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quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

SEARA VERMELHA: Uma seara que resiste ao tempo – Parte 7


Este artigo, capítulo de minha tese de doutorado na Universidade de São Paulo, foi publicado na íntegra no encarte da revista Princípios, quando da comemoração dos 100 anos de nascimento de Jorge Amado.  Hoje, a sétima e última parte.

A linguagem do romance, situada entre o padrão culto informal, mais identificada com o narrador, e o popular-regional, mais identificado com as personagens centrais do enredo significa maior eficiência comunicativa em relação a um leitor não especializado, que o autor deliberadamente logrou incorporar ao universo de leitores.

Obviamente, organizar  em torno e a partir da literatura um público jovem e adulto antes alheio a ela não se faz sem que se empreguem esquemas introdutórios e mesmo facilitadores de leitura, tais comoclichês, repetições, redundâncias, desenvolvimentos lineares, reduções interpretativas, entre outros.

Em Seara vermelha esses recursos, voltados à intenção de transformação do leitor em militante, se dão como verdadeiro manual de doutrina política. Hoje, muitas restrições podem ser feitas, e o são, a essa poética e a esse estilo, porém, não se pode negar que eles já foram largamente apreciados pelas mesmas razões que hoje são apontadas como defeitos.

Se lembrarmos que a Semana de Arte Moderna foi organizada para despir a linguagem artística do fraque e cartola em que estava vestida, seremos obrigados a reconhecer, para além do sucesso de público, a importância de Jorge Amado em aproximar o espetáculo das palavras do homem comum, enquanto tema, enquanto personagem e enquanto endereçamento de discurso.

A verdade é que Jorge Amado jamais dirigiu-se à elite letrada: sua preocupação foi sempre escrever sobre o povo e para o povo, que nunca é o que as classes cultas, ai delas, desejam que ele seja.
Seara vermelha acrescenta a essa desconformidade à do registro literário de um estágio do pensamento e das práticas sociais revolucionárias da primeira metade do século XX brasileiro, de que o autor foi protagonista, em seus desacertos, mas também em seus momentos gloriosos.

Os caminhos da permanência de uma obra literária são quase sempre insondáveis. É o caso de perguntar como uma obra tão perseguida, queimada na fogueira, proscrita, acusada como vulgar e mesmo sem valor, resiste ao tempo, às objeções e permanece.
Talvez Jorge Amado tenha escutado, ao aproximar seu ouvido do coração povo, algo que parte de nossa crítica, tão subalterna em face de modelos importados, não tenha sido até hoje capaz – se é que um dia o será.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Almeida, Alfredo W. Berno de. Jorge Amado: política e literatura. Rio de Janeiro, Campus, 1979.
Bastide, Roger; Táti, Miécio et alii. Jorge Amado, povo e terra. São Paulo, Martins, 1972.
Carone, Edgar. O PCB. São Paulo, Difel, 1982.
Duarte, Eduardo Assis. Jorge Amado: romance em tempo de utopia. Natal, UFRN-Editora Universitária. 1995.
Gomes, Álvaro Cardoso. Jorge Amado. 2 ed. São Paulo, Nova Cultural, 1988.
___________.Roteiro de leitura: Capitães de Areia, de Jorge Amado.São Paulo, Ática, 1996.
Konder, Leandro. A derrota da dialética: a recepção das idéias de Marx até o começo dos anos 30. Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1988.
___________.Intelectuais brasileiros e marxismo. Belo Horizonte, Ofina de Livros, 1991.
Martins, João de Barros. Jorge Amado: trinta anos de literatura. Rio de Janeiro, Record, 1993.
Raillard, Alice. Conversando com Jorge Amado.Trad. Annie Dymetaman. Rio de Janeiro, Record, 1991.
Rubin, Rosane; Carneiro, Maciel. Jorge Amado: oitenta anos de vida e obra. Salvador, Casa da Palavra, 1992.
Santos, Itazil Benício. Jorge Amado: retrato incompleto. Rio de Janeiro, Record, 1993.
Táti, Miécio.O baiano Jorge Amado e sua obra. Rio de Janeiro, Record, 1980.


terça-feira, 29 de janeiro de 2013

SEARA VERMELHA: Uma seara que resiste ao tempo – Parte 6



Este artigo, capítulo de minha tese de doutorado na Universidade de São Paulo, foi publicado na íntegra no encarte da revista Princípios, quando da comemoração dos 100 anos de nascimento de Jorge Amado.  Hoje, a sexta parte.


A cruzar o enredo linear e os planos narrativos de Seara vermelha, as repetições vão ecoando nas diversas vozes e nos planos narrativos: o narrador denuncia a associação entre alienação-messianismo-cangaço-latifúndio e essa denúncia vai se repetindo nas vozes das personagens e se concretizando na forma de cenas. O mesmo ocorre em relação a inúmeros outros enunciados, desde os relativos às premonições de Zefa até as enfáticas descrições sensuais de Marta e de Gertrudes.

Aqui, as repetições e redundâncias cumprem funções estruturais: estabelecem vínculos e identidades entre personagens, movem a máquina do enredo, com a ressalva de que têm também funções pedagógico-literárias e pedagógico-políticas,  que tem valido a esse romance uma dupla acusação: a de populismo literário e a de populismo político.

Sobre esse particular, Alfredo Bosi, em seu História concisa da literatura brasileira, assim discorre:

Cronista de tensão mínima, soube expressar largos painéis coloridos e facilmente comunicáveis que lhe franqueariam um grande e nunca desmentido êxito junto ao público. Ao leitor curioso e glutão a sua obra tem dado de tudo um pouco: pieguice e volúpia em vez de paixão, estereótipos em vez de trato orgânico dos conflitos sociais, pitoresco em vez de captação estética do meio, tipos “folclóricos” em vês de pessoas, descuido formal a pretexto da oralidade... Além do uso às vezes imotivado do calão: o que é, na cabeça do intelectual burguês, a imagem do eros do povo. O populismo literário deu uma mistura de equívocos, e o maior deles será por certo o de passar por arte revolucionária. No caso de Jorge Amado, porém, bastou a passagem do tempo para desfazer o engano”. (Bosi, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo, Cultrix, 1975, p. 456-457)

Aqui, em que pese o grande intelectual que é Alfredo Bosi e o peso de suas palavras nos meios acadêmicos, tudo indica que seu juízo crítico, afetado seguramente por indisposições subjetivas, periclitou, uma vez que a obra do escritor soteropolitano não cessa de ser reafirmada junto ao público e a consideráveis setores da crítica.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

SEARA VERMELHA: Uma seara que resiste ao tempo – Parte 5

Este artigo, capítulo de minha tese de doutorado na Universidade de São Paulo, foi publicado na íntegra no encarte da revista Princípios (out/nov 2012), quando da comemoração dos 100 anos de nascimento de Jorge Amado.  Hoje, a quinta parte.

