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quinta-feira, 25 de julho de 2024

CRÔNICA - 1973


 As lembranças de escola terminam por ter um papel importante, porque a vida nela era muito diferente da vida de menino de quintal, descalço, sem camisa, que gostava de trepar em árvores e andar sobre cercas, muros e telhados.

Porém, embora novos amigos e algumas paixões infantis fossem bem interessantes, a vida, a vida mesmo, estava muito além dos muros e portões escolares. Tanto que, quando tocava a sineta da saída, disparávamos enlouquecidos pelas escadas e corredores até atingirmos a rua, que nos atiçava a sensação de liberdade — sensação que até hoje a rua me inspira.

Talvez por isso às vezes me sufoco e saio por aí a bater cabeça pelas ruas da cidade, até me cansar e desejar voltar para casa.

1973

Que tardes intermináveis
aquelas do terceiro ano escolar.
O calor
a chateação
o medo de reguada
a dona Laura dedo-duro
a dona Benedita irada
o diretor Nelson sádico.
Tomei gosto da liberdade
Por inspiração
desses três tiranos.
(Livro de Infância - Poema 69)


terça-feira, 26 de dezembro de 2023

CRÔNICAS CARIOCAS — O espírito natalino

Era noite de sábado e principalmente antevéspera do Natal. Quem tinha comemorar o título de campeão, já o tinha feito. Quem tinha que troçar do Fluminense pelo sacode que levou do City, também.  Os presentes já tinham sido comprados, o mercado para a ceia já tinha sido feito por quem de direito. Por isso, o entorno do largo do Machado estava distensionado, relaxado, divertido, mas sem a eletricidade dos dias anteriores.

Para não a levar comigo, contei à minha irmã uma história difícil de acreditar, mesmo levando-se em conta o espírito natalino, e desci para tomar uma das últimas cervejas do ano — ainda que de 23 a 31 de dezembro sejam robustos oito dias, que só perdem enquanto maratona etílica para a semana do Carnaval, que dura o mês inteiro.

Por preguiça, escolhi uma mesa vazia do bar em frente ao condomínio em que deixara minha irmã em santa paz. Normalmente, o ambiente noturno ali é de quem quer assistir a um jogo de futebol em uma das três telas que eles disponibilizam. Como todos os campeonatos de interesse nacional tinham terminado, nas três telas passavam reprises de jogos da temporada encerrada.

Porém, só eu ali dava pelota para as TVs, ignoradas solenemente pelos demais, que falavam alto, cantavam, faziam batuque nas mesas, dançavam, já se despedindo sem remorsos do ano de 2023. A faixa etária ali também estava bem acima da que frequentou as noites do bar durante o ano e, observando bem, havia muito mais mulheres do que homens, todas animadas, tirando fotos em grupo, ou fingindo atender telefone para se encostar em minha mesa, que ficava a um canto solitário e esquivo, de frente para a tela de TV mais modesta.

Caso curioso, os homens, que na quinzena anterior gritavam por seus times ou contra os adversários, agora estavam bem comportados, mas as senhoras... esquindô, esquindô! Só alegria.

Alegria demais, pensei com meu faro de outros natais e carnavais para encrencas. E concluí que era hora de ir embora, pois excesso de álcool em festas começa na euforia, passa pela perda de senso e acaba na confusão, nas melhor das hipóteses. Tomei rápido minha cerveja, pedi a conta, paguei e me afastei aliviado, sob o olhar fulminante da dona, que, despeitada, parou de fingir conversê ao celular.

No bar da outra esquina, outro ambiente. Uma família, alguns jovens universitários, outro solitário como eu. "Bom — arrisquei —, aquela cerveja não valeu. Essa parece que vai dar pé". E deu. Nada como tomar uma cerveja em uma mesa na calçada, numa noite morna e relaxante, pensando em coisas amenas, vendo pessoas passarem, imagens aleatórias na tela da TV, casais passando, moças empurrando carrinhos de bebê...

Pedi a conta satisfeito, paguei e voltei cem metros ao condomínio, à porta do qual estacionara uma viatura de polícia, com o giroflex azul acionado. A rua estava calma, então imaginei alguma operação de rotina de fim de ano.

