sexta-feira, 28 de novembro de 2014

HÁ exatos 50 anos, Malcolm X previu revoltas nos EUA

Protesto em Ferguson, novembro de 2014.
Imaginem o que pode acontecer quando esses guetos amargurados e revoltados por toda a América tiverem o incidente de ignição certo, ficarem realmente inflamados e explodirem além de suas fronteiras, para a áreas em que os brancos vivem! Imaginem o que pode acontecer na cidade de Nova York se os pretos enfurecidos deixarem o Harlem, atravessando o Central Park.
(Malcolm X, 1964)

Entreguei há quinze dias à Editora Nova Alexandria o original de O jovem Malcolm X, romance-biografia cuja conclusão me ocupou este ano de 2014.

Assistir a vídeos de suas entrevistas e discursos, ler e reler páginas e mais páginas sobre o que se escreveu sobre ele e o que ele escreveu sobre si mesmo em sua Autobiografia foi uma banho de história - e está sendo ainda, pois embora tenha concluído o original, continuo ainda mergulhado em parte do material que não empreguei no texto.

Tenho acompanhado o noticiário sobre a revolta nos EUA, a partir dos acontecimentos de Ferguson. Como informa o jornalista Altamiro Borges:


Em sua Autobiografia, Malcolm X tratou dessa explosão de violência, já vivida no Harlem no que ele chamou de "o longo e quente verão de 1964":

Fiquei assustado quando compreendi pela primeira vez o perigo representado por esses adolescentes do gueto, se alguma centelha os levar à violência. [...] O longo e quente verão de 1964, no Harlem, Rochester e outras cidades, deu uma ideia do que pode acontecer... e não passou disso. foi apenas uma ideia pálida. Pois todos os distúrbios ficaram restritos aos lugares em que os negros vivam. Imaginem o que pode acontecer quando esses guetos amargurados e revoltados por toda a América tiverem o incidente de ignição certo, ficarem realmente inflamados e explodirem além de suas fronteiras, para a áreas em que os brancos vivem! Imaginem o que pode acontecer na cidade de Nova York se os pretos enfurecidos deixarem o Harlem, atravessando o Central Park. Ou pensem no South Side de Chicago, um gueto mais antigo e ainda pior, imaginando os negros de lá a se espalharem pelo Centro. Pensem nos negros revoltados de Washington avançando pela Pennsylvania Avenue. Detroit já testemunhou uma concentração pacífica de mais de 100 mil pretos... pensem nisso. Podem falar em qualquer cidade. Existe uma dinamite social preta em Cleveland, Filadélfia, San Francisco, Los Angeles... a raiva do homem preto está presente em toda parte, fermentando.

Nascido em 1925 Malcolm X (originalmente registrado Malcolm Little; Omaha19 de maio de 1925 — Nova Iorque21 de fevereiro de 1965),  faria 90 anos em maio de 2015, ano que, em fevereiro, completam-se 50 anos de seu assassinato. Para compreender os acontecimentos de Ferguson, retomar o que ele escreveu em sua Autobiobrafia é essencial.



quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Presentaço do dia do Professor

Foto com alunos do Colégio Eco, na Lapa de baixo, São Paul - SP.
O grande técnico da seleção de 1970
João Saldanha.
Ontem, dia do Professor, meu dia, estive no colégio Eco, na Lapa de baixo, em São Paulo. A escola adotou para o Ensino Fundamental 2 meu livro O diário secreto das Copas, uma novela em que articulei uma história de amor de origem medieval com as biografias do grande João Saldanha e de Therezinha Zerbini,a corajosa lutadora pelos direitos humanos e líder da campanha da Anistia, que colocou a ditadura militar brasileira no banco dos réus.
 

A base literária da novela é a mitológica história irlandesa de Tristão e Isolda, que serviu de base para Shakespeare escrever Romeu e Julieta.

A corajosa Therezinha Zerbini.
A origem dessa comovente história de amor se perde na noite do tempo, na distante Idade Média alemã, na versão Libah e Gunthram – que por sua vez inspirou Victor Hugo e escrever Pecopin e Baldour (que traduzi direto do francês e adaptei para HQ com meu amigo, o ilustrador João Pinheiro).

A conversa com os adolescentes foi muito legal. Carinhosos e curiosos sobre os segredos que estão por detrás das históricas contatadas na novela, ele levantaram hipóteses, teceram interpretações, apontaram possibilidades de leitura para muito além do que eu mesmo tinha imaginado...

Leci Brandão com o livro
O jovem Mandela.
Noutra palavras, recebi um presentaço  do dia dos professores, eu, que há uns 6 anos estou fora da sala de aula – enquanto docente, pois, enquanto autor, tenho frequentado a sala de aula “como nunca antes neste país!” rs rs rs.


Obrigado ao ECO, aos professores e à coordenadora que confiaram seu maior tesouro – seus alunos –, ao mundo que inventei no livro e à minha conversa de ontem.

PS. Sorteei dois volumes do meu livro O Jovem Mandela. Os sortudos foram dois alunos número 13!




Jeosafá é autor de ficção, poesia, ensaios e obras para formação docentes. Professor, lecionou por mais de 15 anos para a Educação Básica e para o Ensino Superior. Conheça sua série de romances sobre São Paulo em clicando em Era uma vez no meu bairro.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Talvez por isso a canção se chame Coração de Estudante, não Coração de aluno

Um texto que, perdido por anos, foi reencontrado

Escrevi este texto há anos para meus alunos de Metodologia Científica, quando lecionei para Ensino Superior. Foi bastante útil durante o curso, pois introduzir os jovens em práticas muitas vezes distantes de seu cotidiano necessitava de uma sessão de desmistificação da ciência. 

