quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

SEARA VERMELHA: Uma seara que resiste ao tempo – Parte 3


Este artigo, capítulo de minha tese de doutorado na Universidade de São Paulo, foi publicado na íntegra no encarte da revista Princípios, quando dacomemoração dos 100 anos de nascimento de Jorge Amado.  Hoje, a terceira parte.

A legalização do PCB e seu vertiginoso crescimento no imediato pós-II Guerra criou em torno de suas teses uma aura de respeito e confiança que empolgou uma grande parcela da intelectualidade. Para um Jorge Amado tantas vezes perseguido por sua corajosa literatura fiel ao PCB, nada mais coerente do que, nesse curto período de legalidade democrática, continuar a fazer em condições favoráveis e de maneira ainda mais desassombrada o que fizera em condições extremamente adversas.

É por isso que, no centro dos conflitos representados pelo romance, está a luta entre camponeses e latifundiários, e é também por isso que Neném, ao final dele, retorna à terra em que nasceu: concretização da consciência do narrador na forma de personagem, ele vai sublevar os camponeses, coluna mestra da primeira etapa da revolução brasileira, segundo o pensamento do PCB da época. Pode-se se objetar hoje sobre o grau de acerto do Partido e do ficcionista – o primeiro em razão das teses, o segundo em razão da adesão incondicional a elas – porém, jamais sobre a generosidade e a coragem de ambos que, mesmo quando erraram foram, num sentido moral, ético e humano, grandes.

O pendor radicalmente partidário a que em nenhum momento Seara vermelha se furta está na base das simpatias e antipatias entre o narrador e as personagens.

Representações estilizadas de classes sociais ou de setores de classes, as personagens são retratadas de modo a conquistar o leitor para a causa política defendida pelo narrador,do que deriva a crítica ácida de setores acadêmicos, para os quais esse é um dos mais panfletários romances da obra de Jorge Amado e da literatura brasileira.

Desde o início do romance, quando o capataz Artur vai sendo diferenciado e distanciado do conjunto de trabalhadores, até o final, quando Neném volta ao sertão baiano e reecontra Militão, as aproximações e distanciamentos funcionam como metáforas da luta de classes nos moldes entendidos pelo PCB de então, e talvez o esquematismo dessas associações e dissociações se deve menos às técnicas composicionais empregadas pelo autor e mais ao pensamento partidário que subjaz a elas. 

Porém, há aqui um grande mérito de Jorge Amado, para quem a história e a sociedade são placenta legítima de a criação literária: nesse e em seus demais romances militantes está registrada uma forma de pensar do movimento revolucionário de época, que, nem por ser hoje objeto de críticas, deve ser ignorado ou escamoteado.

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Seara Vermelha, o filme (1964), por Rubens Ewald Filho:

Adaptação de um livro um pouco esquecido, sobre família que tem que se mudar para cidade grande e sua destruição. Embora este filme não seja reprisado, nem esteja disponível, nunca consegue esquecer desta adaptação do italiano Alberto D´Aversa (1920-69), importante professor e diretor de teatro. Nem da cena final nunca vista: quando a heroína enojada (Esther Mellinger) jogava uma cusparada bem na lente da câmera. Com Sadi Cabral, Fregolente, Margarida Cardoso.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

SEARA VERMELHA: Uma seara que resiste ao tempo – Parte 2


Este artigo, capítulo de minha tese de doutorado na Universidade de São Paulo, foi publicado na íntegra no encarte da revista Princípios, quando da comemoração dos 100 anos de nascimento de Jorge Amado.  Hoje, a segunda parte.

Fixado de uma vez para sempre num ponto de vista imóvel, a posteriori e acima, esse narrador, que dá por verdade uma verdade, a sua verdade,  segrega os opostos dialéticos acreditando confrontá-los, e entende essa segregação como síntese da luta entre contrários.

Assim, cangaço e revolução não podem coexistir numa só personagem, Jucundina segue um caminho de aprendizagem cumulativo e sem recuos, a ação revolucionária de Neném resulta necessariamente na filiação sem conflitos de Tonho ao Partido Comunista do Brasil.

Esse narrador criado por Jorge Amado apresenta-se, pois, despido de contradições, o que para a dialética é não uma contradição, mas um contra-senso, uma vez que se para ela o desenvolvimento social decorre da luta de classes, o desenvolvimento das idéias decorre da luta de idéias, à qual é inerente a contradição.
Jorge Amado foi deputado pelo Partido Comunista do Brasil em 1946, ano de publicação de Seara vermelha.