Porém, não: à porta da garagem, já do lado de dentro, um tumulto em forma de círculo se avolumara. Ao centro dele, uma daquelas alegres senhoras do bar, de que eu precavido me esquivara, rolava pelo chão, como que possuída. Estava só de calcinha e sutiã. O policial negro, enorme, atlético, de braços cruzados e fuzil empunhado para baixo, tentava fazer cara de bravo, mas, na verdade, ria de lacrimejar, com os dentes trincados e as bochechas contraídas.

Quando eu passava pela portaria, o  segurança do condomínio, em trajes impecáveis, cometeu a imprudência de se dirigir à senhora muito flácida, muito branca, muito gritona e muito possuída pelo álcool: "Se a senhora não vestir a roupa, não vai subir". Foi aí que  ela se atirou ao chão, rolou, sacudiu a cabeleira com gosto, imprecou, jogou o sutiã pra longe e... antes que ela tirasse a calcinha, eu saí do círculo de moradores e curiosos para tomar o elevador.

Contei essa história, mais duvidosa do que a anterior, à minha irmã, que nem imaginava o que se passava três andares abaixo. Disse-lhe: "Se eles a tivessem deixado subir, ela já estaria na cama no sétimo sono. Depois, era só informar à administração, que aplicaria uma bela multa à encrenqueira. E ponto final."

Nesse ponto minha irmã me interrompeu: "Que cor era o sutiã?". Impactado com a pergunta, respondi: "Preto, mas bem desbotado, com bojos colossais". Minha irmã piscou: "E a calcinha?". Cocei o cocuruto e respondi constrangido: "De oncinha, mas mais desbotada do que o sutiã, e bem deformada, se é que tinha elástico".

Minha irmã virou-se e dirigiu-se à cozinha, engasgando der rir. De lá gritou: "Fecho com o segurança, melhor chamar a polícia e deixar prender, mesmo. Até pra armar barraco é preciso cuidar da roupa de baixo".

Minha irmã ainda não estava tomada pelo espírito natalino.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

CRÔNICAS CARIOCAS — As metas ou: ninguém tasca

Uma amiga todo final de ano se atira do alto do trapézio sem rede de dezembro a um exame minucioso de seu planejamento anual. Como é sistemática, traz tudo anotado em cadernos e em seu computador pessoal. Diz ela que após esse balanço, comemora as metas alcançadas, faz um sério exame de consciência sobre os insucessos e traça as metas para o ano seguinte.

Admiro sua disciplina, mas... passo, ainda mais quando sou incapaz de chegar sequer próximo de algo semelhante ao que ela faz. Não que seja avesso à prática, não, também faço meus planos e traço minhas metas, porém deixo tudo na cabeça, só muito eventualmente pondo no papel, no computador, no aplicativo de notas do celular ou ainda, no mais das vezes, em post-its grudados na porta da geladeira, algo que a minha memória possa trair — e, mesmo nesse caso, de tanto olhar as anotações, acabo, uma hora ou outra, decorando-as.

É lógico que o método dela é mais científico e preciso do que o meu, mas quem disse que eu gostaria de, ao apagar das luzes do ano, voltar minha atenção para o leite derramado? Ah, não! É sofrer mais uma vez pelo que teve má solução lá atrás e cujas lições, seguramente, eu já extraí, pois nunca deixo de olhar atentamente, no momento mesmo do tropicão, para a pedra na qual me estropiei, após o que sigo em frente mancando até a dor passar, porque a lição, essa já restou aprendida in loco e in tempore. Assim, ao final do ano, voltar a esse passo em falso seria ocioso e um tanto mórbido.

Minha amiga que me desculpe, a estimo, mas não a copio.

Tracei há alguns anos metas simples de serem lembradas por anos a fio: ficar velho, barbudo, musculoso e endinheirado.

Tenho me esforçado por atingi-las, e quem me conhece sabe o quanto sou espartano —  CDF, se preferirem — quando decido algo. Querem ver? Das quatro metas que estabeleci, duas já alcancei: estou barbudo e  velho. E como dizia Aracy de Almeida: ninguém tasca.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).