Descobrir coisas novas, desvendar segredos, encontrar saídas para labirintos e respostas para quebra-cabeças, qual criança não gosta? Os brinquedos e brincadeiras vivem de propor desafios que, superados, tornam-se grandes conquistas e aquisições cognitivas: o mais inocente jogo de amarelinhas tem regras e complicações que exigem estudo, aprendizagem, reflexão e ação. E criança nenhuma se dispensa de brincar em razão da dificuldade inicial que uma brincadeira ou jogo apresenta.

Então por que, muitas vezes, é tão comum encontrarmos pessoas que dizem detestar o estudo?

Bem, a brincadeira mais interessante pode se tornar tediosa se não soubermos suas regras. Aliás, nossas simpatias e antipatias infantis em relação a esta ou aquela brincadeira estão geralmente relacionadas às dificuldades que não conseguimos superar e que, ao resultarem em seguidas frustrações, causam mal-estar e sentimento de fracasso. Porém, as mesmas coisas que nos causaram frustração, se enfrentadas corretamente, causam uma grata sensação de vitória, realização e plenitude.

Quer na brincadeira mais aparentemente inocente, quer na atividade de estudo, o “como” é decisivo.

Se desconhecemos as regras de um jogo ou brincadeira, mas sabemos “como” encarar gradualmente as dificuldades, a aprendizagem, que faz parte do próprio jogo ou brincadeira, torna-se puro prazer.

Quando alguém diz “detesto estudar”, na verdade devemos ouvir: “detesto sofrer”.  Com efeito, há poucas atividades mais insalubres e enfadonhas do que estudar sem se saber “como”: os segredos se fecham, os desafios se tornam intransponíveis, as tarefas irrealizáveis, a sensação de perda de tempo toma o espírito e o mais comum de se ver, particularmente em crianças e adolescentes – e mesmo jovens –, é eles, mal orientados, dormirem sobre os cadernos ou chorarem sobre eles lágrimas desoladas de derrota.

Mas estudar não precisa e não deve ser assim. Entre o conhecimento que desejamos apreender e o nosso espírito há o “como”. Se não dominamos o “como”, não chegamos nunca aos “porquês”: se sabemos como multiplicar, resolver uma multiplicação pode ser até uma atividade lúdica – a depender do “como”.

E o que se disse aqui sobre crianças, adolescentes e jovens vale para o universitário, que, muitas vezes privado do “como”, lista um rol considerável de restrições contra uma disciplina, um professor, uma escola: é a sensação de fracasso que se transmuta e se torna revolta, é o claro sentimento de que se tem tudo para compreender e resolver um problema e, no entanto, não se consegue encontrar a ponta do liame que, seguido, leva à saída do labirinto.

Dicas de como estudar

Existe um vício na atividade escolar que cabe corrigir: o de que passar os olhos sobre um texto ou lê-lo várias vezes constitua forma eficaz de aprendizagem. Nada mais enganador.

Em primeiro lugar porque passar os olhos sobre um texto não é o suficiente para se apreender os problemas que ele propõe: leitura superficiais não levam à satisfação do espírito, mas denotam preguiça, inimiga mortal de toda atividade de sucesso.

Em segundo lugar porque, se ler muitas vezes o mesmo texto linearmente, com baixa compreensão, não denota preguiça –  muito pelo contrário – , denota falta de habilidade e de método. E o que é método? É o famoso “como”.

Primeira leitura

Antes de tudo, é necessário saber encontrar o texto que desejamos. Quando temos um objetivo a atingir, não podemos nos permitir o luxo de desperdiçar tempo.

Se temos um assunto, tema ou problema a tratar, não podemos apanhar um livro na estante da biblioteca, empregar uma, duas horas de leitura só para então descobrir que o livro, muitas vezes até importante, nada tem a ver com que estamos necessitando naquele momento.

Quando temos definido o que precisamos encontrar, selecionamos os livros pelo assunto em questão, o que elimina a possibilidade de perdermos tempo com obras totalmente fora da nossa área de interesse. Após isso, devemos ler com atenção as informações constantes na capa e contracapa. Obras acadêmicas costumam ter um prefácio, ou apresentação, que resume o que o livro contém, devem também ser lidas.

Se capa, contracapa e apresentação revelaram que o livro pode conter algo de interesse, é hora de consultar o sumário, ou índice, pois é nele que constam os assuntos de que o livro trata.

Suponhamos que haja algo que interesse... devemos ler o livro todo? Não: vamos direto ao capítulo que nos interessa. Se ele for realmente útil para aquela necessidade, devemos realizar uma primeira leitura, com calma e despidos do mito de que uma leitura “dinâmica” resolva: devemos ter ao lado um bom dicionário, isto sim é que resolve, embora não tudo. Consultar a internet também resolve, desde que sejam acessados sites confiáveis.

Nessa primeira leitura devemos marcar a lápis (se o livro for nosso), ou anotar num papel, todas as dificuldades de vocabulário, quer precisam ser solucionadas, bem como as ideias que vão surgindo durante a leitura, relacionadas ou não a ela (às vezes uma ideia boa surge deslocada, se a registramos, pode ser útil em outra oportunidade). Palavra mal compreendida significa erro garantido no futuro, e ideias não apontadas fogem e não voltam mais.

