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terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Percurso de João Antônio até mim

É dezembro, estou agora olhando para a capa da 7a. edição da Record do livro de contos de João Antônio Malagueta, Perus e Bacanaço. Esse exemplar eu recebi de uma escola que fechou as portas quando eu lá trabalhei. Ela pagou o que pôde aos funcionários e professores da forma que pôde.

A mim couberam livros que os donos arruinados do estabelecimento comercial da área da educação consideravam de algum valor, entre os quais este, do qual comento aqui a capa. Não estavam de todo enganados, pois boa parte do que me deram como paga aos meus serviços de professor era de boa qualidade. Pena que a imobiliária não os aceitasse para quitação do aluguel.

Um exemplar dessa mesma edição eu já tivera em mãos quando adolescente. Meu irmão, que já se encontra no andar de cima, trabalhava na Folha de S. Paulo e de vez em quando aparecia com um lançamento que enviavam ao jornal para divulgação.

Na época eu me importava mais com o jogo de futebol do que com a literatura. Em princípio, não dei a menor para esse livro maior, mas como depois da pelada na rua a gente ia ver os marmanjos, entre os quais um outro irmão meu, este versado nas artes na malandragem, afiar o taco no bilhar, a capa me convidou e eu passei as férias relendo e relendo  esse clássico do submundo.  Era era também dezembro, mas era 1979, quase em outra vida.

Mudei tanto de endereço na juventude que fui me desfazendo de muita coisa a cada destino novo, sempre menor. Miseravelmente esse livro ficou pelo caminho. Porém, quis o destino que ele me retornasse às mãos, anos depois, por vias transversas. Melhor dizendo, adversas.

O fundo da imagem da capa dessa edição é o buraco do Adhemar à noite, com as lanternas traseiras dos automóveis esticando aquelas linhas vermelhas de antigos cartões postais, em meio à paisagem escura enfeitada pelas placas luminosas, pelos imensos out-doors de néon e pelas poucas janelas dos edifícios com suas luzes acesas a denunciar o adiantado da hora.

Só quem conheceu a cidade de São Paulo quando ainda havia buraco do Adhemar, placas luminosas psicodélicas e out-doors gigantes de néon saberá o quanto essa linda imagem, fotografada sem dúvida do viaduto Santa Ifigênia, tem de nostálgico e melancólico.

Na parte baixa da capa, aplicada sobre essa fotografia evanescente, ocupando toda sua largura, há uma ilustração em desenho colorido. Nela, uma mesa de bilhar com apenas três bolas, uma azul, uma branca e uma amarela.

À mesa, no taco, um jogador de face branca, bigode, mãos curadas, camisa de punho branca e colete preto. Atrás dele, apoiando-se na mesa, um observador, de paletó azul claro, chapéu de malandro. Atrás deste, um último personagem de paletó branco, cabelos e bigode pretos. Com certeza, na ordem, ilustrações de Malagueta, Perus e Bacanço. Os três concentrados pela tensão da tacada, enquanto a cidade escura ao fundo escorre em listras sanguíneas pela obra de engenharia urbana de apelido pouco respeitoso.

O taco de bilhar está prestes a cutucar a bola branca na direção da azul. Tudo indica que ela será encaçapada no buraco de quina do fundo, na parte direita da mesa que ficou de fora da capa. Não deixa de ser intrigante que na mesa de pano verde falte o buraco, a caçapa, enquanto que na foto escura que serve de fundo à capa o ilustrador tenha escolhido fazer constar justamente a então caçapa mais famosa da cidade.

Aplicados em primeiro plano, no alto, o nome  do autor, em maiúsculas, em branco e bordas vermelhas: JOÃO ANTÔNIO. Logo abaixo, uma breve chamada em letras menores: Autor de Leão de Chácara. Imediatamente abaixo, o título do livro, em vermelho com sombreado amarelo: MALAGUETA, PERUS E BACANAÇO. Em letras menores, ao centro da imagem, outra chamada, esta para o livro: “Um mergulho no submundo. É o clássico velhaco. Um dos livros mais premiados do país. Histórias já traduzidas em oito idiomas".

