Itália e Áustria. Ali o amor precisa ser realizado com urgência, pois a morte é o pano de fundo de todas as aspirações. O heroísmo não está nas trincheiras, mas na capacidade de amar em meio aos bombardeios que semeiam pedaços de corpos por todos os lados e às doenças que fazem o trabalho que as balas e morteiros não fizeram:

"No início do inverno, vieram as chuvas ininterruptas, e com as chuvas chegou o cólera. Felizmente a epidemia foi combatida a tempo, e apenas sete mil soldados morreram vítimas dela." 

Adeus às Armas, apenas três anos após sua publicação, foi às telas do cinema, estreando em 1932, tornando-se instantaneamente um clássico em preto e branco, com Gary Cooper no papel de alter-ego de Hemingway. O filme foi indicado ao Oscar em quatro categorias: Melhor Filme, Direção de Arte,  Fotografia e Gravação de Som, vencendo nas duas últimas. O impacto do romance foi tal que em 1957 ganha nas telas do cinema sua versão colorida, agora com Rock Hudson no papel do motorista de ambulância e não menos de que Vittorio de Sica como ator coadjuvante, com indicação ao Oscar na categoria.

Os grandes acontecimentos do mundo foram a obsessão de Hemingway, por isso ele buscou sempre de alguma forma se fazer de corpo presente neles, seja como motorista de ambulância na Primeira Guerra, seja como repórter engajado nos esforços das Brigadas Internacionais na Guerra Civil Espanhola, seja como correspondente ao final da Segunda Guerra. Para ele há obrigatoriedade de se viver as experiências para se falar com honestidade delas.

Em Por Quem Os Sinos Dobram (1940), Robert Jordan, um jovem professor de espanhol norte-americano na Espanha da Guerra Civil, se envolve no conflito ao lado dos republicados. A ele cabe explodir uma ponte. Nos dias que antecedem à missão, ele constata a carnificina, acentuada pelo apoio dos fascistas italianos e dos nazistas alemães aos nacionalistas de Franco, reflete sobre os elos que ligam os republicanos à sua causa e se apaixona pela cigana Maria. O romance ganhará adaptação cinematográfica em 1943, com Gary Cooper no papel de Jordan e Ingrid Bergman, indicada para o Oscar, no papel de Maria.

A obra de Hemingway abasteceu com abundância Hollywood. Seu conto As Neves do Kilimanjaro (1936), estreou no cinema em 1952, com Gregory PeckSusan Hayward e Ava Gardner, que encheram as salas de cinema pelo mundo. O filme foi indicado ao Oscar de Melhor Direção de Arte e Fotografia. O conto retrata um safári com maus resultados para o protagonista, Harry Street, um escritor experiente que se fere num arbusto e tem a perna gangrenada. Preso a seu catre, ele revive, durante delírios da febre, suas aventuras pelo mundo, seus amores e seus sonhos juvenis - à sombra da morte, prenunciada na forma de abutres e hienas que rondam o acampamento.

Quando O Velho e o Mar foi publicado, muitos críticos consideravam que Hemingway, isolado na ilha de Cuba, tida como a sepultura de sua criatividade, não tinha mais nada a oferecer. A seu editor, o autor enviara, em 1952, os originais desse conto com um bilhete: “Eu sei que isso é o melhor que posso escrever na minha vida toda”. Sucede que esse livro, considerado hoje sua obra prima, ambientado na ensolarada Cuba, rendeu-lhe o prêmio Nobel - na verdade, foi o pretexto que faltava para a Academia Sueca premiá-lo pelo conjunto da obra.

E seguindo a mesma vocação de seus melhores textos, O Velho e o Mar rendeu outro clássico do cinema, em 1958. No papel do velho pescador que enfrenta com suas últimas forças a fúria da natureza na forma de um verdadeiro monstro marinho, não menos que Spencer Tracy, indicado para o Oscar como melhor ator e vencedor do Globo de Ouro na mesma categoria (o filme venceria o Oscar de 1959 na categoria Melhor Trilha Sonora).

