Morávamos em treze numa digna casa de madeira na então distante vila Ede, periferia de São Paulo, sem asfalto, sem água encanada e com esgoto correndo por valetas infectas que iam dar no córrego Maria Paula, e que hoje corre por sob as ruas asfaltadas, ainda recebendo o dejeto das casas, pois nem o estado nem a prefeitura se dignaram a resolver a "questã".
Mas a "questã" não é essa. A "questã" é a primeira vez a que assisti a José Wilker.
Foi no início da década de 1970, e eu tinha ou 7 ou 8 anos de idade [na verdade, como se verá ao final deste artigo, o ano é 1974, e eu contava então com 10 anos de idade]. A imprecisão se deve à distância no tempo e à minha pouca idade de então, que era regida não por anos, mas pelo sol e pela lua, pelas brincadeiras no quintal cheio de árvores e pelos bichos de criação que zanzavam o dia pelo terreiro. Além da pouca idade, eu era mirrado, magro e irritadiço, por causa de uma dor de garganta crônica que não me deixava comer nada, e que só sarou lá pela adolescência, quando enfim cresci de repente e cheguei ao 1,70m de hoje.
A televisão, comprada por meu pai em suaves prestações na falida rede lojas Pirâni, que foi para as cucuias no incêndio do edifício Andraus, no centro de São Paulo, era uma novidade: uma Philco 29 polegadas em preto e branco, com uma lâmina de vidro para proteger o telespectador da radiação.
Reunidos em torno da telinha num quarto que até a hora de dormir era sala de televisão coletiva, inclusive com presença de filhos de vizinhos — e às vezes os próprios pais, quando o capítulo da novela era crucial —, ríamos e chorávamos com nossos heróis, às vezes tão parecidos com a gente, como no caso de Irmãos Coragem.
Nunca esqueci de quando Wilker passou a existir para mim. Foi num caso especial em que um jovem professor, em sérios problemas financeiros, divide uma casa pobre com a esposa grávida. Sua pobreza era a nossa, sua mulher era nossa mãe, que saía de uma gravidez para entrar noutra, até completar os onze em que nos tornamos.
Nossa torcida era toda para que ele tivesse sucesso, pois, nesse caso, nós, cujo único caminho apontado por seu João e dona Maria para sairmos da vida difícil era o do estudo, poderíamos ter também.
Não precisa dizer o quanto ele sofre, sem dinheiro, avançada a gravidez da jovem companheira, com os sucessivos "nãos" que recebe pela cara. E, a cada "não", ele e sua jovem esposa mais se parecem com nossos pais — e nós, com aquela criança prestes a entrar no mundo pela porta da miséria.
O enredo é simples, e não me recordo nem do nome, nem de detalhes importantes do caso especial exibido pela Globo. Pela pouca idade, nem se me ocorria a importância de guardar o nome do diretor (pela linguagem, temática e profundo humanismo, arrisco que foi Vianinha, se não Dias Gomes — ou ainda Janet Clair).
Depois de muitas frustrações, o personagem interpretado por José Wilker acaba se inscrevendo num concurso público de docência, não sei se para o hoje Ensino Básico ou para o Superior, arrisco que foi para o Superior, pois se forma uma banca feroz que sabatina duramente o candidato [na verdade, trata-se do exame de Mestrado, em 2024 graças às maravilhas da Internet].
Antes da sabatina, o personagem, a esposa grávida, vive uma trajetória de dificuldades econômicas e de muitas tentativas de emprego frustradas, muito em função de sua escolha pessoal: dedicara-se apaixonadamente ao estudo de um tema específico: a vida e a história de Pedro Ivo, herói da Revolução Praieira (1848-50), em Pernambuco. O fato é que ele se prepara como um louco para esse exame, porém, apresenta-se arrasado à sabatina, pois, afinal das contas, a única coisa de que entende é Pedro Ivo e sua revolução libertária.
A cena decisiva do caso especial é quando uma banca de doutores de aparência terrível recebe o candidato para realizar a chamada oral. Nós — no quarto convertido em arquibancada de arena em que se jogam cristãos aos leões, uns acomodados na larga cama de molas de meus pais, outros em cadeiras capengas, outros pelo chão — estávamos sentados na verdade na cadeira ocupada por um José Wilker de olhos abatidos pelo sono dos estudos e pelas olheiras dos perdedores.
O olhar severo dos doutores da banca, posicionados em patamar superior, fulminavam o coitado do José, que naquele momento era todo o Brasil pobre, trabalhador, mal nutrido e cheio de amarga esperança. Anos mais tarde, embrenhando-me por nossa história, identifiquei aquela cena com fotos de julgamentos de presos políticos. Quem escreveu e dirigiu aquele caso especial era muito inteligente, teve muita coragem e contou com a burrice da censura, ainda bem.
Na cena decisiva, o clímax é quando o presidente da banca sorteia o ponto para sabatinar o candidato, o temível assunto sobre o qual o torturado José Wilker terá de discorrer com exatidão, se quiser conquistar o sonhado emprego que abrirá uma janela de respiro para o sufoco família, a dele e a nossa.
Não me lembro se após essa cena há mais alguma coisa de importante, mas é ela que está nos meus olhos até hoje: o presidente da banca anunciando o ponto e a câmera indo em close para o rosto sonado e infeliz do José, que arregala uns olhos marotos, felizes de assustar, e dá uma gargalhada que deixa a banca atônita e nós, empoleirados pelo quarto, em extremo êxtase: o ponto sorteado era... PEDRO IVO.
Na minha memória, o caso especial acaba aí, os membros da banca se entreolhando confusos, mas alegres, despidos mesmo da severidade, e com o rosto jovem e fresco de Wilker congelado numa belíssima gargalhada que, no entanto, nos fez chorar.
Enquanto a cegonha não vem, informa o blog Estranho Encontro,
"deu origem no ano seguinte ao longa-metragem O Casal (1975) [dirigido também por Daniel Filho, teve mais de 1 milhão de espectadores]. Do 'casal' televisivo, José Wilker foi mantido como protagonista. A
mocinha grávida, que na TV foi Renata Sorrah, no filme passou para Sônia Braga.
Estreando no Rio em 11 de Setembro de 1975, “O Casal” pegou La Braga na crista
da onda, por conta da novela “Gabriela”, que estreara em abril daquele distante
ano. 
Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP e Pós-Doutor em História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).