Esta edição é de 1980, mas a capa é toda ela segunda metade da década de 1970. Nessa época, os bares com bilhares em São Paulo já estavam indo para o brejo. No lugar das mesas, foram sendo instaladas máquinas de fliperama e de jogos da Taito. Eu, então office-boy fora da escola por razões que a luta de classes e a luta pela democracia me explicou depois, dava nesses bares com meus iguais, depois do expediente e às vezes no meio dele, por causa das máquinas. Porém, ainda dividimos espaço neles com personagens como as retratados na ilustração de capa do livro de João Antônio - e, como nela, eles não conversavam.

Ou antes, conversavam por gestos e olhares. No barulho das pancadas que dávamos nas máquinas para impedir que elas engolissem nossas bolinhas antes do tilt, víamos suas bocas se mexerem de raro em raro, em comentário a uma ou outra jogada, entre baforadas de cigarro mata-ratos, vendidos a granel, meio úmidos, amassados e sem filtros.

Os mal educados éramos nós. Eles, com seus tacos engizados e seus olhares concentrados eram uns finos. Íamos embora e eles continuavam noite adentro e madrugada afora. Nunca reclamaram de nosso barulho de passarinhos pousados em galho talvez errado.

Novas edições dessa obra de João Antônio se esmeraram em manter vivo esse texto significativo de nossa literatura. Porém, mataram a capa.

Por isso guardo com tanto amor o exemplar dessa edição, que me chegou em primeira vez pelas mãos curadas de meu irmão, um fino, um boêmio, com quem tantas vezes frequentei esses mesmos bares, e em segunda pelas mãos de comerciantes da educação arruinados.

Tratando do assunto de que trata, e do modo como trata, não poderia imaginar percurso mais legítimo desse livro de João Antônio até mim. Nem melhor capa, cujo autor não mereceu da parte da editora sequer menção na página interna de créditos.

Talvez tomado pela melancolia do espírito natalino, talvez pela saudade de meu irmão, todo final de ano me vejo folheando esse volume. Pela janela da ilustração de capa, recuo no tempo para o distante dezembro de 1979, e  vou saltando  os olhos do pano da mesa de bilhar para a avenida  Prestes Maia, que some na noite rumo a uma Zona Norte que não existe mais.

JEOSAFÁ, professor, foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo. É escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria);   O jovem Malcolm X A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela editora Mercuryo Jovem. Leciona atualmente para a Educação Básica, em projetos para jovens em situação de risco social, entre os quais o Vira Vida, parceria Senac-Sesi-Senai.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Seleta em Prosa e Verso, de Ariano Suassuna


Silviano Santiago, organizador

Esta Seleta em Prosa e Verso de Ariano Suassuna reúne textos bastante representativos da obra do autor. Organizada por Silviano Santiago – outro importante escritor, teórico e crítico brasileiro –, que abre o livro com um breve mas significativo artigo sobre a obra do autor, o volume oferece um bom panorama da produção desse que é um dos mais versáteis, inventivos e produtivos autores da literatura brasileira.

A obra está divida em quatro partes: “Teatro”, “Poesia”, “Ficção” e “Depoimento”, no qual o próprio Ariano Suassuna discorre sobre as fontes populares de sua pesquisa estética.

Ariano Suassuna tem uma extensa obra e, portanto, esta seleta é uma amostra que convida o leitor a frequentar as páginas dos livros-fonte. Porém é um convite sedutor, uma vez que os excertos selecionados por Silviano Santiago são, além de representativos, de grande beleza. Vejamos um, a título de exemplo:


“Aqui, morava um Rei, quando eu menino

vestia ouro e castanho no Gibão.
Pedra da sorte sobre o meu Destino,
pulsava, junto ao meu, seu Coração.

Para mim, seu Cantar era divino,
quando, ao som da Viola e do bordão,
cantava, com voz rouca, o Desatino,
o sangue, o riso e as mortes do Sertão.

Mas mataram meu Pai. Desde esse dia
eu me vi como um Cego, sem meu Guia,
que se foi para o Sol, transfigurado.

Sua Efígie me queima. Eu sou a Presa,
ele a Brasa que impele o Fogo, acesa,
espada de Ouro em Pasto ensanguentado.”