CRÔNICAS CARIOCAS — Tudo está bem quando acaba bem

Meu amigo, orgulho da vila Ede, foi convidado a palestrar na cidade maravilhosa, tudo pago, incluso o cachê, que se não fez jus a seu enorme merecimento, ficou dignamente dentro dos valores praticados pelo mercado.

Artista plástico, professor e curador requisitado por museus, galerias e instituições congêneres, sua atuação foi como relatou Júlio César num outro tempo, num outro lugar, em relação a outras batalhas: foi, viu, venceu.

Fazendo o famoso bate-volta São Paulo - Rio de Janeiro, foi de  Uber até Congonhas, embarcou pela ponte aérea direto ao Santos Dumont, onde um carro da promotora do evento o aguardava e, chegando a seu destino, proferiu palavras cheias de calor e verdade a uma plateia atenta e feliz com a proximidade do Natal.

Desincumbido de sua tarefa, sobrou-lhe tempo para dar suas pernadas pelo centro do Rio. Pelo que depreendi de sua fala, passou ao lado da Colombo e nem se deu conta, tendo ido dar por distração em uma casa de chá gurmê, onde degustou uma infusão divina de pitanga que lhe custou os tubos  — o que repercutiu mal em seu digno pró-labore ainda por vir.

Agarrado à sua valise, com medo de ser assaltado na Uruguaiana, ajeitando os óculos sobre o nariz, como todo curador de museu que se preza, quebrou à esquerda, deu uns passos rápidos e ingressou, pingando de suor, no Real Gabinete Português de Leitura, no interior do qual enxugou a face negra de profusas barbas brancas com um refrescante lencinho de papel fragrância limão que sacou do bolso — primeiro tirou o lenço da embalagem, fique bem entendido.

Depois, bateu várias fotos das estantes de livros com seu celular — mas também fique bem entendido que antes descartou o lencinho numa lixeira próxima, porque constatou que fotografar com o lenço úmido em uma das mãos estava enchendo saco. Por fim, usou o mesmo celular para chamar um Uber de volta ao aeroporto.

Chegou ao Santos Dumont com antecedência e, maravilha das maravilhas, conseguiu embarcar e partir antes do previsto, de sorte — se é que o que sobrevirá pode  assim ser chamado — que chegou a São Paulo ainda mal terminara a tarde, matutando, durante o voo rápido da ponte aérea, que seu estado de alerta pelas ruas do Rio não fazia sentido, tendo mais a ver com as notícias sensacionalistas da TV do que com a realidade carioca, em que o único assalto presenciado ficou sendo o preço do chá.

No aeroporto de Congonhas, tomou um táxi para a estação Santa Cruz do Metrô, onde desceu e, antes que alcançasse a entrada, foi inapelavelmente assaltado. Por sorte —  essa palavra que pela segunda vez comparece ambiguamente nesta crônica —, disse ele, não levaram documentos, só uns trocados em espécie, a carteira e o cartão do banco, inócuo para os bandidos pois seu saldo estava estourado e o cachê ainda não fora depositado.

Apressados, os bandidos esqueceram-se de levar o celular, pelo qual ele prontamente acionou o banco, que bloqueou o cartão roubado e emitiu um novo —  que ele inaugurou, aliás, pagando sua metade da conta no bar, em que fizemos troca de presentes de nossos sessenta anos de idade e de amigo secreto de Natal.

E fica explicado com este final feliz o título shakespeariano desta crônica — Melhor Shakespeare da comédia do que do drama, ao menos neste caso — disse ele, duplamente vítima: do episódio infausto e desta crônica.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).


sábado, 16 de dezembro de 2023

CRÔNICA — Cena urbana


A caminho do trabalho, logo pela manhã, fui atraído por uma altercação. Do outro lado da avenida, homem e mulher, ambos na casa dos cinquenta anos de idade, do um metro e cinquenta de altura e da compleição rechonchuda, trocavam cobras e lagarto à vista e aos ouvidos de todos.