Análise e interpretação do texto

Realizada essa primeira leitura de estudo, que é muito diferente de uma leitura sem compromisso, precisamos marcar no texto trechos importantes, que resumem conceitos ou esclarecem pontos importantes. Essa marcação pode ser realizada a lápis, se o livro for nosso, repito, pois marcar livro de outra pessoa ou de biblioteca demonstra, além de desrespeito e descortesia, imensa inabilidade para com a atividade de pesquisa. 

Não devemos marcar palavras isoladas, mas orações ou trechos de parágrafos na ordem linear de leitura, de modo que um trecho marcado forme uma sequência lógica com o trecho anterior e com o posterior.

Depois de marcados esses trechos, convém lê-los em sequência; quanto maior a habilidade do leitor, mais coerente é a sequência das anotações. Essa sequência enxuta de trechos destacados é o chamado resumo técnico.

Antigamente esses trechos destacados eram transcritos para fichas de cartolina e organizadas em pequenos fichários por ordem alfabética de citação de fonte bibliográfica (que deve constar no topo de cada ficha). Hoje, eles vão direto para o computador (há programa de fichários eletrônicos, mas um editor de texto já dá ótimo resultado). De posse desse material, é hora de conversar com os colegas e com o professor sobre essa atividade e sobre o que foi coletado: é nesse momento que o processo de aquisição cognitiva se torna mais rico, pois haverá quem tenha escolhido outros trechos com maior ou menor felicidade, haverá quem tenha compreendido coisa diversa acerca do mesmo conceito, haverá concordâncias e discordâncias que só serão frutíferas se forem discutidas.

Os trechos fichados ou arquivados no computador são fontes para citação em futuros trabalhos e podem dar origem a resumos muito consistentes, que, por sua vez, ampliados, vertidos para a linguagem do próprio estudante e acrescido de suas reflexões e opiniões, tornam-se resenhas com forte apoio no texto original.

Durante o Ensino Médio e mesmo a Graduação, se o estudante for diligente e criterioso, esforçando-se sempre por produzir esse material a cada leitura, ou pelo menos em relação àquelas mais requisitadas pelos professores, ao final de um ano terá um excelente arquivo. Aliás, muitos professores, entre os quais eu me incluo, atentos para a importância desse material, atribuem conceitos a ele e o elevam à categoria de avaliação, pois um fichamento bem feito revela domínio do “como” estudar, ou seja, do método acadêmico.

*                     *                      *

Para um estudante não pode haver prazer maior do que se sentir capaz de navegar por conta própria pelo mundo do conhecimento, guardado no segredo dos livros e das bibliotecas – e da internet.

É lógico que é trabalhoso ler, marcar, anotar, apontar, fichar, resumir e resenhar textos, mas quem sabe fazer isso, transforma o “não me sinto capaz” pelo “professor, preciso de mais tempo para fazer isso”. Ou seja, o estudante, consciente de suas habilidades e das dimensões das tarefas, traduz em tempo de trabalho quantificável, maior ou menor, as dificuldades que enfrentará, e o impossível torna-se possível, em curto, médio ou longo prazo. Não há mais o “não consigo realizar”, mas o “consigo, em um tempo que preciso calcular”.

Há muita mistificação em relação ao mundo do saber. Uma delas é a de que se tem de ser gênio, ou “nerd”, para ser estudioso. Ora, os gênios existem, mas se dependesse exclusivamente deles o homem ainda estaria nas cavernas. A maior parte do saber é produzido com trabalho humilde, paciente, persistente, cuidadoso, que é acumulado por anos, séculos, milênios.

Na vida escolar ou acadêmica, isso se traduz em método para pesquisar, arquivar informações, acumular organizadamente conhecimentos de modo a serem facilmente acessados, debater com colegas e professores, em resumo, trabalho intelectual organizado, disciplinado.

Nestes anos de docência para o para a Educação Básica e para o Ensino Superior, tenho assistido à bonita sensação de realização no comportamento de estudantes quando aprendem penetrar nos segredos dos livros e textos a partir de métodos simples de estudo. É como ver uma criança dar, por conta própria, os primeiros passos, que tão decisivos para sua vida.

Aqui cabe a comparação: quando aprende a andar por conta própria, uma criança não necessita mais de um adulto que a ensine a andar, tanto quanto um aluno, quando aprende a estudar, torna-se estudante – e há uma radical diferença entre um e outro: o  primeiro ainda não é livre, depende eternamente do professor; o segundo não, torna-se seu próprio mestre. Talvez por isso a canção de Milton Nascimento e Wagner Tiso se chame Coração de Estudante, e não Coração de Aluno.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Paródia de Pessoa

Fonte: Revista Bula
Não é só Fernando Pessoa que perde o rumo de casa, o pé da situação ou a melancolia. Todo mundo, se se distrair, pode se ver admirando o entorno que, muitas vezes, no dia-a-dia insípido do nosso "belo quadro social", não diz nada. Pensando nisso, enchi este poema-taça com um tanto dessa distração que é verdadeiramente uma bênção de bem-estar. O poema parodiado Escrito num livro abandonado em viagem.
Cíbio Bote







sexta-feira, 22 de agosto de 2014

O amor remove prédios, que voltam

Foto: Júlio Boaro

Não precisa de muita criatividade para gostar de São Paulo, em que pese as razões que a cidade dá de sobra para a odiarmos. Se pensamos nas pessoas que amamos e que circulam por seus labirintos em que tanta gente se perde e se acha, ela tem sua poesia revelada. Se faltar imaginação, é só ir à noite à janela de um dos arranha-céus e ficar cismando... e piscando longamente enquanto a memória trabalha relaxada.
Cíbio Bote



quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Mapa da Cidade

Talvez seja apenas uma coincidência que o contorno do mapa de São Paulo seja um revólver perfeito, apontado para baixo por pura convenção, uma vez que, em o mundo sendo redondo, não há razão para aceitarmos pacificamente que o Norte fica em cima. Nós que trabalhamos com as palavras algumas vezes  vemos fantasmas onde eles não são críveis - mas que eles existem algures, alguém duvida? 