A linguagem de Suassuna, seja no teatro, seja na poesia, seja na ficção, tem um indisfarçável arranjo poético que encanta enquanto conta. As sagas do sertão e de personagens populares estão representadas não apenas em enredos cheios de símbolos e alegorias, mas com igual ênfase em linguagem sofisticada, cujo ritmo e música suscitam, pelo embalo da audição, imagens e vestígios de passados míticos e místicos, afundados no tempo, que evocam aventuras e heroísmos da Idade Média, tão presentes na tradição popular no Nordeste.

O Auto da Compadecida, talvez a obra mais conhecida do autor, adaptado por Guel Arraes, com um elenco de grande gabarito (Fernanda Montenegro, Matheus Nachtergaele, Selton Mello, Maurício Gonçalves, Lima Duarte, Rogério Cardoso, Virginia Cavendish, Paulo Goulart, Antônio Morais, Denise Fraga, Diogo Vilela, Luís Melo, Bruno Garcia, Marco Nanini, Aramis Trindade entre outros de igual prestígio e relevância) foi sucesso nas telas do cinema e é sucesso até hoje nas telas da televisão.

Assistir ao filme é uma boa pedida para a realização de trabalhos em sala de aula que ousem enfrentar a rotina e incorporar a interpretação oral ou a montagem cênica, ainda que seja somente de trechos escolhidos – o que não é atividade de menor importância.

Porém a primeira filmagem é de 1969, na qual o próprio Suassuna participou na elaboração do roteiro:



A Compadecida é um filme brasileiro de 1969, do gênero comédia, dirigido por George Jonas e roteiro de Ariano Suassuna e George Jonas, baseado na premiada peça de Ariano Suassuna, A Compadecida. Foi gravado em Brejo da Madre de Deus, em Pernambuco. Fonte: Wikipedia.

Os textos presentes nesta antologia têm vocação oral e cênica e, com certeza, os estudantes teriam um contato mais amplo e aprofundado com eles se tivessem a oportunidades de experimentá-los oral e coletivamente, a partir de técnicas teatrais e de leitura expressiva. 

FONTE: Suassuna, Ariano. Seleta em Prosa e Verso. Org. Silviano Santiago. Rio de Janeiro, Ed. José Olympio, 2007.

Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa


Nesta obra prima de João Guimarães Rosa, Riobaldo, jagunço aposentado e fazendeiro de Minas Gerais, às voltas, entre outros, com o dilema da venda da alma para o diabo, passa a limpo a vida de bandoleiro do sertão.

O enredo se desenvolve a partir das memórias desse jagunço que, em perseguição do bando de Hermógenes, assassino do chefe Joca Ramiro, estabelece uma estranha relação de amizade com Diadorim, companheiro de bando cuja beleza o perturba.

Enquanto filosofa acerca da existência ou não do diabo e sobre os mistérios que envolvem a condição da vida em bando, o narrador Riobaldo tenta, por meio das palavras, compreender o que foi sua vida e o significado de sua relação com Diadorim.

A dificuldade para o narrador se apresenta não apenas em razão da natureza imprecisa das palavras, sempre lisas e fugidias para expressar a realidade, a essência dos pensamentos ou dos sentimentos, mas também em razão de as lembranças moverem-se na memória de forma escorregadia, como se se oferecessem ambíguas ao próprio:

“O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que o situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucúia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é o dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fecho; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucúia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães...”

Acompanhando o hábil narrador, o leitor é levado a perseguir os sentidos das palavras a partir de eventos abertos a todas as “opiniães”, que podem inclusive não se terem dado, a julgar pelo escorregadio da linguagem:

“Do demo? Não gloso. Senhor pergunte aos moradores. Em falso receio, desfala no nome dele – dizem só: o Que-Diga. Vote! Não... Quem muito se evita, se convive”.

Afinal, o demo há ou não não há? Existe ou desexiste?

O narrador que passa sua jornada de ex-jagunço em revista é um desconfiado, pois sua vida em bando lhe reservou acontecimentos prodigiosos, entre os quais a revelação da verdadeira natureza de Diadorim, companheiro de armas que, sendo um, era na realidade “outra”.

Além da engenhosidade do enredo, essa obra de Guimarães Rosa alcançou o espaço que ocupa na literatura brasileira graças à linguagem inventada pelo autor, linguagem que articula a um só tempo neologismos e arcaísmos, fala popular e vocabulário culto, subjetividade no relato e precisão descritiva, diálogos secos e sintaxe complexa, entre outros.