Separados de mim e da restante plateia deste lado da via pelo fluxo intenso do trânsito, só chegavam a nós, seccionadas pelo ruído dos automóveis, fragmentos de palavras, cujos pedaços faltantes poderiam ser deduzidos sem esforço, graças aos gestos inequívocos e um tanto teatrais do casal  eram um casal, como se verá ao fim.

Entrei no bar, pedi o de sempre para aquela hora da manhã e tomei um lugar estratégico para acompanhar o bate-boca, que se degenerasse em agressão física exigiria a minha pronta intervenção, bem como a de meus vizinhos de balcão, uns apreensivos, outros curiosos, a maioria divertindo-se à beça com a situação.

Foi então que notei ao pé da entrada do bar um simpático vira-lata branco com manchas pretas aleatórias pelo corpo, cabeça e patas, comodamente sentado de costas para nós, as orelhas em pé, inicialmente, a observar os briguentos. Ofereci a ele metade de meu pão com manteiga, que ele aceitou sem se fazer muito humilde e que comeu devagar, sem tirar os olhos da cena que também o atraíra àquele ponto da cidade.

Como o entrevero não piorasse nem melhorasse, entrando naquele platô de previsibilidade um tanto desinteressante, cuidei do meu café por instantes. Ao observar novamente o cão, notei que também nele o interesse no conflito decaíra. Suas orelhas estavam lassas e sua cabeça acompanhava distraída o ir e vir de dos autos.

Levantei-me, paguei a conta e caminhei, parando ao lado do pintado, que aliás tinha coleira, pelos limpos e excelente aspecto. Ele apontou o focinho para os briguentos do outro lado da via e voltou para mim seu olhar significativo, como quem diz "Não vai dar em nada". Então, levantou-se e foi-se, abanando a cauda, feliz talvez com o resultado do conflito.

Vi-o sumir na esquina mais próxima, entre pernas de gente e fumaça de escapamentos de carros.  Tive ocasião de observar no outro lado da via a dona dar o último pito no homem, que desta vez não retrucou e flexionou o braço, oferecendo-o a ela. Esta, aceitou, opiniosa mas satisfeita, e meteu o seu no dele. Os braços dados, os dois seguiram pela calçada apinhada de gente, apressados em alcançar a entrada do metrô.

Nesse momento, um pensamento entre poético e bizarro me ocorreu: tivera eu também cauda, ela estaria rindo como à do simpático vira-lata de há pouco, que, como eu, parou ali só para assistir ao desenrolar da cena urbana, cujo desfecho feliz cada qual aplaudiu a seu modo.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).

CRÔNICA — Ninguém atire a primeira pedra contra as asneiras

Quem é capaz de impedir alguém de cometer asneiras? Conheci poucos   se é mesmo que conheci algum. E e os que se lambuzaram nelas? Perdi a conta, na qual me incluo, sem orgulho, mas, confesso, lamentando as vezes em que não deram certo.

O perigo das asneiras é que, envolvendo alto risco, às vezes, funcionam. E quando funcionam, viciam mais do que qualquer viciado pode sequer imaginar.

As asneiras, quando dão com os burros n'água, são uma santa vacina contra impulsos avassaladores, porém, quando ocorre de colherem bons resultados, por meios sempre para lá de duvidosos, acionam na psique  para não dizer em nosso diabinho interior  um mecanismo pernicioso de repetição neurótica de busca, a qualquer custo, do prazer  pronto, mencionei a palavra que não deveria e que, pudesse, omitiria até o fim. 

A verdade é que toda asneira causa prazer, mesmo as que acabam mal. Aliás, acabar mal ou bem é contingência, provocar excitação e prazer, não: é batata! Os religiosos deram à asneira um nome ainda mais sugestivo: tentação. Quem mantém suas tentações à rédea curta sabe no que podem resultar, quando elas escapam: penitência, purgatório ou inferno  ou os três, um na sequência do outro. Perdão, pura e simplesmente, está fora de questão.