Não por acaso cangaço, messianismo e loucura são associados tão diretamente: as personagens que os representam são identificadas com a alienação, nível mais baixo da pirâmide simbólica criada pelo autor para representar os estágios de consciência de classe.

E também não é casual a ordem cronológica adotada para representar os eventos. À medida que a leitura avança pelas páginas, o leitor vai sendo conduzido sem tropeços pelo narrador pela rede de eventos até entregá-lo, são e salvo, à porta do comitê do PCB ao final do volume.

Durante essa aventura simbólica o leitor assiste às injustiças contra os inocentes, à penúria dos retirantes, aos insucessos e trapaças dos inimigos de classe, aos desvarios do cangaço e do messianismo, à violência contra os revolucionários etc.

E toda essa via crucis a que o leitorassiste tem a função de ensiná-lo que o acúmulo de quantidade resulta em salto de qualidade, noutras palavras, que quantidades dessas experiências dolorosas levam irremediavelmente à luta de emancipação (o salto de qualidade), nos moldes dos versos de Castro Alves que servem de epígrafe inicial do livro:

Cai, orvalho do sangue do escravo,
Cai, orvalho na face do algoz.
Cresce, cresce, seara vermelha,
Cresce, cresce, vingança feroz...
(Amado, Jorge. Seara vermelha. 46 ed. Rio de Janeiro, Record,  p. 274).


Assim,tanto a estrutura hierarquizada dos planos narrativos– e no interior de cada um deles as personagens  – quanto a ordem cronológica linear contam em favor dos revolucionários: de baixo para cima da pirâmide de entes narrativos vai-se em direção à consciência revolucionária, cujo representante máximo é o próprio narrador; e do início ao fim do romance, em avanços cronológicos, vai-se em direção da revolução democrático-burguesa, cujo representante concreto no enredo é Neném, elo entre o enredo e uma da epígrafes iniciais do livro, assinada por Luís Carlos Prestes:

... está no latifúndio, na má distribuição da propriedade territorial, no monopólio da terra, a causa fundamental do atraso, da miséria e da ignorância do nosso povo.
Seara vermelha centra seu enredo numa família de flagelados da seca, expulsa da terra e forçada a cruzar a caatinga a pé . A família sofre baixas na travessia, se desmembra, mas não se extingue e atinge seu objetivo:
O trem resfolegava. A máquina começou a andar, vagarosa ainda. Aumentou a velocidade, Gregório saltara. Jucundina levantou-se então, afastou a mão de Jerônimo que a segurava, jogou-se para a janela. Jerônimo levantou-se também para obrigá-la a sentar-se. Mas em vez de fazê-lo debruçou-se sobre ela a tempo de ver ainda, no canto da estação, de vestido vermelho, a figura de Marta acenando com a mão. O trem apitava na curva. (Idem. O trem-14, p. 190).

Embora linear , o enredo assume forma de espiral quando Neném, ao final do romance, num tempo ficcional posterior, retorna à caatinga para realizar sua pregação revolucionária e para dar início a uma nova história, situada além do desfecho do romance.

*     *     *
Seara Vermelha, o filme (1964), por Rubens Ewald Filho:

Adaptação de um livro um pouco esquecido, sobre família que tem que se mudar para cidade grande e sua destruição. Embora este filme não seja reprisado, nem esteja disponível, nunca consegue esquecer desta adaptação do italiano Alberto D´Aversa (1920-69), importante professor e diretor de teatro. Nem da cena final nunca vista: quando a heroína enojada (Esther Mellinger) jogava uma cusparada bem na lente da câmera. Com Sadi Cabral, Fregolente, Margarida Cardoso.




sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

SEARA VERMELHA: Uma seara que resiste ao tempo – Parte 4


Este artigo, capítulo de minha tese de doutorado na Universidade de São Paulo, foi publicado na íntegra no encarte da revista Princípios, quando dacomemoração dos 100 anos de nascimento de Jorge Amado.  Hoje, a quarta parte.

O camponês banido da terra e tornado retirante, o militar que se torna revolucionário, a prostituta, o cangaceiro, o fanático religioso, o capataz a serviço do latifúndio, o fazendeiro, o político corrupto etc. são agentes sociais entendidos pelo autor como participantes da luta de classes e concretizados no enunciado na forma de personagens.

O distanciamento progressivo entre Artur e os trabalhadores da fazenda não é apenas um evento a mover o enredo, mas uma metáfora da traição de classe, do mesmo modo que a adesão de Juvêncio ao comunismo é não apenas mais uma solução narrativa, mas convocação para que o leitor, levado a assumir posição no esquema traçado pelo narrador, proceda de igual modo.

O sentido das associações e divórcios entre narrador e personagens é tão declaradamente assumido que até mesmo vísceras das disputas intestinas do movimento comunista são expostas um tanto gratuita, simplória e memso sectariamente:

– Trotskista e policial é a mesma coisa... – resumia o sapateiro, rasgando as últimas páginas do livro condenado./ Na cadeia, muito depois, Juvêncio teria tempo para ler e ter sua opinião sobre os trotskistas – tão arraigada nele devido à paixão com que o sapateiro falara – iria se reforçar diante das provas e dos fatos (Amado, Jorge. Seara vermelha. 46 ed. Rio de Janeiro, Record,  p. 274).

E o são para que o leitor, levado pelo narrador a associar-se ao ponto de vista de Juvêncio, posicione-se na vida real tal como a personagem se posicionou na cadeia, ante a rixa entre stalinistas e trotskistas.
Em Seara vermelha, tanto quanto a posição ocupada pelo narrador onipotente e onipresente, todo o projeto literário subjacente reflete esse comunismo de época de que Jorge Amado foi tão partidário.