Por isso, não se deve ler esse romance com ânsia de se chegar logo ao final. Cada página é como se fosse um verdadeiro poema, tal é o esmero do autor no tratamento das palavras. Não são poucos os trechos que poderiam ser destacados e lidos com prazer como se fossem peças únicas.

Alías, fica aqui a sugestão de que os leitores selecionem trechos dessa obra impressionante para leitura oral e coletiva. Tanto no que diz respeito ao assunto, quanto no que tange à linguagem escorregadia, múltiplas interpretações surgirão seguramente, não se tenha dúvidas: pão ou pães, é questão de opiniães.

FONTE: Rosa, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 19 ed. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 2001.

A Hora da Estrela, Clarice Lispector


A Hora da Estrela é uma das mais importantes obras de Clarice Lispector. A contundência da escrita, aqui, remove camadas superficiais da realidade para desvelar a situação de emparedamento da personagem principal frente a barreiras sociais de dificílima transposição. A temática social e a linguagem elaborada de forma requintada resultam em um texto paradigmático da literatura contemporânea brasileira.

O livro articula num só enredo Macabea, retirante alagoana que, como tantas, busca sorte e felicidade na cidade grande, Rio de janeiro, e o fictício escritor Rodrigo S. M, encarregado de narrar essa saga que não dará em leite e mel, mas em desacertos e amarguras.

Coadjuvante em sua própria história, Macabea só terá protagonismo no momento de sua morte, quando será atropelada por um automóvel importado, cujo motorista guarda semelhança com a descrição de seu “príncipe encantado”, feita pela cartomante a quem consultou.

A linguagem tendendo para dialeto regional, registra, em que pese a evidente crítica social, as esperanças ingênuas de uma personagem que será ludibriada pelo oportunismo (representado pelo namorado que a troca por outra de maiores posses); espezinhada pela insensibilidade (de uma cidade que dá as costas às suas dificuldades) e destruída pela frieza humana (representada pela máquina que a destroça ironicamente).

Adaptado para o cinema por Suzana Amaral em 1985, essa história incômoda não cessa de ver seu público crescer. A ingenuidade da rústica Macabea em oposição à falta de escrúpulos da sofisticada cidade expõe com eloquência o choque de valores não só culturais, mas também morais e humanos, aos quais a autora quis, sem dúvida aludir.

Ler e discutir o romance e compará-lo com o filme configura duplo prazer estético, uma vez que a adaptação de Suzana Amaral é de excelente realização e conta com um elenco bastante competente, no qual se contam: José Dumont, Tamara Taxman, Fernanda Montenegro, Denoy de Oliveira entre outros.

FONTE: Lispector, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro, Ed. Rocco, 1998.

200 Crônicas Escolhidas, de Rubem Braga

Antologia de crônicas bastante representativa e ampla de um dos maiores cronistas brasileiros, estas 200 Crônicas Escolhidas, de Rubem Braga, oferecem ao leitor um excelente painel da produção do autor que, ao imprimir à crônica um estilo de tal forma poético, contribuiu decisivamente para que ela se alçasse à condição de gênero literário apreciado e frequentadíssimo.

Esta seleção é organizada a partir de obras publicadas anteriormente, das quais um certo número de crônicas foi extraído. Assim, estão representados nesta antologia os livros: O conde e o passarinho (1936); Morro do isolamento (1944); Com a FEB na Itália (1945); Um pé de milho (1948); O homem rouco (1948); A borboleta amarela (1955); A cidade e a roça (1957); Ai de ti, Copacabana! (1960) e A traição das elegantes (1967).

As crônicas de Rubem Braga transpiram humanidade, suavidade e poesia. Em seu texto, temas do cotidiano, aparentemente despidos de maior interesse, ganham relevo a partir de um ponto de vista agudo às sutilezas de detalhes e de uma linguagem trabalhada com sofisticação, mas sem sombra de preciosismos.
Nessas 200 crônicas o leitor tem a oportunidade de ver o tempo e os costumes passarem ante seus olhos não como em um desfile, mas como um passeio despreocupado pelas ruas, pelas cidades, mas também pelos destroços – caso daquelas relativas à Segunda Grande Guerra.

