segunda-feira, 12 de abril de 2010

O Quinze, de Rachel de Queiroz

O Quinze é o romance mais popular de Rachel de Queiroz, que o escreveu e publicou em 1930, portanto com apenas 20 anos de idade. Sem ser autobiográfico, o romance se apoia no êxodo provocado pela seca de 1915 na região de Quixadá, no Ceará, e se organiza em torno da personagem Conceição, que, normalista como Rachel, tem idéias feministas e encara a luta pela vida com desassombro e iniciativa.

Em meio à seca que devasta o sertão, Conceição reflete sobre a vida, o papel da mulher numa sociedade extremante patriarcal, sobre a solidariedade humana e sobre as decepções amorosas.

Nesse romance, a crítica social vem acompanhada de um sutil lirismo que procura situar os sentimentos da mulher em relação ao homem amado, a partir do confronto entre o idealismo romântico dos primeiros impulsos e o juízo um tanto amargo da reflexão crítica:

“A verdade é que ela era sempre uma tola muito romântica para lhe emprestar essa auréola de herói de novela (...).

Foi então que se lembrou que, provavelmente, Vicente nunca lera Machado [de Assis]... Nem nada do que ela lia.

Ele dizia sempre que, de livros, só o da nota do gado...

Num relevo mais forte, tão forte quanto nunca o sentira, foi-lhe aparecendo a diferença que havia entre ambos, de gosto, de tendências, de vida.

O seu pensamento, que até há pouco se dirigia ao primo como a um fim natural e feliz, esbarrou nessa encruzilhada difícil e não soube ir adiante.”

Essa abordagem, que articula à temática regional certa demanda psicológica sob um ponto de vista feminista, atraiu sobremaneira a atenção dos literatos da época e dos leitores que, ainda hoje, passados 80 anos da publicação da primeira edição, continuam a ler nesse romance uma crítica social bastante atual, pertinente e elaborada artisticamente com primor.

FONTE: Queiroz, Rachel de. O Quinze. 86 ed. Rio de Janeiro, Ed. José Olympio, 2009.

Histórias Extraordinárias, de Allan Poe



Trad. e Adapt. Clarice Lispector

Esta exclente tradução de Clarice Lispector para as Histórias Extraordinárias, de Edgard Allan Poe, oferece ao leitor 18 dos mais importantes contos da obra desse decisivo autor da literatura de língua inglesa. A qualidade da edição, por outro lado, é um estímulo ao leitor, que recebe em mãos num só volume um clássico da literatura fantástica e uma tradução de altíssima qualidade de uma das mais importantes escritoras da literatura brasileira, cujo domínio de ambos os idiomas é indiscutível.

O mesmo rigor no tratamento da linguagem de Clarice Lispector em seus romances aqui revela-se na forma de uma tradução requintada, na qual o suspense, marca registrada do importante escritor norte-americano, surge na forma de um vocabulário que, simulando objetividade, reserva para o leitor muitos alçapões cheios de ambiguidades, supresas e sustos:

“Amanhã morrerei e hoje quero aliviar minha alma. Por essa razão vou lhes contar tudo. Na verdade, tudo não passou de uma série de simples acontecimentos domésticos. Mas, pelas suas consequências, estes acontecimentos me aterrorizaram, me torturaram e me aniquilaram. Espero que para outros não pareçam terrívies. Para mim foram. Tanto que, até agora, penso que sonhei. Ou que enlouqueci. Não, louco não devo estar. É que foi demais, horrível demais. Inacreditável que tudo isso tenha acontecido. E assim como aconteceu. E logo comigo que, desde menino, fui sempre dócil, humano”.

A sensação provocada pelo vocabulário convocado pela tradutora é a de que o narrador está abrindo seu coração e contando tudo ao leitor, mas, até onde o parágrafo está desenvolvido, esse narrador não contou absolutamente nada.

Esse narrador do conto “O gato preto” que inicia o volume, na versão de Clarice, vai, isso sim, fermentando o espírito do leitor com dúvidas, cismas, indícios e expectativas.

Nessa estratégia de prestidigitação, palavras aparentemente inequívocas vão constuindo cenários sombrios e idéias ambíguas. Afinal, aquilo que virá a encontro do leitor, é sonhado ou não, é loucura ou não, corresponde ao menino dócil e humano que o narrador foi ou não?

Mistério...

Que a tradutora soube respeitar – e segredo, que ela soube guardar até o último momento, com requinte e em reverência ao autor.

FONTE: Lispector, Clarice. História Extraordinárias/Edgard Allan Poe. Trad. e adapt. Clarice Lispector. Rio de Janeiro, Ediouro, 2005.

Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa


Nesta obra prima de João Guimarães Rosa, Riobaldo, jagunço aposentado e fazendeiro de Minas Gerais, às voltas, entre outros, com o dilema da venda da alma para o diabo, passa a limpo a vida de bandoleiro do sertão.

O enredo se desenvolve a partir das memórias desse jagunço que, em perseguição do bando de Hermógenes, assassino do chefe Joca Ramiro, estabelece uma estranha relação de amizade com Diadorim, companheiro de bando cuja beleza o perturba.

Enquanto filosofa acerca da existência ou não do diabo e sobre os mistérios que envolvem a condição da vida em bando, o narrador Riobaldo tenta, por meio das palavras, compreender o que foi sua vida e o significado de sua relação com Diadorim.

A dificuldade para o narrador se apresenta não apenas em razão da natureza imprecisa das palavras, sempre lisas e fugidias para expressar a realidade, a essência dos pensamentos ou dos sentimentos, mas também em razão de as lembranças moverem-se na memória de forma escorregadia, como se se oferecessem ambíguas ao próprio:

“O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que o situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucúia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é o dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fecho; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucúia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães...”

Acompanhando o hábil narrador, o leitor é levado a perseguir os sentidos das palavras a partir de eventos abertos a todas as “opiniães”, que podem inclusive não se terem dado, a julgar pelo escorregadio da linguagem:

“Do demo? Não gloso. Senhor pergunte aos moradores. Em falso receio, desfala no nome dele – dizem só: o Que-Diga. Vote! Não... Quem muito se evita, se convive”.

Afinal, o demo há ou não não há? Existe ou desexiste?

O narrador que passa sua jornada de ex-jagunço em revista é um desconfiado, pois sua vida em bando lhe reservou acontecimentos prodigiosos, entre os quais a revelação da verdadeira natureza de Diadorim, companheiro de armas que, sendo um, era na realidade “outra”.

Além da engenhosidade do enredo, essa obra de Guimarães Rosa alcançou o espaço que ocupa na literatura brasileira graças à linguagem inventada pelo autor, linguagem que articula a um só tempo neologismos e arcaísmos, fala popular e vocabulário culto, subjetividade no relato e precisão descritiva, diálogos secos e sintaxe complexa, entre outros.

Por isso, não se deve ler esse romance com ânsia de se chegar logo ao final. Cada página é como se fosse um verdadeiro poema, tal é o esmero do autor no tratamento das palavras. Não são poucos os trechos que poderiam ser destacados e lidos com prazer como se fossem peças únicas.

Alías, fica aqui a sugestão de que os leitores selecionem trechos dessa obra impressionante para leitura oral e coletiva. Tanto no que diz respeito ao assunto, quanto no que tange à linguagem escorregadia, múltiplas interpretações surgirão seguramente, não se tenha dúvidas: pão ou pães, é questão de opiniães.

FONTE: Rosa, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 19 ed. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 2001.