O personalismo dos grandes retratos do dirigente partidário máximo pendurados nas paredes dos comitês tem sua contrapartida, nesse romance, no destaque dado ao narrador sabe-tudo e nas alusões elogiosas a militantes de destaque, em cujos registros de fala o paternalismo é percebido indisfarçavelmente.

Em tudo a estrutura de Seara vermelha alude à maneira particular pela qual o PCB procurava se organizar segundo o princípio do centralismo democrático, entendido de modo bastante particular: no plano narrativo superior está o narrador, assim como no Comitê Central estava o Secretário Geral do Partido.

O dirigismo bastante criticado no comunismo de então é irmão gêmeo dos procedimentos da efabulação desse romance, que é como aquele dedo do dirigente a apontar o rumo certo das ações.

A confirmar essa hierarquização rígida dos planos narrativos, reflexo mais de pensamento cartesiano e hieraquizador do que dialético, os entes ficcionais funcionam como uma pirâmide de pavimentos, no topo da qual vai o narrador, seguido logo abaixo pelas personagens representativas dos revolucionários, sob os quais vão, por sua vez, outros tantos empilhados, representações dos variados graus de consciência de classe, do inferior ao superior.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

SEARA VERMELHA: Uma seara que resiste ao tempo – Parte 3


Este artigo, capítulo de minha tese de doutorado na Universidade de São Paulo, foi publicado na íntegra no encarte da revista Princípios, quando dacomemoração dos 100 anos de nascimento de Jorge Amado.  Hoje, a terceira parte.

A legalização do PCB e seu vertiginoso crescimento no imediato pós-II Guerra criou em torno de suas teses uma aura de respeito e confiança que empolgou uma grande parcela da intelectualidade. Para um Jorge Amado tantas vezes perseguido por sua corajosa literatura fiel ao PCB, nada mais coerente do que, nesse curto período de legalidade democrática, continuar a fazer em condições favoráveis e de maneira ainda mais desassombrada o que fizera em condições extremamente adversas.

É por isso que, no centro dos conflitos representados pelo romance, está a luta entre camponeses e latifundiários, e é também por isso que Neném, ao final dele, retorna à terra em que nasceu: concretização da consciência do narrador na forma de personagem, ele vai sublevar os camponeses, coluna mestra da primeira etapa da revolução brasileira, segundo o pensamento do PCB da época. Pode-se se objetar hoje sobre o grau de acerto do Partido e do ficcionista – o primeiro em razão das teses, o segundo em razão da adesão incondicional a elas – porém, jamais sobre a generosidade e a coragem de ambos que, mesmo quando erraram foram, num sentido moral, ético e humano, grandes.

O pendor radicalmente partidário a que em nenhum momento Seara vermelha se furta está na base das simpatias e antipatias entre o narrador e as personagens.

Representações estilizadas de classes sociais ou de setores de classes, as personagens são retratadas de modo a conquistar o leitor para a causa política defendida pelo narrador,do que deriva a crítica ácida de setores acadêmicos, para os quais esse é um dos mais panfletários romances da obra de Jorge Amado e da literatura brasileira.

Desde o início do romance, quando o capataz Artur vai sendo diferenciado e distanciado do conjunto de trabalhadores, até o final, quando Neném volta ao sertão baiano e reecontra Militão, as aproximações e distanciamentos funcionam como metáforas da luta de classes nos moldes entendidos pelo PCB de então, e talvez o esquematismo dessas associações e dissociações se deve menos às técnicas composicionais empregadas pelo autor e mais ao pensamento partidário que subjaz a elas. 

Porém, há aqui um grande mérito de Jorge Amado, para quem a história e a sociedade são placenta legítima de a criação literária: nesse e em seus demais romances militantes está registrada uma forma de pensar do movimento revolucionário de época, que, nem por ser hoje objeto de críticas, deve ser ignorado ou escamoteado.

*     *     *


Seara Vermelha, o filme (1964), por Rubens Ewald Filho:

Adaptação de um livro um pouco esquecido, sobre família que tem que se mudar para cidade grande e sua destruição. Embora este filme não seja reprisado, nem esteja disponível, nunca consegue esquecer desta adaptação do italiano Alberto D´Aversa (1920-69), importante professor e diretor de teatro. Nem da cena final nunca vista: quando a heroína enojada (Esther Mellinger) jogava uma cusparada bem na lente da câmera. Com Sadi Cabral, Fregolente, Margarida Cardoso.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

SEARA VERMELHA: Uma seara que resiste ao tempo – Parte 2


Este artigo, capítulo de minha tese de doutorado na Universidade de São Paulo, foi publicado na íntegra no encarte da revista Princípios, quando da comemoração dos 100 anos de nascimento de Jorge Amado.  Hoje, a segunda parte.

Fixado de uma vez para sempre num ponto de vista imóvel, a posteriori e acima, esse narrador, que dá por verdade uma verdade, a sua verdade,  segrega os opostos dialéticos acreditando confrontá-los, e entende essa segregação como síntese da luta entre contrários.

Assim, cangaço e revolução não podem coexistir numa só personagem, Jucundina segue um caminho de aprendizagem cumulativo e sem recuos, a ação revolucionária de Neném resulta necessariamente na filiação sem conflitos de Tonho ao Partido Comunista do Brasil.

Esse narrador criado por Jorge Amado apresenta-se, pois, despido de contradições, o que para a dialética é não uma contradição, mas um contra-senso, uma vez que se para ela o desenvolvimento social decorre da luta de classes, o desenvolvimento das idéias decorre da luta de idéias, à qual é inerente a contradição.
Jorge Amado foi deputado pelo Partido Comunista do Brasil em 1946, ano de publicação de Seara vermelha.

Esse romance, representativo de um alto grau de partidarização de sua obra e seu narrador, é efetivamente ficcionalização de um comunismo brasileiro de época, que se teve em Luís Carlos Prestes, no campo da política, seu principal expoente – não é a toa que, além de a João Amazonas, o livro seja dedicado a ele –, teve em Jorge Amado, no campo literário, seu mais assumido e desassombrado representante, para o bem e para o mal.