Para abastecer sua literatura, Hemingway se atirou à vida e se envolveu em conflitos de toda sorte, pessoais e coletivos, porém a Revolução Cubana lhe chegou sem que ele a buscasse. Embora simpático aos jovens guerrilheiros que derrubariam a ditadura de Batista, já bastante abatido, diabético, sofrendo de depressão aguda e lapsos de memória, o autor abandona a ilha para terminar seus dias no norte dos EUA, em meio às Montanhas Rochosas (Ketchum, Idaho, 2 de Julho de1961).


JEOSAFÁ é Pesquisador Colaborador do Departamento de História da Universidade de São Paulo, escritor e professor Doutor em Letras pela mesma Universidade. Leciona atualmente para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria);   O jovem Malcolm X A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela editora Mercuryo Jovem. 





quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Jorge Amado cassado novamente


Ano passado tive a honra de defender, junto ao Ministério Público do Estado, Jorge Amado. Este, como Carlos Gardel –  que depois de morto canta cada vez melhor –, continua atazanando as consciências culpadas das elites paulistas egressas da revolução de 32.

Setores altamente reacionários da sociedade paulista, que plantam conservadorismo nas consciências desavisadas para colher votos nas eleições, continuam enxergando no grande escritor baiano, inúmeras vezes cotado para o prêmio Nobel, um subversivo instigador da juventude e, agora, a esta altura do século XXI, um aliciador de menores.

Esse setor, que é contrário ao ECA, por entender que esse Estatuto “protege bandidos”, recorre ao próprio ECA para sustentar suas argumentações inquisitoriais e falso-moralistas. Segundo essa parcela medieval da sociedade brasileira, o livro “Capitães de Areia” contém trechos pornográficos que ferem o Estatuto da Criança e do Adolescente, o que justificaria sua cassação do currículo escolar.

Esse mesmo livro, que foi queimado pela ditadura do Estado Novo, mas que foi aceito no currículo de uma outra ditadura igualmente ou talvez mais feroz, qual seja a militar.

Milton Hatoum, no prefácio da edição mais recente dessa obra, em circulação há décadas na rede pública estadual, discorre sobre o impacto que em sua formação, toda ela ocorrida nos anos de chumbo, exerceu esse livro contundente, multipremiado, objeto de um sem número de dissertações de mestrado e teses de doutorado pelo Brasil e pelo mundo afora, e traduzido para mais de 20 diferentes idiomas da Terra.

A defesa técnico-pedagógico-literária que fui convidado a realizar na oportunidade, na condição de Doutor em Letras especializado na obra do escritor soteropolitano, foi contundente e convincente, o que sustentou a permanência dessa obra essencial de nossa literatura na sala de aula de nossas escolas públicas e nas mãos e nos corações de nossos estudantes.

Fico triste, cabisbaixo, como na canção de Chico Buarque, ao saber que neste mês de agosto – ô mês aziago, como bem diz a sabedoria popular e o romance de Rubem Fonseca – um promotor público, movido por estranhas forças e impulsos medievais para lá de catacúmbicos – mandou recolher “Capitães de Areia” das escolas de uma cidade do interior de São Paulo.

Fico mais triste ainda em observar o silêncio estrondoso do atual Secretário da Educação, Paulo Renato de Souza, em relação a esses sombrios episódios inquisitoriais insistentemente recorrentes no ambiente soturno de sua gestão.

O tucano Aécio Neves, quando coisa semelhante ocorreu em Minas, veio a público, defendeu pontos de vista democráticos e pôs ponto final, na terra da liberdade, à perseguição falso-moralista e retrógrada –  digna de Torquemada, Felinto Muller e Sérgio Paranhos Fluery –  aos “tão temidos” textos literários.

Ora, direis, há tucanos e tucanos. Si, pero no mucho, eu vos direi no entanto.

Eu, crente que sou na humanidade, e agora sem condições de defender o grande escritor baiano, uma vez que não fui convidado, acompanho com aflição o desfecho dessa perseguição às novas joanas darcs contemporâneas – perseguição movida por um promotor assombrado pela alma atormentada de Erasmo Dias –  torcendo para que o Secretário de Estado da Educação de São Paulo honre seu passado democrático, venha a público, quebre seu comprometedor silêncio estrondoso e faça a coisa certa, antes que o referido promotor e outros, estimulados e fortalecidos pelo mesmo silêncio, vestidos de capuzes e armados de alicates quebra-dedos, batam a sua porta, no segundo andar do edifício Caetano de Campos, e o cassem também.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Castro Alves, intimorato

Para o professor Antonio Candido, dentre os poetas que vincularam decididamente suas obras ao esforço consciente de dar corpo a uma literatura assumidamente nacional, aquele a quem o título “romântico” melhor se assenta é Castro Alves.