Ninguém em sã consciência quer o inferno. Porém, quanto à penitência e ao purgatório, avaliadas as circunstâncias ou a famigerada relação custo-benefício, não há quem não esteja disposto a entrar na fila   e muitas vezes sem avaliação nenhuma, apenas sob o impulso pernicioso e irresistível de sentir aquele de friozinho na barriga.

A verdade crua e nua, nessa ordem, é que, dessas três consequências aziagas das asneiras, duas valem a pena, compensam o risco, balançam nossa escala de valores porque, se estão a meio caminho da danação, também estão à meia distância da salvação. Noutras palavras, se o copo está meio vazio, está meio cheio também. E a relação custo-benefício no mínimo empata. E quem não arrisca não petisca. E ninguém segura quem quer pecar, principalmente se o pecado não levar direto ao inferno sem as duas escalas anteriores.

Antes que me acusem de cínico e partidário da prática indiscriminada de asneiras, ofereço ao leitor esta crônica como aquele outro    de quem sigo o exemplo na santa parábola   , que estendeu a mão e ofereceu a primeira pedra aos fanáticos em lapidação.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).



CRÔNICA — Grosseria nossa de cada dia

Na estação Brás é um pouco pior.

Outro dia, embarcando em um trem da CPTM rumo à estação Estudantes, não pude deixar de me surpreender com a educação dos usuários. Eu estava à frente da fila, não, melhoremos isso, do amontoado de gente apinhada no ponto de abertura da porta que me dizia respeito da plataforma. Ilusão minha, achei que os primeiros seriam os primeiros.

Tão logo o trem parou e abriu as portas, nós, os primeiros, fomos atropelados pela educação de quem vinha atrás, todos alucinados por tomar um lugar em um dos assentos, todos vazios, pois a composição vinha do pátio de manobras direto para primeira estação da linha, a da Luz — confesso que na estação Brás é um pouco pior, pois ali, mesmo no primeiro horário, ainda da madrugada, os assentos minguam.

Havia tantos lugares disponíveis que nós, os primeiros, agora os últimos, encontramos bons lugares para nos sentarmos. De pé, cada qual em seu vagão, com ares perplexos, escolhemos ao lado de quem estaríamos dispostos a dividir nosso tempo de viagem, conscientes de que, qualquer que fosse a escolha, ela recairia sobre alguém suficientemente grosseiro a ponto de passar por cima de quem quer que estivesse à sua frente para alcançar um assento vazio.

Busquei um lugar ao lado de uma senhora magra, pois a experiência de viajar ao lado de pessoas grandes e gordas não me deixou boas lembranças, eu, que, pequeno por princípio, mirrado por ruindade e esmagável — e atropelável — por educação, sofro horrores antes de reclamar com gente grosseira e folgada.

Sentei-me, saquei um livro do Luís Fernando Veríssimo da mochila e mergulhei na leitura, que logo foi perturbada por um camelô que se esgoelava no pregão de seu produto. Até a última estação, um exército deles se revezou aos berros à minha frente, sim, porque eu me acomodara em um banco votado para o corredor do vagão.

Minha leitura, assim, ficou picotada, espremida entre os pregões dos venderes ambulantes, que intercalavam sua propaganda com queixumes contra os seguranças, que insistiram em persegui-los, e pedidos para que Deus tocasse no coração dos usuários e os fizesse comprar seus produtos. Até que a senhora magra que me coube sacou da bolsa o telefone celular e desandou a falar, não discutir, não vociferar com outra dona do outro lado da ligação em volume que faria os pregões dos camelôs parecerem suaves noturnos de Chopin.

Até desistir por completo da leitura, estraga, pisoteada, vilipendiada, fiquei sabendo do resultado de todos os exames médicos dela, e ainda dos desgostos que a filha lhe proporcionava e da falta de caráter dos homens, que não valem nada e só querem saber de sexo.

Desisti, guardei o livro, alcancei meu celular na mochila, escolhi um aplicativo de música, selecionei em modo repetição a Lacrimosa, de Mozart, acionei os fones de ouvido no volume máximo, recostei no encosto do banco e só abri os olhos, despertado de meu transe, na estação final, onde as pessoas se atropelaram para atravessar na frente das demais a porta da composição mais próxima da saída, com todas as demais relativamente vazias.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

CRÔNICA — Então eu morri, bola pra frente

Zé do Caixão: Morrer pode não ser o pior a acontecer a um cidadão.