Para esse comunismo de época – aparentemente muito harmônico mas que explodirá em contradições com a morte de Stalin e com o posterior XX Congresso do PCUS, na URSS –, a dialética assume feições de panaceia, cujo domínio “seguro” levaria a pensamentos em perfeita harmonia com a realidade. Não se está aqui, a bem da verdade, muito longe de Descartes –e de um certo determinismo adaptado às necessidades de um raciocínio político um entre voluntarista e messiânico.

Tratado como escritor oficial do Partido, Jorge Amado procurou dar ao leitor não apenas sua versão sobre a revolta de 1935, mas também e principalmente representar na forma de romance o diagnóstico de época do próprio Partido sobre as causas das mazelas sociais do Brasil de então, bom como sua proposta de ação revolucionária.

Para o Partido Comunista do Brasil (PCB) do período, a revolução brasileira respeitaria a duas etapas, uma antilatifundiária e democrático-burguesa, pelo fato de as estruturas fundiárias predominantes serem – de acordo com o mesmo PCB – de caráter feudal, e outra socialista, sendo que a segunda só seria alcançada após a efetivação da primeira, que estaria na ordem do dia.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

SEARA VERMELHA: Uma seara que resiste ao tempo – Parte 1


Este artigo, capítulo de minha tese de doutorado na Universidade de São Paulo, foi publicado na íntegra no encarte da revista Princípios, quando da comemoração dos 100 anos de nascimento de Jorge Amado. Neste blog, será publicado em partes, a partir de hoje.

Em Seara vermelha, de 1946, segundo livro de Jorge Amado mais lido no estrangeiro, simultaneamente dedicado a Luís Carlos Prestes e João Amazonas, entre outros,coerente com seu projeto literário, o autor optou por uma narrativa organizada de modo bastante convencional sem maiores subversões de linguagem. 

Nela o tempo respeita a ordem cronológica e os planos narrativos, assim como as personagem, são estruturados hierarquicamente, como numa metáfora das relações sociais em seu desenvolvimento histórico.
Nessa hierarquia rígida, é do narrador de terceira pessoa que emanam todos os enunciados através dos quais o enredo se desenvolve e as personagens, em discurso direto, falam, e à posição privilegiada e onipresente desse narrador se associa ainda um tom sentencioso que confere a seu discurso uma significativa ilusão de onipotência e objetividade.

O narrador de Seara vermelha ocupa posição central nesse romance: tudo ouve, tudo vê e prevê, tudo sabe e tudo explica. Dado ao leitor pelo autor como metáfora da consciência revolucionária da época, seu partidarismo, estrito senso, faz com que as personagens funcionem como caixa de ressonância de sua voz intensamente ideologizada.

Foco que mobiliza toda a engrenagem narrativa de Seara vermelha, a voz do narrador se oferece ao leitor como registro de uma supra-consciência no interior da qual os fatos, as experiências e as outras consciências representadas pelas personagens se refletem e ganham sentido.

Situada hipoteticamente num momento posterior àquele relatado, essa “supra-consciência”, sob o disfarce de um raciocínio aparentemente dedutivo, conduz unidirecionalmente a narrativa a soluções confirmadoras de seu ponto de vista.

Disso resulta que o leitor, crente de estar “pensando junto” com o narrador, na realidade está sendo induzido inapelavelmente a aderir a um ponto de vista, a uma percepção do mundo, a um partido.

A aparência de verdade que todas as coisas assumem na voz desse narrador é, assim,  mais que busca de representação da realidade, estratégia de convencimento bem urdida, na qual personagens e fatos, sob o manto diáfano da narração, se constituem em elementos de apoio à sustentação argumentativa – motivo pelo qual esse e outros romances de Jorge Amado de igual feitio têm sido apontados como romances de tese.

Os efeitos de integridade, coesão e coerência de Seara vermelha se devem em grande medida ao tipo de narrador criado por Jorge Amado, que articula categorias da dialética, sem dúvida, porém, de forma um tanto mecânica, por mais contraditório que isso pareça.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Os flagelados do vento leste, de Manuel Lopes

Sob o signo da ambiguidade*

As menções que se fazem ao romance Os flagelados do vento leste, do escritor caboverdiano Manuel Lopes, frequentemente estabelecem relações diretas entre ele e obras de autores brasileiros. Todavia, essas menções não são unânimes nem quanto aos autores, nem quanto às obras, nem quanto às classificações, nem quanto à natureza dessas relações (se de influência ou de livre apropriação).

A imprecisão no estabelecimento de tais relações tende a provocar uma distorção de juízo relativa a Os flagelados do vento leste: qualidades que lhe dão sentido como peça relevante de uma literatura específica do macrossistema das literaturas de língua portuguesa acabam relegadas a um segundo plano.

Esse reconhecimento de especificidade se vê perturbado por aproximações inescapavelmente hierárquicas, que alternam Brasil e Portugal na posição de matrizes culturais:

As idéias, já ultrapassadas, de Gilberto Freyre contribuíram, nos anos 40 e 50, para uma nova ideologia brasileira para exportação e que servia os interesses da burguesia nacional ao passo que dava certo prestígio ao Brasil na arena internacional. Assim compreendemos porque Balthazar Lopes e aquele grupo reduzido de amigos, que chegaram à maturidade intelectual nos anos 30, se viam tão inspirados pelo lusotropicalismo quanto limitados pela sua incapacidade de chegar a um tipo de compromisso entre o status político e a autonomia sócio-cultural do arquipélago. (Hamilton, Russel G. Literatura africana, literatura necessária. Lisboa, Edições 70, 1984, p. 98);

 (...) com a sua idéia do sucesso de um passado legítimo, de alguma maneira semelhante ao do Brasil, os intelectuais caboverdianos olhavam para o país sul-americano como um modelo e como uma sociedade irmã. (Idem, p. 122);

 (...) Os jovens do grupo’Certeza’ lançaram a sua revista sob a influência mais identificável do neo-realismo português e brasileiro (no caso do Brasil era uma questão da continuada e mais intensa influência dos nordestinos).(Idem, p. 125).