Cíbio Bote




quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Em dezembro, o largo Paissandu

Uma vez que a chuva não vem, repito aqui um poema de início da década de 1990. Estava muito calor e, avis rara, eu não trazia nada nas mãos. Por isso, foi sem sentimento de culpa que entrei de corpo e alma na chuva que me pegou na altura do largo Paissandu. Havia uma pastelaria no vale do Anhagabaú. Lá tomei um conhaque para não apanhar um resfriado, e fui à para para casa, na Barra Funda, quando pancada d´água passou. No caminho, um vapor parecido com neblina subia do chão molhado. A chuva passou, a década também, mas o poema não.

Cíbio Bote




http://www.almanack.paulistano.nom.br/antartica14.html

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Paisagem Noturna

Em 1986, num final de ano quente, talvez dezembro, passando pela rua Boa Vista, flagrei uma lua absurda subindo ao lado do edifício São Vito, no parque Dom Pedro II, em São Paulo —o conhecido Treme-Treme, demolido há alguns anos.

Rascunhei em uma caderneta um esboço e preenchi depois com letras. Foi-se a lua, foi-se o São Vito, mas ficou o poema. A outra metade da lua estava escondida atrás do edifício.

Quem viu a lua nascer nesse vale — onde Castro Alves se feriu com a própria arma  viu, quem não viu, não sabe de onde tiraram a ideia de surrealismo.

Era uma imagem impressionante: uma imensa esfera cor de ferrugem que, ao deslizar para cima na empena do prédio, diminuía de tamanho e ia ficando amarelada até, já acima do Treme-Treme, assumir a cor de prata que explica muito da hipnose que ela exerce sobre lobos e casais enamorados.

Quem namorou sobre aquela ponte, bem ao lado do Pátio do Colégio, vendo a lua subir bruxuleante, fez muito bem.
Cíbio Bote.



Edifício São Vito, São Paulo, popular Treme-Treme, cuja demolição terminou em 2011. À direta, ao fundo, o Mercado Municipal.




sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Retrato em branco e preto

O amor, quem não é amador sabe, pode dar em flores e graça, mas também em guerra e desgraça. Que o digam Tristão e Isolda, Capuletos e Montecchios, que, na massa sonora de Prokofiev, Suíte n.o 2 de Romeu e Julieta, ganham proporções trágicas monumentais, mas profundamente humanas. Fiz este poema-retrato em memória e rito fúnebre a uma paixão que, pior do que não ter dado em nada, deu em tragédia. Cai o pano.
Cíbio Bote




quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Mosca é feita pra voar

Quem já viu gato caçando mosca sabe de que mosca e de que gato está falando. Neste poema a mosca em suas circunvoluções desenha o gato, que já foi estampa em minha camiseta preta, gatopoema caçador de moscaletra.
Cíbio Bote


quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Nova meditação sobre o Tietê

Quem passa por baixo da ponte Júlio de Mesquita Neto, que na verdade são duas obras monumentais paralelas, ainda vê alguma graça - embora se pergunte sobre falta de sentido para duas pontes gigantescas serem construídas, uma ao lado da outra. Porém, quem passa por cima sabe que são mal-feitas, feias e que, mesmo com boa vontade, sente o forte cheiro de desperdício de dinheiro público. Fiz este poema em homenagem a esses dois monstrengos dispendiosos, grandiloquentes por baixo e feios de doer por cima. Que ódio se pode ter da cidade ao ponto de se construírem pontes tão horríveis? Somente uma mentalidade muito atrasada, tipo, família Mesquita, explicaria. Ou não.
Cíbio Bote



terça-feira, 12 de agosto de 2014

Minhocão vai desaparecer, olê olá!

Em 1986, saía do cineclube Oscarito, na praça Roosevelt, onde tínhamos lutas e brigas homéricas pelos rumos do cinema brasileiro, e ia bater cabeça pela cidade. Um de nossos sonhos era ver o Minhocão implodido e devidamente removido da cidade. Ontem, deu no noticiário que o novo Plano Diretor prevê sua desativação (leia aqui).