A primeira vez deve ter sido difícil e extremamente doloroso, afinal convencer-se de que você foi para o beleléu por conta própria, por mão de terceiros ou  por forças superiores ou inferiores  não é coisa a ser mitigada. Mas depois devo ter me acostumado, porque nas vezes seguintes, nem sei quantas mais, acho que nem doeu  se doeu, foi na hora, mas passou.

Quando morrer se torna fato trivial, a gente perde um pouco aquela ilusão, aquela fantasia, aquela dramaticidade. Ok, você diz, morri, bola pra frente. Então ocorre um lance engraçado, pois as pessoas que o empurram para a cova se sentem traídas, putas da vida mesmo, pelo fato de você não estar nem aí nem com elas, nem com suas traições, nem com sua própria morte. Sim, porque essas facadas simbólicas ou reais que lhe deram era para que você nunca mais se esquecesse de quem as deu. Mas qual era mesmo o nome de fulano ou fulana? E o de beltrano ou beltrana? Ixe, memória de morto é uma lástima, né não?

Você esticadão lá no velório, é divertido sacar a cara decepcionada de quem fuxicou sobre sua vida, lhe passou rasteira, lhe deu um empurrãozinho, ou vários, ou um belo tombo para o caixão. Aquela ali, contando piada e escondendo, como pode?, a frustração de não poder mais o sacanear, se rói de nervos só de olhar para sua cara de não tô nem aí com os ´pra lá de vivos de que o mundo está cheio.

Ela se aproxima, olha enviesado, dá a volta entre as velas, encara seu rosto azulado frente a frente  frente a frente não, de cima para baixo  em busca de um sinal que lhe dê o gostinho da vitória final, uma vez você está morto e embalado e ela, viva, mais viva do que nunca: vivíssima; mas... nada.

Ela vê mesmo, ou imagina, um começo de riso no canto da sua boca, enfia a mão na bolsa, tira um antiácido e corre para o bebedouro para, improvisando um copo com as mãos, engolir o pozinho que a salvará da queimação no estômago que você lhe proporcionou.

Morrer a primeira vez é a pior experiência pela qual se possa passar, mas vão por mim, depois que a gente se acostuma, se torna um vício, e já se espera mesmo ser esfaqueado pelas costas com certa ansiedade. O mais divertido é ver a cara de certos vivos (vivos até demais) nas nossas primeiras aparições post-mortem. Em suas caras a gente literalmente lê aquela enorme decepção e vontade de morrer. Porém, fica o aviso: morrer mais de uma vez não é para qualquer um, ou uma, se caso for. Nana nina nana. Requer compostura, discrição, profissionalismo  e não admite improvisos ou amadores.


Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).

domingo, 6 de abril de 2014

CRÔNICA —José Wilker, um caso especial de coragem

Morávamos em treze numa digna casa de madeira na então distante vila Ede, periferia de São Paulo, sem asfalto, sem água encanada e com esgoto correndo por valetas infectas que iam dar no córrego Maria Paula, e que hoje corre por sob as ruas asfaltadas, ainda recebendo o dejeto das casas, pois nem o estado nem a prefeitura se dignaram a resolver a "questã".

Mas a "questã" não é essa. A "questã" é a primeira vez a que assisti a José Wilker.

Foi no início da década de 1970, e eu tinha ou 7 ou 8 anos de idade [na verdade, como se verá ao final deste artigo, o ano é 1974, e eu contava então com 10 anos de idade]. A imprecisão se deve à distância no tempo e à minha pouca idade de então, que era regida não por anos, mas pelo sol e pela lua, pelas brincadeiras no quintal cheio de árvores e pelos bichos de criação que zanzavam o dia pelo terreiro. Além da pouca idade, eu era mirrado, magro e irritadiço, por causa de uma dor de garganta crônica que não me deixava comer nada, e que só sarou lá pela adolescência, quando enfim cresci de repente e cheguei ao 1,70m de hoje.