A busca de fontes de influência orienta não apenas a leitura de críticos, que visam estabelecer laços entre culturas, mesmo quando isso não resulte em hierarquização cultural: também os ficcionistas tendem a essa perspectiva, mesmo quando isso explique pouco a particularidade de suas obras:

Em Março de 1933, Balthazar Lopes escrevia no primeiro número do jornal semioficial Notícia de Cabo Verde que os cabo-verdianos deveriam ser ‘intransigentemente regionalistas’ para serem ‘inteligentemente portugueses’. Cada um poderia interpretar esta afirmação à sua maneira (Davidson, Basil. As ilhas afortunadas. Lisboa, Caminho, 1988, p. 67).

A aceitação desse ponto de vista – sobretudo de antemão – causa sérios prejuízos para o estudo concreto das obras, pois as enforma aprioristicamente num programa determinado.

Com relação à obra de Manuel Lopes, dois rótulos já se vão cristalizando, na senda do estabelecimento de fontes de influências e na de uma classificação literária peremptória, não sem implicações para sua recepção: o de que teria relação direta com o regionalismo nordestino brasileiro e o de que lhe cabe comodamente a classificação de neo-realista.

A leitura orientada pelo primeiro desses rótulos enquadra a obra do escritor caboverdiano sob o raio de influência estilística de uma das tendências do modernismo brasileiro; a que se faz direcionada pelo segundo, coloca-a também na órbita do neo-realismo português. Ou seja, sob dependência de duas literaturas, dois sistemas literários de língua portuguesa.

Quanto ao neo-realismo de Manuel Lopes e ao seu débito para com os escritores do chamado regionalismo nordestino brasileiro, vejamos o que já se observou, particularmente no tocante ao seu romance mais famoso:

Os Flagelados’ é um romance letúrgico-gótico (sic) algo na tradição de certos romances pós-realistas e positivistas, como o Canaã (1901) de Graça Aranha (1868-1931). Semelhante a esse romance brasileiro, Flagelados contém cenas arrepiantes de tragédias, crimes hediondos e sortilégios contados num estilo supra-realista e operático (sic) ( Hamilton, Russel . Cf. op. cit. 1984,  p. 155).

Assim como há espaço para considerá-lo neo-realista, há para considerá-lo outra coisa. Pós-realista seria sinônimo de pré-modernista? Além do mais, Canaã, versando sobre a imigração alemã no Estado do Espírito Santo, tampouco se enquadra nos limites da literatura regional nordestina.

A bem da verdade, a obra publicada de Manuel Lopes não constitui uma unidade homogênea desprovida de contradições e ambivalências. Por isso, classificações e aproximações taxativas explicam pouco de sua natureza. Tanto sua narrativa quanto suas técnicas só podem ser analisadas como resultantes parciais de um processo de maturação autoral coincidente com um momento bastante particular da vida de Cabo Verde, o da gestação da independência nacional, com toda sua complexidade, marchas, contra-marchas, contradições, antagonismos, soluções inesperadas e impasses políticos, econômicos, teóricos, ideológicos, culturais, lingüísticos e literários.

Se a aceitação prévia de classificações para fins de estudo muitas vezes resulta em erro, que dizer então quando elas nem são concordantes, como no caso particular da obra de Manuel Lopes?

De qualquer maneira, a quem caberia a responsabilidade por essas classificações por vezes díspares? Ao trabalho crítico? À obra do autor, ela mesma propícia a linhas divergentes de reflexões?

Creio que Os flagelados do vento leste, obra que maior prestígio angariou para Manuel Lopes, necessita ser compreendida como ponto de convergência das contradições e ambigüidades do próprio autor: neo-realista ou “gótico”, ou os dois e algo mais? Regionalista português? Nacionalista?

Ao propor o êxodo do excesso populacional como saída para a situação catastrófica do homem das ilhas, ele nos levaria a entendê-lo efetivamente como regionalista português:

A emigração foi o caminho que o Cabo-Verdiano buscou, não apenas quando era possível e fácil (lembre-se que a emigração começou com as baleeiras americanas, já no segundo quartel do século passado) mas agora e sempre, no objectivo de solucionar, à sua maneira, seus impasses financeiros. O caminho indicado, afinal, em circunstâncias tais como as presentes. Todavia, embora contrariada por toda espécie de obstáculos, a emigração representa, hoje, um contributo efectivo traduzido em divisas entradas e em melhoria do nível de vida das classe pobres com incidência no comércio (Lopes, Manuel. “Problemas e realizações”. Comunidades portuguesas. Revista trimestral da União das Comunidades de Cultura Portuguesa, no. 22, abril/1971, p. 33).

Já ao dar voz, por meio da linguagem literária, ao homem caboverdiano, poderia ser compreendido como um dos fundadores da identidade caboverdiana: 

[‘Galo cantou na baía’ é o] primeiro conto da literatura caboverdiana (Abdala Jr., Benjamin. (“Estado e nação nas literaturas de língua portuguesa: perspectiva política e cultural. Sentido que a vida faz – estudos para Oscar Lopes. 1 ed. Porto, 1997, p. 245.).

A obra de Manuel Lopes, Os flagelados do vento leste tomada como polo de comparação literária, ganha mais importância se problematizada nos diálogos com obras, autores e estilos por ela mesma propostos, do que se sua natureza específica e não poucas vezes contraditória for reduzida a classificações taxativas e submetida a uma sempre discutível contabilidade de influências que, mesmo quando estabelecidas, pouco elucidam.

O livro foi adaptado com o mesmo título para o cinema em 1987 por Antônio Faria.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Vidas secas, de Graciliano Ramos

Os Retirantes - Cândido Portinari, 1944.

UMA GEOGRAFIA DA INJUSTIÇA SOCIAL



Os brasileiros estão habituados a ouvir frases do gênero: “O Brasil é um país continental”, “Não existe um Brasil, mas muitos brasis”, “O Brasil é um país de contradições” e outras mais.


Os muitos brasis


Embora clichês, essas frases feitas não deixam de revelar um conhecimento, ainda que estereotipado, da realidade brasileira: uma das principais características do Brasil é exatamente a diversidade, sob todos os aspectos.