Esse romance, representativo de um alto grau de partidarização de sua obra e seu narrador, é efetivamente ficcionalização de um comunismo brasileiro de época, que se teve em Luís Carlos Prestes, no campo da política, seu principal expoente – não é a toa que, além de a João Amazonas, o livro seja dedicado a ele –, teve em Jorge Amado, no campo literário, seu mais assumido e desassombrado representante, para o bem e para o mal.

Para esse comunismo de época – aparentemente muito harmônico mas que explodirá em contradições com a morte de Stalin e com o posterior XX Congresso do PCUS, na URSS –, a dialética assume feições de panaceia, cujo domínio “seguro” levaria a pensamentos em perfeita harmonia com a realidade. Não se está aqui, a bem da verdade, muito longe de Descartes –e de um certo determinismo adaptado às necessidades de um raciocínio político um entre voluntarista e messiânico.

Tratado como escritor oficial do Partido, Jorge Amado procurou dar ao leitor não apenas sua versão sobre a revolta de 1935, mas também e principalmente representar na forma de romance o diagnóstico de época do próprio Partido sobre as causas das mazelas sociais do Brasil de então, bom como sua proposta de ação revolucionária.

Para o Partido Comunista do Brasil (PCB) do período, a revolução brasileira respeitaria a duas etapas, uma antilatifundiária e democrático-burguesa, pelo fato de as estruturas fundiárias predominantes serem – de acordo com o mesmo PCB – de caráter feudal, e outra socialista, sendo que a segunda só seria alcançada após a efetivação da primeira, que estaria na ordem do dia.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

SEARA VERMELHA: Uma seara que resiste ao tempo – Parte 1


Este artigo, capítulo de minha tese de doutorado na Universidade de São Paulo, foi publicado na íntegra no encarte da revista Princípios, quando da comemoração dos 100 anos de nascimento de Jorge Amado. Neste blog, será publicado em partes, a partir de hoje.

Em Seara vermelha, de 1946, segundo livro de Jorge Amado mais lido no estrangeiro, simultaneamente dedicado a Luís Carlos Prestes e João Amazonas, entre outros,coerente com seu projeto literário, o autor optou por uma narrativa organizada de modo bastante convencional sem maiores subversões de linguagem. 

Nela o tempo respeita a ordem cronológica e os planos narrativos, assim como as personagem, são estruturados hierarquicamente, como numa metáfora das relações sociais em seu desenvolvimento histórico.
Nessa hierarquia rígida, é do narrador de terceira pessoa que emanam todos os enunciados através dos quais o enredo se desenvolve e as personagens, em discurso direto, falam, e à posição privilegiada e onipresente desse narrador se associa ainda um tom sentencioso que confere a seu discurso uma significativa ilusão de onipotência e objetividade.

O narrador de Seara vermelha ocupa posição central nesse romance: tudo ouve, tudo vê e prevê, tudo sabe e tudo explica. Dado ao leitor pelo autor como metáfora da consciência revolucionária da época, seu partidarismo, estrito senso, faz com que as personagens funcionem como caixa de ressonância de sua voz intensamente ideologizada.

Foco que mobiliza toda a engrenagem narrativa de Seara vermelha, a voz do narrador se oferece ao leitor como registro de uma supra-consciência no interior da qual os fatos, as experiências e as outras consciências representadas pelas personagens se refletem e ganham sentido.

Situada hipoteticamente num momento posterior àquele relatado, essa “supra-consciência”, sob o disfarce de um raciocínio aparentemente dedutivo, conduz unidirecionalmente a narrativa a soluções confirmadoras de seu ponto de vista.

Disso resulta que o leitor, crente de estar “pensando junto” com o narrador, na realidade está sendo induzido inapelavelmente a aderir a um ponto de vista, a uma percepção do mundo, a um partido.

A aparência de verdade que todas as coisas assumem na voz desse narrador é, assim,  mais que busca de representação da realidade, estratégia de convencimento bem urdida, na qual personagens e fatos, sob o manto diáfano da narração, se constituem em elementos de apoio à sustentação argumentativa – motivo pelo qual esse e outros romances de Jorge Amado de igual feitio têm sido apontados como romances de tese.

Os efeitos de integridade, coesão e coerência de Seara vermelha se devem em grande medida ao tipo de narrador criado por Jorge Amado, que articula categorias da dialética, sem dúvida, porém, de forma um tanto mecânica, por mais contraditório que isso pareça.