O professor apoia sua argumentação na análise das obras das chamadas três gerações românticas, cujos poetas apontados como mais característicos são Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo e o próprio Castro Alves, para as Primeira, Segunda e Terceira Gerações respectivamente.

Preso ainda às influências neoclássicas da poesia árcade, a poesia de Gonçalves Dias, em que pese a inovação temática e a adesão formal pugnada por Ferdinand Denis, modulando a saudade da terra natal por um sentimentalismo comedido, evita os arroubos egóticos, que comparecem emblematicamente na obra de Álvares de Azevedo, e os voos grandiloquentes do condor de Castro Alves.

A obra breve e radicalmente egocêntrica de Álvares de Azevedo, se por um lado traduz para a língua literária brasileira o ‘modus operandi’ do individualismo romântico que se espalha pelo mundo a partir da França, minimiza a temática nacional, pelo mergulho mesmo nesse profundo poço íntimo, povoado por fantasmas de pesadelos, cismas, presságios e trevas, em que consistem as manifestações do inconsciente atormentado.

Essa temática nacional, no entanto, a partir da segunda metade do século XIX, assume crescente interesse, sem dúvida em função da realidade política que culminará com a abolição dos escravos e com a proclamação da República.

Concordando com o professor Antonio Candido, da “Formação da Literatura Brasileira”, e parafraseando Paul Eluard, para o qual o maior poeta de França “continua sendo Victor Hugo, infelizmente”, pode-se afirmar que senão o maior poeta romântico, ao menos o mais praticado até hoje é Castro Alves, por incorporar intimoratamente a luta pela República e pela abolição da escravatura como temática francamente nacional.

Beneficiado sem dúvida pelas experiências estéticas de Gonçalves Dias e Álvares de Azevedo, sem oferecer sua obra como balanço das anteriores, o poeta baiano, sintonizado com as aspirações libertárias de sua época, em que, mais que Lamartine e Musset, pontificam Byron e Hugo, convoca: para sua épica, um personagem até então ignorado ou mitigado, o negro; para sua lírica, uma sensualidade antes coberta de véus ou reprimida e macerada na incompletude o ato sexual; e, para a linguagem poética, um campo semântico cujo recorte vocabular foi contornado ou evitado, por corresponder a agentes sociais estigmatizados – as camadas populares, com seu falar “errado”, e os negros, com seu hibridismo linguístico, evocatório das línguas e tradiçoes africanas de origem.

Se considerarmos, para o bem e para o mal, que o protótipo de autor romântico, em escala ocidental, é Victor Hugo, seremos levados a concordar com o professor Antonio Candido, quando este constata o amplo sucesso conquistado por Castro Alves, em vida e até nossos dias.

O projeto estético do poeta baiano, seguindo os passos do “poeta de França” – cuja cerimônia de despedida, quando de sua morte, teria reunido em procissão mais de um milhão e meio de parisienses –, buscou lançar suas raízes pelos mais amplos territórios de seu humanismo liberal, no qual a República, a luta antiescravagista, o pan-americanismo – numa época em que esse termo ainda não estava associado ao imperialismo norte-americano – e o amor físico pela mulher convivem entre exageros de voluntarismos, exaltações e rompantes teatrais.

A figura do bardo descabelado que espanca as trevas com seus versos plenos de luz, de sentimentos de justiça e igualdade, ou de néctar amoroso, está indissociavelmente ligado a esse poeta, cuja retórica dramática sem dúvida estabelece diálogo direto com o teatro, que amou e praticou.

Se hoje nos parece anacrônica a poesia retórica, plena de gestos, imagens visuais e sons marcantes, credite-se isso à fadiga do público, exposto desde o sucesso estrondoso da poesia declamatória, que encontrou nas performances de Castro Alves modelos prototípicos.

Como não poderia deixar de ser, ao inverter a direção do vetor individualista de Álvares de Azevedo – todo ele, o vetor, voltado para áreas íntimas e sombrias da interioridade egótica –, Castro Alves encontrou a sua frente uma realidade em vias de transformação, a qual convocava não uma atitude contemplativa ou irônica, mas uma intervenção marcada pelo protagonismo militante.