Com efeito, assim como não existe um tipo físico padrão de brasileiro – brancos, negros, mestiços, índios, descendentes de orientais, de árabes, de europeus, altos, baixos, todos comparecem com suas particularidades para dar à nação sua face diversificada –, também não existe uma paisagem que represente a identidade geográfica de todo o país: há o litoral e o interior, a Amazônia e o agreste, o pantanal e o pampa, o sertão e as metrópoles.

A própria ocupação territorial e a delimitação das fronteiras nacionais, que acabaram dando ao Brasil o formato de uma harpa, nas palavras do poeta, foram feitas por partes –– os casos das expedições bandeirantes e das lutas contra as invasões holandesas e francesas bem o ilustram.

A adaptação produtiva do homem às condições econômicas oferecidas pelo meio natural foi moldando o tipo de sociedade de cada região, e também foi povoando essa grande porção do mundo chamada Brasil de inumeráveis pequenas verdades, parciais, regionais e culturais tão particulares que lhe imprimiram traços locais de identidade.

Assim, a produção açucareira, no Nordeste, a extração da borracha, no Norte, a exploração das minas de metais preciosos e o cultivo do café, no Sudeste, a pecuária no Sul e no Centro-Oeste foram constituindo elementos de identidade regional sem os quais não se consegue compreender o Brasil.

A diversidade não se restringe apenas à adaptação do homem ao meio: além das diferenças culturais e físicas, o que é verdadeira riqueza humana, há os desníveis sociais e econômicos, que acentuam um lado pouco auspicioso das identidades e diferenciações: a miséria, cujo pólo oposto é a alta concentração de riqueza.

Compensa aqui uma visita ao índice de Gini:

"O índice de Gini é um indicador que mede a desigualdade da distribuição de qualquer coisa entre os elementos de um conjunto. Pode ser usado para indicar a riqueza ou a renda de um país entre seus habitantes ou a distribuição de propriedade da terra. O índice de Gini varia de zero até um. No caso da terra, por exemplo, ele seria igual a um se a totalidade da terra pertencesse a um único proprietário; e seria igual a zero se a terra fosse distribuída em partes absolutamente idênticas entre todos os proprietários. A concentração é considerada nula quando o índice de Gini está entre 0,000 e 0,100; fraca quando está entre 0,101 e 0,250; média, entre 0,251 e 0,500; forte, entre 0,501 e 0,700; muito forte, entre 0,701 e 0,900; e absoluta, entre 0,901 e 1,000." (Retrato do Brasil. São Paulo: Ed. Política, s. d. v.3, p. 62-64).

O índice de Gini, aplicado à questão da propriedade rural no Brasil, indica:

Tabela da concentração da terra no Brasil

Sul
Sudeste
Centro-Oeste
Nordeste
Norte
1960
0,727
0,771
0,845
0,846
0,944
1970
0,727
0,761
0,856
0,863
0,868
1980
7,43
0,769
0,844
0,861
0,835

Assim, quanto mais alto o índice de Gini, maior a concentração, neste caso, da terra.

Na Tabela da concentração da terra no Brasil há diferenças de concentração fundiária entre as regiões, mas todas elas, no ano de 1980, situam-se na categoria muito forte. Segundo o índice de Gini, significa que poucos proprietários detêm muitíssima terra e que muitos camponeses estão privados de qualquer propriedade.

A comparação da concentração da terra no Brasil com a de outros países revela dados eloquentes:

Tabela da concentração fundiária no mundo
Países
Índice de Gini
Concentração
Bélgica, Holanda e Noruega
0,300
EUA, Canadá, Austrália e Nova Zelândia
0,400
Média
Argentina, Uruguai e Chile
0,550
Forte
Índia e Paquistão
0,700
Muito forte
Brasil
0,859
Muito forte
Brasil (incluídos os sem-terra)
0,923
Absoluta
(Idem, Retrato do Brasil).

Mesmo descontados os trabalhadores sem-terra, a concentração fundiária no Brasil, em 1980, era das maiores do mundo, superior à da Índia e à do Paquistão; considerados os sem-terra, o índice de concentração fundiária no Brasil torna-se ainda mais dramático, atingindo a faixa da concentração absoluta.

Com isso, os conflitos em torno da propriedade da terra tornam-se agudos, e a situação dos trabalhadores rurais e dos camponeses sem-terra nas regiões mais pobres e menos desenvolvidas economicamente torna-se desesperadora.

Assim, o êxodo rural brasileiro, a sociologia brasileira do século XX bem o demonstra, particularmente no que tange ao Nordeste do país, não se prende exclusivamente a fatores naturais, tais como a seca, mas também à forma de propriedade rural, que é essencialmente latifundiária e concentradora de terras e riquezas.

Esse aspecto diferencia, claramente, a seca brasileira e suas conseqüências sociais, econômicas, pólitícas e culturais, da seca caboverdiana representada por Manuel Lopes n’Os flagelados do vento leste.

Uma parte do Brasil se espalha por todo o Brasil


Apenas na segunda metade do século XX a população brasileira passou a residir, em sua maioria, nas cidades:

"(...) o movimento mais expressivo da população brasileira tem sido, de modo geral, na direção dos campos para as cidades. Entre as regiões, no entanto, o Nordeste foi a que mais perdeu gente. Em 1872, era a região mais populosa do país: 46,7% dos brasileiros ali viviam. O êxodo contínuo, porém, levou a área a ter, em 1980, menos de 30% do total de habitantes do país. Nesse período, enquanto a população do Nordeste teve um crescimento absoluto de oito vezes, a do Sudeste cresceu 22; a do Sul, 28; e a do Centro-Oeste, 41 vezes. Outro indicador: em 1940, cerca de 5% das pessoas naturais do Nordeste viviam fora da região, proporção essa que não parou de crescer. Em 1960, 11% dos nordestinos viviam noutras plagas; em 1970, já eram 13% e, em 1980, chegavam aos 17%."  (Idem, Ibidem, p. 413).

Antes disso, o Brasil era um país predominantemente agrário. Disso resulta que as tradições regionais estão bastante ligadas às tradições rurais: no Sul, o gaúcho, o cenário dos pampas, o caudilhismo; em São Paulo e Minas Gerais, as experiências da lavoura do café e da criação do gado leiteiro; no Nordeste, o sertanejo na sua luta pela sobrevivência na caatinga etc.