A mensagem que parece brotar desses textos é a de que a vida é simples e de que, se não é melhor, é porque nós a complicamos demais, detendo-nos em aspectos supérfluos que nos distanciam das coisas realmente essenciais, todas elas relacionadas à amizade, ao entendimento entre os homens, à poesia.

Como aqui se trata de crônicas, seria muito proveitoso procurar identificar em atividades de pesquisa ou escolares os elos entre os textos de cada uma e seu elo com o período de que trata. Isso daria oportunidade para que se observassem neles aspectos que garantem às crônicas de Rubem Braga a permanência com relevo na literatura brasileira, aspectos menos afetados pelo tempo, mais atemporais, por assim dizer. Quais seriam esses aspectos? Por que uma crônica da década de 1930 ainda nos toca de modo tão comovente?

FONTE: Braga, Rubem. 200 crônicas escolhidas. 27 ed. Rio de Janeiro, Ed. Record, 2009.

Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século



Italo Moriconi, organizador

Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século é uma antologia de contos brasileiros do século XX, em que comparecem os mais representativos autores do período. O livro adequa-se otimamente às séries finais do Ensino Fundamental, ao Ensino Médio e ao público adulto, que nesta edição muito bem cuidada terão um amplo panorama da produção brasileira no período.

O título é passível de reparo, uma vez que as opções feitas pelo organizador são pessoais, embora baseadas em juízo crítico, e que o ranqueamento imposto pelo termo “melhores” é igualmente passível de amplo questionamento. Razões comerciais, sem dúvida, nortearam a escolha do título.

Todavia, a seleção é representativa da produção brasileira do período, é bem feliz e o tratamento dos textos é primoroso e a ressonância comercial do título não prejudica em nada o conteúdo da seleção, realmente muito boa.

O leitor, de posse desse volume, tem uma amostra significativa dos autores que, no século XX, militaram com relevância nesse gênero, que não cessou de aumentar de público desde 1900, em função mesmo da persistência e valor desses mesmos autores.

Os critérios adotados pelo autor – que divide o século em momentos aglutinantes (de 1900 aos anos 1930; anos 40 e 50; anos 60; anos 70; anos 80 e anos 90) – permitem a ele, seguindo essa divisão cronológica, oferecer, num mesmo volume, de Machado de Assis a Dalton Trevisan, de Júlia Lopes de Almeida a Olga Savary.

A diversidade de temas, de abordagens e estilos permite que se viaje pelas mais inusitadas experiências humanas transfiguradas pela literatura, tanto quanto permite apreciar as estratégias adotadas pelos vários autores para iludir e divertir o leitor com seus ardilosos artifícios de linguagem e com sua habilidade inesgotável para criar situações e mundos improváveis, mas convincentes.

Se a ordem cronológica adotada possibilita ao professor ou ao estudante observar o desenrolar da produção contística brasileira ao longo do século XX, a segmentação temática, agregada à cronológica, serve como recorte de sentido, a criar elos entre os contos dessa forma agrupados.

Assim o organizador articula à época os subtítulos orientadores: para os anos 1900 a 1930, “Memórias de ferro, desejo de tarlatana”; para as décadas 40 e 50, “Modernos, maduros, líricos”; para os anos 60, “Conflitos e desenredos”; para os anos 70, “Violência e paixão”; para os anos 80, “Roteiros do corpo”; e para os anos 90; “Estranhos e intrusos”.

Essa subtitulação diz respeito ao que o organizador considerou representativo em cada período, o que orientou suas escolhas, seja no âmbito dos autores eleitos para a coletânea, seja no que diz respeito ao conto representativo da obra do autor destacado. Conferir a pertinência dessa segmentação cronológica e esse agrupamento temático é um excelente exercício a ser realizado em grupo ou individualmente, em sala ou como tarefa de casa.

FONTE: Moriconi, Italo. Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século. Rio de Janeiro, Ed. Objetiva, 2001.

Antes do Baile Verde, Lygia Fagundes Telles


Antes do Baile Verde é uma significativa, admirada e por que não dizer “mutante” reunião de contos de uma das mais importantes escritoras brasileiras. Em edição de muito bem cuidada, a editora oferece ao leitor um volume primoroso, acrescido de textos em posfácio bastante úteis para compreensão da obra, que já teve outros formatos e extensões, e da autora, sempre a burilar seus textos em busca de uma expressão mais depurada da linguagem – a exemplo deste livro, que já teve dezesseis, passou a vinte e agora reúne dezoito contos.

A que se devem essas mudanças? Haveria muitas razões, mas entre elas se conta certamente a exigência da autora em relação à sua própria produção, constituída entre a delicadeza e o inusitado.

Neste volume, drama e fantasia, reflexão crítica e terror psicológico são tratados com requinte e habilidade de, por que não dizer, trapezista. Os personagens, em meio a tensões às vezes angustiantes, às vezes fantásticas, equilibram seus destinos instáveis  em meio a situações-limite... até que a corda bamba se parta, os fatos escapem à órbita normal e os narradores os encaminhem para o imponderável, ante os olhos incrédulos do leitor.

O estilo fluido e envolvente da autora contribui para que o leitor desça junto com os personagens pelas corredeiras do enredo que, passando pelo suave e pelo sublime, podem dar no inusitado, no surpreendente e, não se duvide, no inacreditável.

Perguntar, após cada conto, por que as coisas se deram tal como se deram é inevitável. E se isso não altera o destino das personagens, com certeza altera os destinos do leitor, nunca o mesmo a cada leitura.

FONTE: Telles, Lygia Fagundes. Antes do Baile Verde. Posfácio Antonio Dimas. São Paulo, Cia. Das Letras, 2009.

A Estranha Máquina Extraviada, de José J. Veiga


O escritor José J. Veiga.
A Estranha Máquina Extraviada é um volume de contos dos mais importantes da obra de José J. Veiga. Os temas tratados de forma aguda e inquietante orientam o leitor na descoberta do que vai por sob a aparente normalidade do cotidiano.

Sem dúvidas, um dos aspectos mais impressionantes dos contos deste livro – como de resto, de toda a obra de José J. Veiga – é a linguagem que, por sob a transparência, a objetividade e a clareza simuladas, reserva ao leitor os maiores espantos, engendrados meticulosamente como se fossem coisas naturais.

No entanto, o leitor não poderá jamais arguir em sua defesa não ter sido prevenido pelo narrador acerca dos eventos incomuns em progresso na narrativa. Esses eventos anormais são sempre antecipados da forma mais evidente possível. Se escapam ao leitor é porque ele, contraditoriamente, se deixa iludir pela franqueza das palavras, concordando em penetrar inocente em mundos perturbados, tal como um inocente banhista se lança com prazer em águas plácidas, mas prenhe de riscos imprevistos. No início deste livro lê-se:

“O mascate escolheu um mau dia para bater em Sumaúma... Também se ele adivinhasse não estaria naquela vida. Ele já tinha estado ali algumas vezes, e da última jurara nunca mais voltar.”

O texto é límpido como um mar sem rugas, porém, os eventos funestos, improváveis, incontornáveis já foram anunciados. A placidez da linguagem ofusca as intenções, e o leitor, ante a natureza perturbadora dos fatos, se vê forçado a retornar um parágrafo para se certificar do que leu.

Mas a dúvida permanecerá, como uma sutil vibração na planura cristalina da água. Mais adiante, confirmadas as impressões, o leitor ainda se perguntará: li direito ou perdi algo? Retrocederá então alguns parágrafos incrédulo de que o narrador o tenha verdadeiramente atirado aos abismos ignotos sem nunca ter mitigado uma só linha, uma só palavra, uma só advertência explícita.

Por isso, o melhor a fazer, é sempre desconfiar das melhores intenções dos narradores destes contos inquietantes e deliciosos, como mar límpido e sem sombra de ondas... mas prenhe de tubarões. Porém, quer se divertir para além da leitura do conto para alguns metáfora do capitalismo? Leias os comentários desta postagem, Sendo muitos de ódio, são de morrer de rir.

FONTE: Veiga, José J. (José Jacinto). A Estranha Máquina Extraviada. 13 ed. Rio de Janeiro, Ed. Bertrand Brasil, 2008.


Jeosafá é escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria),  em maio de 2015, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora, e no mesmo ano A lenda do belo Pecopin da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela Mercuryo Jovem. Leciona para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados de São Paulo.