Enquanto que o romantismo conservador da Primeira Geração romântica, sob as asas do Instituto Histórico e Geográfico, praticava um sentimentalismo comedido cuja maior ousadia foi eleger o índio idealizado como símbolo da pátria; e enquanto a Segunda Geração, ultra-romântica, professava o satanismo, as trevas e o sarcasmo escapistas como mecanismos de negação de condições desfavoráveis a proliferação de novas ideias; a Terceira Geração romântica encontrou foco no mundo exterior para onde apontar suas críticas militantes na forma de versos.

Em certo sentido, a poesia de Castro Alves, comungando com Álvares de Azevedo o individualismo voluntarista, reorienta suas energias para o campo social e, ao fazê-lo, conquista uma repercussão que o poeta paulista, pelo intimismo, não logrou alcançar.

O ultra-romantismo de Álvares de Azevedo não o levou às formulações estéticas do poeta baiano porque estas derivam de condições de época que escaparam ao primeiro. Os horizontes políticos e sociais em cujo contexto a obra de Álvares de Azevedo vicejou eram desfavoráveis a utopias políticas e existenciais, uma vez que a Independência não resultara em imediato florescimento econômico e cultural e que os ventos da República e da abolição só começarão a soprar com maior intensidade após meados do século e a morte do mesmo Álvares de Azevedo.

O período de existência de Castro Alves coincide com o de ascensão das lutas sociais e políticas que culminarão com a libertação dos escravos e com a República – eventos aos quais o poeta não assistirá, mas os quais ele estará definitivamente ligado.

Esse período assiste o surgimento de novos agentes sociais, que buscarão expressão na política, mas também na literatura.

Obviamente, os ventos que sopram pelo mundo, ou melhor, da Europa para o restante do globo, são também de mudança, refletidos nas revoluções agrárias, populares e nacionais a partir de meados do século XIX.

Em que pese o descompasso cultural apontado por historiadores entre eventos dos dois lados do Atlântico e entre os países dos hemisférios norte e sul, as contradições políticas, sociais e econômicas do Segundo Reinado brasileiro estão permeadas por outras derivadas da Europa.

Assim, ainda que com atraso, a retórica hugoana de combate ao despotismo encontra nos versos de Castro Alves um digno representante mestiço. Não deixa de ser egenhosa a equação do poeta baiano para um problema não de menor magnitude para seu projeto literário: o da identificação e eleição do oprimido local para assumir a posição por ele ocupada correspondentemente na poesia combativa de Victor Hugo.

Na França revolucionária, o oprimido literalmente armou barricadas contra os opressores. Victor Hugo colhe nas ruas de Paris as personagens a serem redimidas por seus versos heróicos. O célebre quadro de Delacroix, “A liberdade guiando o povo”, traz ao lado da musa republicana o pequeno Gavroche, personagem do “Poeta de França”, brandindo pistolas sobre uma pilha de cadáveres.

Porém, no caso brasileiro, onde estavam os rebeldes oprimidos para sacudir a monarquia reacionária? Os primeiros românticos – que deveriam ser a vanguarda revolucionária –, aqui, eram empregados de Pedro II. O próprio Imperador elegia-se incentivador das artes românticas – e obras históricas recentes imputam-lhe mesmo o sonho malogrado de tornar-se o primeiro presidente da República do Brasil.

Ao destacar o papel do negro em sua poesia, Castro Alves localizou o elemento a ser tematizado por sua musa militante. Porém, nesse particular, não se tratou de resolver apenas uma questão de atualização literária, mas de convergência entre maturação de condições políticas e sociais de época e projeto literário conscientemente desenvolvido.

Para assumir suas feições integrais no Brasil, o romantismo teria de encarar sua dimensão de engajamento nas causas liberais. Gonçalves Dias não o fez por conservadorismo – que se estenderá até a obra de José de Alencar, cujas cartas ao Imperador contra a libertação dos escravos são conhecidas da historiografia brasileira –; Álvares de Azevedo, em seu liberalismo democrático, não o fez por ausência de condições de época e pela brevidade de suas existência; fê-lo Castro Alves.

Ao se constituir intérprete das aspirações libertárias da época, Castro Alves golpeou o indianismo escapista e o individualismo ensimesmado, dando sobrevida a uma corrente literária que na Europa, contestada pelo nascente realismo, entrava em franco declínio e fragmentação.

O impacto da obra de Castro Alves é tal que, embora o poeta tenha morrido em 1871, na libertação dos escravos, em 1888, portanto 17 ano depois, foram seus os versos os mais lembrados - ainda o são hoje.

Ao mobilizar as luzes da razão em favor das causas socialmente justas, o poeta baiano logrou neutralizar uma dimensão excessivamente irracionalista do romantismo, pela permuta do mergulho egótico, mórbido e suicida, pela ação voluntarista, visionária, arrojada – e talvez igualmente temerária e suicida – em favor dos oprimidos.

À luz dos dias de hoje, tendo seus versos sido publicados, lidos e declamados à exaustão, pode parecer algo de menor importância sua franca e comovida defesa dos negros e sua equação literária democrática, a assegurar ao oprimido um lugar não artificial e digno em nossa literatura.

Todavia, se considerarmos que somente o século XXI garantiu no Brasil, por meio de uma lei federal, a presença de conteúdos culturais relativos à afrodescendência nos currículos oficiais de nossas escolas, temos de reconhecer o papel significativo de Castro Alves, não só no que tange à sua coragem política, mas também no que diz respeito a seu gênio artístico, que alargou o cânone literário brasileiro para além dos modelos europeus ao incorporar em sua poesia de forma digna um dos pilares étnicos de nossa cultura.

A forma como o negro comparece na obra de Castro Alves inaugura uma nova fase não só da poesia romântica como de nossa literatura. E, assim como Victor Hugo fizera na França, Castro Alves leva o romantismo ao seu clímax, após o qual tudo terá de ser feito de modo diferente.

Afrânio Coutinho, com relação a esse particular, em ensaio introdutório à “Poesia Completa de Castro Alves”, publicada pela prestigiosa editora Nova Aguilar, afirma mesmo que o poeta entrega a poesia brasileira no limiar do realismo.

Hoje, em face da lei 10.639, há um renovado interesse na obra desse poeta, que viveu pouco e escreveu muito. Todavia, a crítica, os livros didáticos e os programas governamentais precisam vencer a inércia preconceituosa que envolve obras de teor popular, entre as quais se encontra a do poeta baiano.

Sua sintaxe algo arabesca, sua expressividade vertiginosa e seu vocabulário pouco palatável ao gosto neoclássico que rege a crítica ainda hoje – a qual em geral fala mais para a academia ensimesmada do que para a realidade da produção simbólica – testa os valores do leitor.

Sua grandiloquência, refletida em adjetivações monumentais – e por vezes incongruentes –, e seu apreço por antíteses e hipérboles, evocatórias de recursos caríssimos ao barroco, respondem a um projeto literário apoiado em agentes sociais – as camada populares – para os quais a “finesse” pouco significa, mas os quais pugnam pelo acesso à literatura com legitimidade.

Sua poesia incorpora ainda recursos do teatro e da oralidade, o que a coloca numa fronteira de gêneros extremamente fluida e fecunda. Não constitui, portanto, defeito, mas virtude, uma vez que rejeita o gosto livresco das elites, mais afeitas à traça de papel do que à literatura viva, que rejeita classificações rígidas, juízos hierarquizantes e leitos de Procusto.

Obviamente, como toda obra humana, artística ou não, a produção de Castro Alves tem oscilações. Nela há pontos de realização mais elaborada e outros de rotina da escrita. Todavia, se o juízo de sua obra for estabelecido por uma teoria que lhe é alheia, o resultado só lhe poderá ser desfavorável.

Muito das objeções feitas ao poeta baiano derivam de pressupostos apriorísticos assentados no “bom gosto” e no “bom senso”, seja lá o que isso for, das críticas neoclássicas ou que com elas flertam. Não por acaso semelhantes objeções recaem sobre obras de outros autores de nossa literatura, tais como Gregório de Matos, Aluísio Azevedo, Oswald de Andrade, Jorge Amado, Nelson Rodrigues, Plínio Marcos entre outros.

É o caso de perguntar onde se encontram os defeitos, se nos autores objetos da crítica ou na própria crítica mergulhada na ilusão de valores esternos e absolutos de equilíbrio, perfeição e beleza – invariavelmente eurocêntrica.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Texaco, de Patrick Chamoiseau



Texaco é o nome da favela originada a partir de uma ocupação popular no terreno em que funcionou um dos reservatórios de combustível da multinacional de petróleo, na cidade de Fort de France, Martinica.

Fort de France, por sua vez, não era exatamente uma cidade, mas um forte, como diz o nome, que, construído pelo governo colonialista francês para defender a ilha, cresceu em razão de a outra cidade, a principal, Saint Pierre, ter sido atingida pela explosão de um vulcão que a riscou do mapa por completo, fazendo desaparecer em questão de horas mais 30.000 habitantes.

Nessa favela, Patrick Chamoiseau entrevista a líder da ocupação, a idosa negra, alta e de olhar intimidador, para coletar depoimentos de sua tese de pós-graduação, voltada para a preservação da memória oral e para aspectos da linguagem crioula que, na ilha, rivaliza com o francês oficial.

As histórias que essa mulher incrivelmente sedutora tem para contar a Chamoiseau, no entanto, promoverão uma reviravolta nas intenções do estudante universitário, o qual converterá os depoimentos tomados em um dos romances mais importantes da literatura em língua francesa da década de 1990.

Marie-Sophie Laborieux conta sua história e a da luta dos negros na ilha da Martinica desde seu avô, encarcerado e morto sob bárbara tortura, por ter sabotado fazendas escravocratas, no século XIX, até o momento em que a prefeitura de Fort de France, em fins do século XX, decide urbanizar a favela Texaco, na qual se refugiou parte da população negra excluída do progresso pós-libertação dos escravos.

A luta de seu avô prossegue na de seu pai, Esternome, que assiste do alto do morro em que mora à extinção fumegante da cidade de Saint Pierre que, calcinada pelo calor e pelo enxofre do vulcão, enterra Ninon, a mulher por quem nutriu um amor vertiginoso e cheio de dor.

Porém, Marie-Sophie Laborieux não é filha desse amor, a ela relatado pelo pai, mas de Idoménée Carmélite Lapidaille, uma cega com quem Esternome vive um amor cheio de carinho e amizade, após emergir emocionalmente da tragédia que vitimou sua Ninon.

A história da Martinica envolve cada palavra desse romance cheio de calor humano e coragem, no qual negros revoltosos, mentôs – os feiticeiros que guardam em seu corpo os mistérios das plantas, dos bichos e da África ancestral –, mulatos aspirantes à ascensão social e brancos escravocratas disputam cada palmo de terra e cada gota de felicidade.

Na dura herança que recebeu do avô, do pai e da mãe, Marie-Sophie Laborieux inclui a luta pela felicidade amorosa. Narra a Chamoiseau, sem meias palavras, os vários homens com quem, desde a juventude e até o momento do depoimento, compartilhou seu belo corpo negro, alto, esguio e cheio de calor.

Porém, tendo se tornado lenda, em razão de sua liderança empedernida na ocupação e defesa da Texaco, apenas um desses amantes -  por ironia do destino ou por predestinação de sua história cheia de mistérios enxergadas pelos mentôs - se tornará seu parceiro definitivo, numa época em que seu corpo recebe já os sinais da menopausa: um caçador de monstros marinhos, cujo maior feito terá sido livrar a costa da Texaco de tubarões que impediam a pesca e colher, como prêmio insuspeitado, o coração e o corpo amoroso dessa Marie-Sophie, com todo o mel de doçura que a luta não amargou.

É com esse caçador de monstros marinhos, lendário como ela própria, que Marie-Sofie encerrará seus dias, tendo compreendido com ele que, desta vez, a prefeitura, com seu urbanista mulato não vem preparar uma ação violenta para a desocupação da favela, mas ajudar o bairro crioulo a integrar-se à cidade, mantidas a memória de luta e a arquitetura crioula.

Chamoiseu nos diz isso de forma comovente, e não dirá muito mais, pois um belo dia, retornando à Texaco, encontra mortos Marie-Sophie Laborieux e seu amado caçador de monstros marinhos.

FONTE: Chamoiseau, Patrick. Texaco. São Paulo, Cia. Das Letras, 1993.