Algumas tradições e personagens sociais, no entanto, mantiveram sua órbita de circulação simbólica limitada à esfera da própria região – como a vivência dos pampas e seu personagem típico: o gaúcho –, ao passo que outras, por vários motivos, nacionalizaram-se e mesmo internacionalizaram-se.

Caso exemplar disso é a experiência da seca do Nordeste e da personagem social dela decorrente: o retirante, a abandonar a terra nos precários paus-de-arara:

"O mais importante [fluxo migratório] e mais antigo é o que se dá a partir do Nordeste via Minas Gerais, em direção ao Sul do país e, em menores proporções, ao Norte e ao Centro-Oeste." (Idem, Ibidem, p. 413.)

A seca do Nordeste é um drama regional que, pelas proporções alcançadas, se tornou comum a todos os brasileiros. Os ciclos desse flagelo espalharam pelo país, particularmente pelo Sudeste, um contingente inumerável de famílias levadas ao limite do desespero, no qual à desagregação do núcleo familiar, ao abandono da infância somam-se ainda mazelas como a degradação da condição feminina, que ganha nos grandes centros urbanos expressão no triste fenômeno econômico, político e social da prostituição.

As cenas se repetem ao longo do século XX, antes registradas nos jornais impressos, hoje também exibidas na televisão. Até o século passado, o Nordeste era a região mais populosa do país; no entanto, o êxodo rural alterou sobremaneira essa situação:

Tabela comparativa Nordeste-Sudeste
Dados em relação à totalidade do país
NE (%)
SE (%)

População
29,4
43,3
Universitários
15,9
60,4
População sem instrução
45,6
31,1
Médicos
18,0
58,5
Pessoas com renda menor que 1 salário mínimo
41,3
34,9
Pessoas com renda menor que ½ salário mínimo
48,8
30,0
Domicílios com luz elétrica
17,0
57,8
Domicílios com abastecimento de água
18,5
52,0
Domicílios com instalações sanitárias
11,3
68,2
IBGE – Censo Demográfico 1980; Anuário Estatístico 1983.



Como se pode depreender da tabela (dados do censo de 1980), embora possua quase 30% da população nacional, o Nordeste tem apenas 18% dos médicos, 15,9% dos universitários, 11% dos domicílios com instalações sanitárias etc. Esses números ajudam a entender o fenômeno do êxodo para outras regiões

A questão nordestina é tão importante que uma grande quantidade de livros de Literatura, História, Sociologia etc. foi escrita sobre ela. A vida dos sertanejos nordestinos foi parar também no cinema (por meio de diretores como Glauber Rocha, por exemplo), no teatro (por meio de autores como Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha) e na televisão (por meio de autores como Dias Gomes).

Uma parte do Brasil se espalha dentro da gente


Na Literatura, uma quantidade enorme de romances, contos, poesias e novelas foi escrita a partir da experiência do homem nordestino, e muitos autores notabilizaram-se ao abordar a temática regional infaustamente mais característica do Nordeste: o flagelo da seca.
No século XX, os autores do chamado, segundo alguns imprecisamente, regionalismo nordestino nacionalizaram as experiências do homem nordestino: José Américo de Almeida (A bagaceira), José Lins do Rego (Menino de engenho), Rachel de Queiroz (O quinze), Graciliano Ramos (Vidas secas), Jorge Amado (Seara vermelha), João Cabral de Melo Neto (Morte e vida severina) etc. etc. etc. Porém, desde o Romantismo, o regionalismo – com  a exploração de temas, personagens e linguagem locais – já era explorado pelos escritores brasileiros:

"A convicção de que o verdadeiro Brasil é o do sertão decorre do modo ‘caranguejo’ como se processou a colonização portuguesa, que procurou se concentrar no litoral, dada a dificuldade de penetração no interior do país. Essa convicção, de fundo nacionalista, reforça-se com a Independência, levando escritores a enveredar pelo sertanismo. José de Alencar (O sertanejo, 1876) e Franklin Távora (O cabeleira, 1876) são os escritores que melhor representam essa tendência, ao oferecer uma visão grandiloqüente e apocalíptica da seca de 1877." (Dácio Antônio de Castro, Roteiro de leitura: Vidas secas, de Graciliano Ramos. São Paulo: Ática, 1997, p. 21.)

A ficcionalização da realidade brasileira em seus múltiplos aspectos, desse modo, conta com tradição enraizada em nossa literatura, a rigor, mesmo anterior ao romantismo, decorrente de esforços de escritores e intelectuais cujos interesses se voltaram para o interior do país.


Uma parte que se espalha pelo mundo 

Cada autor que versou sobre o homem nordestino e especificamente sobre o retirante da seca deu a esse tema sua própria interpretação autoral, em que elementos de poética e de ideologia política se entrecruzam significativamente. Algumas dessas obras alcançaram amplo sucesso internacional, entre elas O quinze, de Rachel de Queirós, Seara Vermelha, de Jorge Amado e Vidas secas, de Graciliano Ramos.

A seca de Graciliano Ramos


Do ponto de vista temático, Vidas secas põe em discussão a propriedade da terra e o papel do poder na manutenção de uma estrutura fundiária iníqua:

"Sinha Vitória mandou os meninos para o barreiro, sentou-se na cozinha, concentrou-se, distribuiu no chão sementes de várias espécies, realizou somas e diminuições. No dia seguinte, Fabiano voltou à cidade, mas ao fechar o negócio notou que as operações de sinha Vitória, como de costume, diferiam das do patrão. Reclamou e obteve a explicação habitual: a diferença era proveniente de juros." (Ramos, Graciliano. Vidas secas. Rio de Janeiro, São Paulo. 1982. p. 93).

No romance de Graciliano Ramos, aspectos políticos e econômicos se destacam em meio ao flagelo da seca, o que se traduz em denúncia não do clima nefasto, mas da estrutura social nefasta, em que os proprietários levam vantagem até mesmo na ocorrência do flagelo:

"Não se conformou: devia haver engano. Ele era bruto, sim senhor, via-se perfeitamente que ele era bruto, mas a mulher tinha miolo. Com certeza havia um erro no papel do branco. Não se descobriu o erro, e Fabiano perdeu os estribos. Passar a vida inteira assim no toco, entregando o que era dele de mão beijada! Estava direito aquilo? Trabalhar como negro e nunca arrajar carta de alforria!" (Ramos, Graciliano.Op. cit p. 93).