Este poema de 1986, então delírio de jovem cineclubista, ganha agora jeitão de profecia.
Cibio Bote.



segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Sombra de passeio de inverno

Nem em meu mais alucinado pesadelo delirei que um dia o cine Metrópole ia fechar. Era uma tarde-noite de domingo de início dos anos 80 e, em meio ao chuvisco que não molhava mas picava o rosto, com as mãos nos bolsos girando moedinhas, eu andava pela praça Dom José Gaspar, sedento para ver um filme naquela sala escura onde se sonha de olhos abertos — o comércio todo fechado, salvo um mísero café bem próximo da galeria. Era o final da tarde, mas a iluminação pública já funcionava porque fazia escuro. Minha sombra dobrou-se, metade no chão, metade na parede de um edifício. Entrei no café, pedi um bem forte, que tomei apressado, fiz o poema num guardanapo, que enfiei no bolso já sem as moedinhas, e fui ver um filme. O filme, nem me lembro qual, o cine Metrópole se foi, já a lembrança daquela tarde e o poema ficaram... aqui e no coração.


sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Leitura no Metrô

APANHO ÔNIBUS LOTADO DO MORRO DOCE À LAPA. NA LAPA, APANHO O TREM DA CPTM SUPERLOTADO ATÉ A BARRA FUNDA. NA BARRA FUNDA, PEGO O METRÔ LOTADO ATÉ A ESTAÇÃO D. PEDRO. LÁ, APANHO O ÔNIBUS JD. CELESTE, MENOS LOTADO, MAS TAMBÉM DE PÉ ATÉ O IPIRANGA. DUAS HORAS PARA IR, DUAS PARA VOLTAR PARA CASA, EM CAMINHO INVERSO. COMO SUPORTO ISSO? LENDO: 4 HORAS DE LEITURA POR DIA EM PÉ.

Dois túneis se completam, o que leva sob a cidade a alguma parte dela, o que penetra-se pelo vórtice das letras pretas nas página brancas - e que não se sabe aonde vai dar. Quem nunca perdeu uma estação por ficar preso no segundo túnel, que atire a última faísca.

Cibio Bote





quinta-feira, 7 de agosto de 2014

A chuva cai, e o morro da Babilônia também

Conheci o morro da Babilônia nos anos 80. Era um pico agudo enfiado no meio da serra da Cantareira, já quase no município de Mairiporã. Erra assim que os moradores chamavam essa ocupação irregular de floresta em que os barracos de alvenaria ou madeira se apoiavam uns nos outros em franca desordem como uma verdadeira Babilônia. Ali traficava-se água por meio de caminhões-pipa, pois as tubulações da cia. de água lá não chegava. A guerra entre traficantes de água espalhava cadáveres pela serra. Fui parar lá a pedido de um morador que, por me conhecer, achou que eu podia ajudar. Narrou-me o desabamento da semana anterior (a foto em questão não tem anda a ver com isso). Disse-lhe, desconsolado: "Faço um poema". Ele respondeu: "Não é suficiente". "Então caia fora da serra da Cantareira, pois isso é dos macacos, nem rico nem pobre pode vir aqui encher o saco deles". Então, ele me deu uma porrada. Mandei-o àquele lugar. E assim acabou nossa amizade. Mas ficou o poema e a história.
Cíbio Bote.


quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Geografia de São Paulo

A geografia da cidade mostra muita coisa, e esconde outro tanto ainda maior. Quem tiver olhos para ver, que veja. No poema gráfico, uma bola rola geografia abaixo.











terça-feira, 5 de agosto de 2014

Trem do subúrbio

Um poema gráfico feito para uma manhã de 1984. Era fim de ano, um dia claro, sábado. Íamos em bando jogar bola em Lorena.


sexta-feira, 18 de abril de 2014

Gabo está fugindo para Macondo: ferroviários do mundo, parem imediatamente todos os trens!

Há coisa dois anos, em julho de 2012, assisti tomado de profunda melancolia a crônica de Éric Nepomuceno na televisão. Essa crônica depois ganhou as páginas impressas e digitais, numa delas sob o título Lembrando da memória de García Márquez.

Éric é amigo de García Márquez, e a maneira contida mas emocionada por meio da qual deu-nos em forma de crônica a notícia infausta, fizeram brotar de meus olhos as lágrimas amargas de Macondo: Gabo estava perdendo vertiginosamente a memória, e entrava em um processo irreversível de demência senil. Fui à cozinha tomar um copo d'água, matutando na profunda orfandade de que a América Latina se avizinhava.

Desde aquela crônica perdida num dia de julho de 2012, vim elaborando minha teoria sobre essa estranha morte gradual, anunciada nestes últimos dois anos pela imprensa, em capítulos algo barrocos e antecipatórios. E minha teoria se completou ontem, 17 de abril de 2014, quando os jornais informam o ponto final de Gabo.

E a minha teoria é simples, coerente e completamente defensável. Segundo ela García Márquez foi escrevendo secretamente um capítulo novo para Cem anos de solidão. Nesse capítulo, ele engana a todos com a notícia de sua própria morte e, marotamente embarca para Macondo.

O vazamento paulatino de sua perda de memória e de sua morte gradual - tão pacificamente aceitas -, na imprensa latino-americana, e desta para o mundo, faz parte do enredo labiríntico que ele mesmo criou para despistar sua verdadeira intenção: a de rumar de trem (levando consigo montanhas de ouro de nossa juventude e de nossa fantasia),  anonimamente, para o centro de sua geografia de sonhos, da qual só retornará, também anonimamente, quando quiser, se quiser.

Diante de uma evidência assim cristalina, não resta outra alternativa a nós, a não ser a de tomar uma atitude de força: impedir a partida desse trem para Macondo.

Gabo, lamentamos nossa profunda discordância com esse último capítulo de Cem anos de solidão, e estamos partindo atropeladamente atrás de você, onde quer que você esteja.

Ferroviários do mundo, parem imediatamente todos os trens!

terça-feira, 15 de abril de 2014

Bar Saci dá o maior pé!

O João Fitzgerald Marques, coordenador do Clube de Leitura da Biblioteca Monteiro Lobato, me convidou semana passada para um sarau em Caieiras, cujo release reproduzo parcialmente:

Neste mês vai ter um bate-papo sobre Cultura e Literatura com Jeosafá Fernandez Gonçalves; apresentações musicais de Adélia Ferreira Neves e seus alunos, ao piano; apresentação de trecho da peça de teatro "Cantora Careca", de Eugène Ionesco, com Sérgio Camargo e Luciane Massaro; e show com o saxofonista Edson Lellis.

 Desde julho do ano passado, um grupo de artistas, professores, jornalistas e profissionais da área da saúde, na sua maioria, moradores de Caieiras e região, vêm se reunindo, mensalmente, para promover um Sarau Cultural na cidade. No final do ano esse evento foi transformado em projeto e aprovado pelo PROAC - Programa de Ação Cultural, assim, a temporada 2014 do Sarau Cultural de Caieiras, que começa em fevereiro, terá o apoio deste programa de incentivo à cultura do Governo do Estado de São Paulo.

Bar Saci

Além das apresentações artísticas, o espaço conta com um bar, o Bar Saci. Coordenado pela Associação Vida em Ação, esse bar tem o objetivo de buscar alternativas de geração de trabalho e renda para os usuários dos serviços públicos de saúde mental, e também de fomentar ações de apoio ao tratamento.   

 Grande final

As datas de todos os encontros deste ano já estão marcadas e os próximos acontecerão nos dias 8 de março, 12 de abril, 17 de maio, 14 de junho e 12 de julho. Os trabalhos apresentados em todos os encontros serão avaliados tecnicamente pelos artistas coordenadores e os selecionados serão convidados para o sarau do dia 16 de agosto, quando acontecerá o ensaio para a apresentação final, no dia 13 setembro, que será no NEC - Núcleo Educacional de Caieiras, gentilmente cedido pela Secretaria Municipal de Educação. No total serão oito saraus. Haverá na semana da apresentação final uma exposição pública dos poemas e fotos selecionados.  

Os encontros do Sarau Cultural de Caieiras são mensais e acontecem sempre aos sábados no Espaço Cultural Porco à pá (Pourquoi pas?), que fica na avenida Olindo Dártora, 4560, Morro Grande, Caieiras, SP.

O João estava certo em me convidar, pois foi uma noite muito bacana. Além de declamações de poemas e bate-papo/entrevista sobre a linguagem poética, houve improvisos de sax da melhor qualidade, interpretações de MPB, teatro e muito compartilhamento.

Tem havido uma mobilização espontânea e em grande quantidade em torno da literatura na capital e na Grande São Paulo. É animador saber que, por todo lado, as pessoas, das mais diversas idades (grupos de jovens, grupos de idosos, grupos mistos, de professores, de profissionais diversos) tem-se se organizado para ler trechos de clássicos da literatura ou de novos autores, para declamar Bandeira ou Drummond, mas também poemas de autoria própria.

Tenho estado exausto, de tantos lugares aos quais tenho sido convidado a falar ou a ouvir (ou ambos). A caminho de Caieira, dois amigos me ligaram no celular: um, para avisar de uma apresentação nesta semana, outro, para me lembrar que estava sendo lançado, naquele exato momento, na Penha, um livro de autores da Zona Leste (como não era possível minha ida, fui informado que o mesmo livro será lançado em Ermelino Matarazzo no final do mês).

Minha gente, a cidade e a grande São Paulo está pulsando! E é pulsação do bem!

domingo, 6 de abril de 2014

CRÔNICA —José Wilker, um caso especial de coragem

Morávamos em treze numa digna casa de madeira na então distante vila Ede, periferia de São Paulo, sem asfalto, sem água encanada e com esgoto correndo por valetas infectas que iam dar no córrego Maria Paula, e que hoje corre por sob as ruas asfaltadas, ainda recebendo o dejeto das casas, pois nem o estado nem a prefeitura se dignaram a resolver a "questã".

Mas a "questã" não é essa. A "questã" é a primeira vez a que assisti a José Wilker.

Foi no início da década de 1970, e eu tinha ou 7 ou 8 anos de idade [na verdade, como se verá ao final deste artigo, o ano é 1974, e eu contava então com 10 anos de idade]. A imprecisão se deve à distância no tempo e à minha pouca idade de então, que era regida não por anos, mas pelo sol e pela lua, pelas brincadeiras no quintal cheio de árvores e pelos bichos de criação que zanzavam o dia pelo terreiro. Além da pouca idade, eu era mirrado, magro e irritadiço, por causa de uma dor de garganta crônica que não me deixava comer nada, e que só sarou lá pela adolescência, quando enfim cresci de repente e cheguei ao 1,70m de hoje.

A televisão, comprada por meu pai em suaves prestações na falida rede lojas Pirâni, que foi para as cucuias no incêndio do edifício Andraus, no centro de São Paulo, era uma novidade: uma Philco 29 polegadas em preto e branco, com uma lâmina de vidro para proteger o telespectador da radiação.

Reunidos em torno da telinha num quarto que até a hora de dormir era sala de televisão coletiva, inclusive com presença de filhos de vizinhos  e às vezes os próprios pais, quando o capítulo da novela era crucial , ríamos e chorávamos com nossos heróis, às vezes tão parecidos com a gente, como no caso de Irmãos Coragem.

Nunca esqueci de quando Wilker passou a existir para mim. Foi num caso especial em que um jovem professor, em sérios problemas financeiros, divide uma casa pobre com a esposa grávida. Sua pobreza era a nossa, sua mulher era nossa mãe, que saía de uma gravidez para entrar noutra, até completar os onze em que nos tornamos.

Nossa torcida era toda para que ele tivesse sucesso, pois, nesse caso, nós, cujo único caminho apontado por seu João e dona Maria para sairmos da vida difícil era o do estudo, poderíamos ter também.

Não precisa dizer o quanto ele sofre, sem dinheiro, avançada a gravidez da jovem companheira, com os sucessivos "nãos" que recebe pela cara. E, a cada "não", ele e sua jovem esposa mais se parecem com nossos pais  e nós, com aquela criança prestes a entrar no mundo pela porta da miséria.

O enredo é simples, e não me recordo nem do nome, nem de detalhes importantes do caso especial exibido pela Globo. Pela pouca idade, nem se me ocorria a importância de guardar o nome do diretor (pela linguagem, temática e profundo humanismo, arrisco que foi Vianinha, se não Dias Gomes  ou ainda Janet Clair).

Depois de muitas frustrações, o personagem interpretado por José Wilker acaba se inscrevendo num concurso público de docência, não sei se para o hoje Ensino Básico ou para o Superior, arrisco que foi para o Superior, pois se forma uma banca feroz que sabatina duramente o candidato [na verdade, trata-se do exame de Mestrado, em 2024 graças às maravilhas da Internet].

Antes da sabatina, o personagem, a esposa grávida, vive uma trajetória de dificuldades econômicas e de muitas tentativas de emprego frustradas, muito em função de  sua escolha pessoal: dedicara-se apaixonadamente ao estudo de um tema específico:  a vida e a história de Pedro Ivo, herói da Revolução Praieira (1848-50), em Pernambuco. O fato é que ele se prepara como um louco para esse exame, porém, apresenta-se arrasado à sabatina, pois, afinal das contas, a única coisa de que entende é Pedro Ivo e sua revolução libertária.

A cena decisiva do caso especial é quando uma banca de doutores de aparência terrível recebe o candidato para realizar a chamada oral. Nós   no quarto convertido em arquibancada de arena em que se jogam cristãos aos leões, uns acomodados na larga cama de molas de meus pais, outros em cadeiras capengas, outros pelo chão  estávamos sentados na verdade na cadeira ocupada por um José Wilker de olhos abatidos pelo sono dos estudos e pelas olheiras dos perdedores.

O olhar severo dos doutores da banca, posicionados em patamar superior, fulminavam o coitado do José, que naquele momento era todo o Brasil pobre, trabalhador, mal nutrido e cheio de amarga esperança. Anos mais tarde, embrenhando-me por nossa história, identifiquei aquela cena com fotos de julgamentos de presos políticos. Quem escreveu e dirigiu aquele caso especial era muito inteligente, teve muita coragem e contou com a burrice da censura, ainda bem.

Na cena decisiva, o clímax é quando o presidente da banca sorteia o ponto para sabatinar o candidato, o temível assunto sobre o qual o torturado José Wilker terá de discorrer com exatidão, se quiser conquistar o sonhado emprego que abrirá uma janela de respiro para o sufoco família, a dele e a nossa.

Não me lembro se após essa cena há mais alguma coisa de importante, mas é ela que está nos meus olhos até hoje: o presidente da banca anunciando o ponto e a câmera indo em close para o rosto sonado e infeliz do José, que arregala uns olhos marotos, felizes de assustar, e dá uma gargalhada que deixa a banca atônita e nós, empoleirados pelo quarto, em extremo êxtase: o ponto sorteado era... PEDRO IVO.

Na minha memória, o caso especial acaba aí, os membros da banca se entreolhando confusos, mas alegres, despidos mesmo da severidade, e com o rosto jovem e fresco de Wilker congelado numa belíssima gargalhada que, no entanto, nos fez chorar.

PS. Um leitor, Carlos Cleto, em 21 de março de 2020, nos comentários, informou o ano (1974) e o nome do Caso Especial da Globo: Enquanto a cegonha não vem. Conferi e ele está certo, Renata Sorrah contracena com Wilker, o roteiro é de Vianninha e a direção, de Daniel Filho.

Enquanto a cegonha não vem, informa o blog Estranho Encontro, "deu origem no ano seguinte ao longa-metragem O Casal (1975) [dirigido também por Daniel Filho, teve mais de 1 milhão de espectadores]. Do 'casal' televisivo, José Wilker foi mantido como protagonista. A mocinha grávida, que na TV foi Renata Sorrah, no filme passou para Sônia Braga. Estreando no Rio em 11 de Setembro de 1975, “O Casal” pegou La Braga na crista da onda, por conta da novela “Gabriela”, que estreara em abril daquele distante ano.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP e Pós-Doutor em História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).










quinta-feira, 3 de abril de 2014

Cláudio: um amigo, poeta e samurai


Esta manhã eu tive um sonho maravilhoso, em preto e branco. O preto, em suaves nuanças foscas, o branco, em desvanecentes laivos de água. O preto e o branco desse sonho eram uma onda graciosa, cuja linha de contorno ameaçava partir-se no topo, mas que, em movimento ágil, na queda, recuperava, sem desfazer, a forma de circunferência e, num looping perfeito, após recompor-se em meio à brancura esfumaçada central nebulosa, na extremidade inferior reassumia a forma perfeita de circunferência, retornando com leveza ao topo da figura geométrica, ponto em que se projetava para frente, originando, espiraladamente, uma nova circunferência.

Com certeza, só me recordo desse sonho porque estava prestes a acordar. Por sorte, no momento em que o sonho terminou, eu despertei - pois às vezes despertamos e perdemos o final do sonho para sempre. Para não esquecê-lo, fui até a saca respirar o ar da manhã que se iniciava, ainda a tempo de me despedir de minha companheira e meu filho, que partiam para a escola, ela para dar aulas, ele para recebê-las de outros professores. Na verdade, meu despertar coincidiu com ela beijando-me a testa em despedida para o trabalho, como faz todas as manhãs. Da sacada acenando, com o sonho impresso nos olhos e no espírito, decidi que precisava registrá-lo em uma crônica, antes que ele se desfizesse inteiramente no curso dos dias e no reino da desmemória.

Não é a primeira vez que algo assim me ocorre. Quando me dediquei mais intensamente à poesia, não era raro sonhar com palavras ou mesmo pequenos poemas inteiros, escritos no papel já em sonho. Quando me doutorei, sonhei com parágrafos frequentemente. Isso sem falar em soluções exatas de problemas literários levantados durante a produção da tese.

Em meu romance Zona Sul, após longa pesquisa e finalizada a fase de planejamento, tive uma certa dificuldade de iniciar a escrita. Como tinha outros afazeres profissionais, posterguei o início da redação, mas fiquei incomodado com essa dificuldade. Certa manhã, mais ou menos no mesmo horário do que ocorreu hoje, tive um sonho estranho. Despertei-me em seguida. Minha companheira se preparava para sair ao trabalho, então contei-lhe o sonho, enquanto ela tomava seu café. Ao final da narrativa deu-me um estalo: era o capítulo inicial do romance, que inclui um cenário cujo pano de fundo é o atormentado Jardim das Delícias, de Hieronymus Bosh. Redigi o rascunho e fiquei uma semana a registrar com minúcia o sonho que tinha início, meio e fim.

Hoje, um mestre japonês da poesia - cuja presença no sonho é apenas uma voz e duas mãos que seguram uma gravura - me explica a íntima ligação entre a poesia e a arte samurai. Essas mãos são brancas e os punhos de seu quimono são preto-fosco.

Ele me diz que a concentração de linguagem da arte da poesia só encontra comparação na concentração necessária à arte samurai. Ele está ao meu lado, por isso no sonho só lhe são visíveis as mãos que seguram a gravura e os punhos largos de seu quimono escuro.

A descrição no parágrafo inicial desta crônica é a do desenho impresso nessa gravura. Para explicar-me o significado dela, ele solicita que outro mestre nas duas artes execute movimentos de arte samurai com sua espada. O mestre solicitado tem a parte de cima do quimono, branca, amarrada com um largo cordão preto; a parte debaixo, preta e esvoaçante. O mestre samurai nos cumprimenta como a tradição manda, afasta-se um tanto. Agora, o cenário é de neblina, tal como o da gravura. Ele, estático, ergue sua espada, executa três giros com ela, para-a em movimento de ataque. Súbito, usando a ponta da espada como eixo central, dá um impulso vertiginoso para a frente e para cima, atira ambas as pernas par o alto, gira no eixo da ponta da espada, o que resulta em uma circunferência perfeita. Ao tocar o chão, mal se-lhe veem os pés: novo impulso, nova circunferência; e ainda outro e outra.

Ao final dessa sequência impressionante de três circunferências sucessivas articuladas por sucessivos loopings, o que resulta é o mesmo desenho impresso na gravura. O mestre solicitado acolhe a espada em ambos os braços formando um ninho e, como estivesse com uma criança no colo, cumprimenta-nos cerimonialmente, e desaparece na neblina branca, primeiro a parte inferior de seu corpo, depois, o busto. Essa imagem desvanecente de busto é uma belíssima fotografia preto e branco em sfumato de um jovem samurai.

O mestre poeta então explica, apontando com o dedo a gravura: no início da sequência espiral da gravura, há um ideograma japonês. Suas partes se desfazem da esquerda para a direita, assumem forma de linha. A linha forma três circunferências a partir de três sucessivos loopings. A a linha, ao formar a terceira circunferência, a partir do topo, se desfaz e se transforma no mesmo ideograma inicial. O mestre diz que eu não vejo, nem ele, mas no centro de cada circunferência, está o ideograma girando vertiginosamente, tão vertiginosamente que nem se pode saber quantos giros deu para se tornar invisível aos olhos - tal como fizera o mestre samurai ao realizar a demonstração com sua espada inicialmente reluzente, depois, também invisível.

Do mestre a explicar a gravura não vi mais que as mão e os punhos do quimono, mas sua voz era serena e entorpecente. Se a face de quem me deu essa lição de poesia ficou oculta, o mesmo não ocorre com a do outro, o mestre samurai. Vi nitidamente o busto que se esfumaçou: era nada menos que o do poeta e meu amigo Cláudio Daniel. Cláudio, esta crônica eu fiz para você, porque o sonho se fez sozinho - e não me coube mais do que o pálido registro escrito, que recolheu muito menos do que sonhei.

É nessa hora que invejo meus amigos Claudinei Roberto, Mazé Leite e João Pinheiro - artistas plásticos os primeiros, ilustrador e quadrinhista o último. Eles podem, ao acordar, converter em imagens visuais as imagens de seus sonhos. Eu, afundado em letras, não.