A televisão, comprada por meu pai em suaves prestações na falida rede lojas Pirâni, que foi para as cucuias no incêndio do edifício Andraus, no centro de São Paulo, era uma novidade: uma Philco 29 polegadas em preto e branco, com uma lâmina de vidro para proteger o telespectador da radiação.

Reunidos em torno da telinha num quarto que até a hora de dormir era sala de televisão coletiva, inclusive com presença de filhos de vizinhos  e às vezes os próprios pais, quando o capítulo da novela era crucial , ríamos e chorávamos com nossos heróis, às vezes tão parecidos com a gente, como no caso de Irmãos Coragem.

Nunca esqueci de quando Wilker passou a existir para mim. Foi num caso especial em que um jovem professor, em sérios problemas financeiros, divide uma casa pobre com a esposa grávida. Sua pobreza era a nossa, sua mulher era nossa mãe, que saía de uma gravidez para entrar noutra, até completar os onze em que nos tornamos.

Nossa torcida era toda para que ele tivesse sucesso, pois, nesse caso, nós, cujo único caminho apontado por seu João e dona Maria para sairmos da vida difícil era o do estudo, poderíamos ter também.

Não precisa dizer o quanto ele sofre, sem dinheiro, avançada a gravidez da jovem companheira, com os sucessivos "nãos" que recebe pela cara. E, a cada "não", ele e sua jovem esposa mais se parecem com nossos pais  e nós, com aquela criança prestes a entrar no mundo pela porta da miséria.

O enredo é simples, e não me recordo nem do nome, nem de detalhes importantes do caso especial exibido pela Globo. Pela pouca idade, nem se me ocorria a importância de guardar o nome do diretor (pela linguagem, temática e profundo humanismo, arrisco que foi Vianinha, se não Dias Gomes  ou ainda Janet Clair).

Depois de muitas frustrações, o personagem interpretado por José Wilker acaba se inscrevendo num concurso público de docência, não sei se para o hoje Ensino Básico ou para o Superior, arrisco que foi para o Superior, pois se forma uma banca feroz que sabatina duramente o candidato [na verdade, trata-se do exame de Mestrado, em 2024 graças às maravilhas da Internet].

Antes da sabatina, o personagem, a esposa grávida, vive uma trajetória de dificuldades econômicas e de muitas tentativas de emprego frustradas, muito em função de  sua escolha pessoal: dedicara-se apaixonadamente ao estudo de um tema específico:  a vida e a história de Pedro Ivo, herói da Revolução Praieira (1848-50), em Pernambuco. O fato é que ele se prepara como um louco para esse exame, porém, apresenta-se arrasado à sabatina, pois, afinal das contas, a única coisa de que entende é Pedro Ivo e sua revolução libertária.

A cena decisiva do caso especial é quando uma banca de doutores de aparência terrível recebe o candidato para realizar a chamada oral. Nós   no quarto convertido em arquibancada de arena em que se jogam cristãos aos leões, uns acomodados na larga cama de molas de meus pais, outros em cadeiras capengas, outros pelo chão  estávamos sentados na verdade na cadeira ocupada por um José Wilker de olhos abatidos pelo sono dos estudos e pelas olheiras dos perdedores.

O olhar severo dos doutores da banca, posicionados em patamar superior, fulminavam o coitado do José, que naquele momento era todo o Brasil pobre, trabalhador, mal nutrido e cheio de amarga esperança. Anos mais tarde, embrenhando-me por nossa história, identifiquei aquela cena com fotos de julgamentos de presos políticos. Quem escreveu e dirigiu aquele caso especial era muito inteligente, teve muita coragem e contou com a burrice da censura, ainda bem.

Na cena decisiva, o clímax é quando o presidente da banca sorteia o ponto para sabatinar o candidato, o temível assunto sobre o qual o torturado José Wilker terá de discorrer com exatidão, se quiser conquistar o sonhado emprego que abrirá uma janela de respiro para o sufoco família, a dele e a nossa.

Não me lembro se após essa cena há mais alguma coisa de importante, mas é ela que está nos meus olhos até hoje: o presidente da banca anunciando o ponto e a câmera indo em close para o rosto sonado e infeliz do José, que arregala uns olhos marotos, felizes de assustar, e dá uma gargalhada que deixa a banca atônita e nós, empoleirados pelo quarto, em extremo êxtase: o ponto sorteado era... PEDRO IVO.

Na minha memória, o caso especial acaba aí, os membros da banca se entreolhando confusos, mas alegres, despidos mesmo da severidade, e com o rosto jovem e fresco de Wilker congelado numa belíssima gargalhada que, no entanto, nos fez chorar.

PS. Um leitor, Carlos Cleto, em 21 de março de 2020, nos comentários, informou o ano (1974) e o nome do Caso Especial da Globo: Enquanto a cegonha não vem. Conferi e ele está certo, Renata Sorrah contracena com Wilker, o roteiro é de Vianninha e a direção, de Daniel Filho.

Enquanto a cegonha não vem, informa o blog Estranho Encontro, "deu origem no ano seguinte ao longa-metragem O Casal (1975) [dirigido também por Daniel Filho, teve mais de 1 milhão de espectadores]. Do 'casal' televisivo, José Wilker foi mantido como protagonista. A mocinha grávida, que na TV foi Renata Sorrah, no filme passou para Sônia Braga. Estreando no Rio em 11 de Setembro de 1975, “O Casal” pegou La Braga na crista da onda, por conta da novela “Gabriela”, que estreara em abril daquele distante ano.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP e Pós-Doutor em História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).










segunda-feira, 12 de abril de 2010

200 Crônicas Escolhidas, de Rubem Braga

Antologia de crônicas bastante representativa e ampla de um dos maiores cronistas brasileiros, estas 200 Crônicas Escolhidas, de Rubem Braga, oferecem ao leitor um excelente painel da produção do autor que, ao imprimir à crônica um estilo de tal forma poético, contribuiu decisivamente para que ela se alçasse à condição de gênero literário apreciado e frequentadíssimo.

Esta seleção é organizada a partir de obras publicadas anteriormente, das quais um certo número de crônicas foi extraído. Assim, estão representados nesta antologia os livros: O conde e o passarinho (1936); Morro do isolamento (1944); Com a FEB na Itália (1945); Um pé de milho (1948); O homem rouco (1948); A borboleta amarela (1955); A cidade e a roça (1957); Ai de ti, Copacabana! (1960) e A traição das elegantes (1967).

As crônicas de Rubem Braga transpiram humanidade, suavidade e poesia. Em seu texto, temas do cotidiano, aparentemente despidos de maior interesse, ganham relevo a partir de um ponto de vista agudo às sutilezas de detalhes e de uma linguagem trabalhada com sofisticação, mas sem sombra de preciosismos.
Nessas 200 crônicas o leitor tem a oportunidade de ver o tempo e os costumes passarem ante seus olhos não como em um desfile, mas como um passeio despreocupado pelas ruas, pelas cidades, mas também pelos destroços – caso daquelas relativas à Segunda Grande Guerra.

A mensagem que parece brotar desses textos é a de que a vida é simples e de que, se não é melhor, é porque nós a complicamos demais, detendo-nos em aspectos supérfluos que nos distanciam das coisas realmente essenciais, todas elas relacionadas à amizade, ao entendimento entre os homens, à poesia.

Como aqui se trata de crônicas, seria muito proveitoso procurar identificar em atividades de pesquisa ou escolares os elos entre os textos de cada uma e seu elo com o período de que trata. Isso daria oportunidade para que se observassem neles aspectos que garantem às crônicas de Rubem Braga a permanência com relevo na literatura brasileira, aspectos menos afetados pelo tempo, mais atemporais, por assim dizer. Quais seriam esses aspectos? Por que uma crônica da década de 1930 ainda nos toca de modo tão comovente?

FONTE: Braga, Rubem. 200 crônicas escolhidas. 27 ed. Rio de Janeiro, Ed. Record, 2009.