Vidas secas resulta da articulação de histórias enxutas em exíguas cento e vinte e poucas páginas, que nasceram separadas:

"Escrevi um conto sobre a morte duma cachorra, um troço difícil, como você vê: procurei adivinhar o que se passa na alma duma cachorra. Será que há mesmo alma em cachorro? Não me importo. O meu bicho morre desejando acordar num mundo cheio de preás. Exatamente o que todos nós desejamos. A diferença é que eu quero que eles apareçam antes do sono, e padre Zé Leite pretende que eles nos venham em sonhos, mas no fundo todos somos como minha cachorra Baleia e esperamos preás." 'Carta à esposa Heloísa de Medeiros Ramos, de 7 de  maio de 1937'. (In Garbuglio, José Carlos. p. 241).

Graciliano Ramos,  tal como revela em sua carta à esposa, opta por congelar as ações, de modo a proceder criteriosamente à análise de seus significados e sentidos:

"É a quarta história feita aqui na pensão. Nenhuma delas tem movimento, há indivíduos parados." (Idem Garbuglio. p. 63).

Ainda do ponto de vista da estrutura narrativa, a participação do autor em Vidas secas se atém à constituição de um narrador que persegue os fatos e as personagens com objetividade, e que vasculha as particularidades com agudeza psicológica.

No tocante às personagens, em Vidas secas elas trilham o caminho do desterro. Porém, família retirante preserva não somente a identidade com a terra – seja na cor da pele, seja nos pés que recusam os sapatos, seja na roupa branca de festa que se tinge do vermelho da poeira –, como também mantém-se íntegra enquanto metáfora de núcleo social, de identidade grupal,  e por que não de classe , e de de integridade psicológica individual e coletiva.
A disjunção do binômio homem-terra opera-se fora das personagens principais: no soldado amarelo ou no patrão que evita exposição ao sol, o que fatalmente promoveria mimetismo terra-pele.

No procedimento empregado por Graciliano Ramos, a terra, espaço local, com tudo que há sobre ela, surge já no enunciado como espaço literário construído, despido de contextualização extraliterária. Seguramente uma das razões disso é que esse gênero de romance, no Brasil, conta com uma tradição que vem desde o século XIX e mesmo antes.

Outra, é que a sociologia brasileira, em que Gilberto Freyre não é nome secundário, oferecia já ampla matéria de reflexão aos ficcionistas, que, até por isso, se viram em condições de abordar certos temas sem maiores ditatismos.

Assim em Graciliano de Vidas secas, as descrições espaciais são sucintas e  e afastam de contextualizações extraliterárias que são abundantes, por exemplo de Os sertões, de Euclides da Cunha:

"Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala." (Ramos, Graciliano. Idem. 1982, p. 9.)

Do ponto de vista da linguagem, o autor alagoano, como os demais da chamada Geração de 30, não se furta de abordar o lado mórbido das experiências humanas em palavras diretas:

"É isso que leva o crítico Tristão de Athayde a assim se referir à década posterior: ‘Passou a hora das coisas bonitas’. Com efeito, um grupo de escritores norte-nordestinos mobilizou-se para tomar os problemas da região como pano de fundo de sua experiência literária." (Castro, Dácio Antônio de. Op. cit. p. 20.)

Graciliano o faz, todavia, por meio de uma linguagem contida, enxuta, em que as figuras, mesmo quando zoomórficas, afastam-se da alegoria e aproximam-se da ironia:

"Ainda na véspera eram seis viventes, contando com o papagaio. Coitado, morrera na areia do rio, onde haviam descansado, à beira de uma poça: a fome apertara demais os retirantes e por ali não existia sinal de comida. Baleia jantara os pés, a cabeça, os ossos do amigo, e não guardava lembrança disso." (Ramos, Graciliano. Op. Cit. p. 11).
 
Vidas Secas é jornada árida na realidade local e social lastreada por uma tradição literária e sociológica importante a que Graciliano Ramos teve acesso e à qual se vinculou consciente e deliberadamente. Vidas secas aproxima-se de um certo mutismo, aliás, magistralmente representado no cinema por Átila Iório na premiadíssima versão de Nelson Pereira dos Santos. Porém essa tradição não se restringe a autores e intelectuais brasileiros ou de língua portuguesa. O crash da Bolsa de Nova Iorque teve repercussões nefastas por todo o mundo, com maior impacto nas áreas de influência direta dos EUA. John Steimbeck, Ernest Hemmingwai, John dos Passos entre outros, flagraram a procissão de deserdados a vagar pelos espaços continentais dos Estados Unidos em busca de uma lata em que receber a sopa doada pelo Estado semifalido durante a década de 1930.



Juan Rulfo, no México, não deixou por menos em seu O planalto em chamas (cuja nova tradução brasileira recebeu o título O chão em chamas).

O neo-realismo português é pródigo em autores e obras situados no âmbito mesma corrente estético-ideológica, crítica, contundente, com laços inegáveis com o marxismo.

Do neo-realismo italiano só compensaria falar se fosse para abrir todo um capítulo ou um livro inteiro dedicado, antes de tudo, a longas, derramadas e merecidas homenagens, seja no que tange à literatura, seja no que tange ao cinema –  que, aliás atraiu, tal como a Hollywood da época,  os melhores escritores, a exemplo de Alberto Moravia.

Em seu romance, Graciliano Ramos, tal como seus colegas de geração pelo mundo, fala de vidas secas, sim, porém não desprovidas de riquezas humanas, de esperanças e de capacidade de resistência frente às dificuldades da vida e às injustiças sociais, cujas origens repousam na exploração de classes, na exploração do homem pelo próprio homem.

* Com poucas adaptações, este é um trecho de minha tese de Doutorado em Letras, na USP.




Jeosafá, professor, foi da equipe do 1o, ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo. É escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria);  em maio de 2015, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora; no mesmo ano publicou A lenda do belo Pecopin da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela editora Mercuryo Jovem. Leciona atualmente para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados.