As pesquisas e as práticas de Freud inserem-se no conjunto
de revoluções científicas e técnicas do século XIX, que promoveram um progresso
exponencial em todas as áreas do conhecimento humano. Porém essas revoluções
não ocorreram como frutos do acaso, constituindo-se, antes, como um salto de
qualidade de mais de quatro séculos de disputas entre os pontos de vista
religiosos e os científicos — os quais ao mesmo tempo impulsionavam e eram
impulsionados pelo capitalismo nascente.
Com efeito, das grandes navegações, com suas caravelas
movidas pelo vento, em fins do século XV e início do XVI, à máquina à vapor,
que pôs navios gigantescos nos oceanos e espalhou ferrovias por todos os
continentes da Terra, no século XIX, praticamente todas as barreiras religiosas
que se opunham ao progresso tecno-científico vieram abaixo.
Se a filosofia, com seus humanistas e iluministas, em sua
guerra contra o predomínio da religião, imperou soberana nos meios cultos até o
século XVIII, no século XIX o polo dinâmico se deslocou para as ciências da
natureza, que já tinham em Copérnico, Newton, Galileu e Giordano Bruno um solo fértil,
cultivado desde o século XVI. Porém não veio diretamente da física a influência
predominante desse século XIX tão decisivo para as ciências, mas do que então
se chamava história natural, hoje identificada com a biologia.
A pesquisa genética de Mendel e principalmente a da origem
das espécies, de Darwin, ultrapassaram seus próprios limites, e tiveram suas
perspectivas e seus métodos importados pelas demais ciências, naturais ou
humanas — entre as quais as que se voltavam para o estudo dos transtornos
mentais.
De uma maneira geral, pessoas com transtornos mentais mais
severos eram, como continuam a ser até os dias de hoje em muitas partes do
mundo, em manicômios e asilos para alienados, onde, a depender da situação
econômica e da tradição local, eram compartilhavam espaço com crianças órfãs e
idosos abandonados, surdos-mudos confundidos com pacientes psiquiátricos, tuberculosos,
leprosos entre outros.
Os trabalhos de Freud e de sua geração de pesquisadores da
mente foi pioneiro, ao buscarem, orientados por critérios científicos, diagnosticar
transtornos psíquicos e desenvolver métodos e práticas terapêuticas.
Afastando perspectivas metafísicas, religiosas, místicas e
do senso comum, Freud logrou compreender a pisque de seus pacientes por meios inusitados
para a época. Porém, para tanto, era necessário desenvolver conceitos eficazes
tanto na diagnose quanto na terapêutica. De todos os conceitos desenvolvidos
por Freud, talvez o mais emblemático seja o de “inconsciente”.
Ao propor que a psique humana é constituída de três
dimensões — consciente, pré-consciente e inconsciente —, Freud põe por terra as
ideias religiosas de unidade da alma, e as metafísicas, de identidade
individual indivisível. Não fora o suficiente para abalar verdades até então
consagradas, Freud ainda defende que a maior parte da psique humana é ocupada
pelo inconsciente, no qual residem lembranças, memórias e pulsões recalcadas
durante o processo que se inicia no útero materno e que acompanha o indivíduo
até sua morte.
Se num primeiro momento Freud compreende a psique humana
como tripartida entre consciente, pré-consciente e inconsciente, à medida que
suas pesquisas avançam e suas sistematizações progridem ele chega à uma outra
versão dessa mesma ideia. Agora, para ele, sem descartar a tríade
consciente-pré-consciente-inconsciente, os conceitos de Id, Ego e Superego
ganham lugar. Esse modelo promoverá um verdadeiro abalo nas ciências da mente e
da psique humanas.
Ao considerar que o Ego é uma dimensão da psique humana que
busca controlar as pulsões primitivas do Id (em relação às quais a moral, a
ética e os limites sociais nenhum poder têm), e resistir às imposições do
Superego (relacionadas às convenções sociais), Freud expõe a fragilidade do
equilíbrio psíquico humano, que dependeria, assim, de um Ego bem estruturado e sadio,
mediador de tensões entre Id e Superego.
A esses conceitos fundadores, Freud acrescenta e desenvolve
o de “pulsões”, que seriam energias psíquicas originárias no Id, a alimentar
tanto o Ego quanto o Superego. E para desconforto geral de uma ciência que
considerava a morte como inimiga da vida, Freud propõe que a saúde psíquica
depende do equilíbrio entre pulões de vida (Eros) e pulsões de morte (Tanatus),
sendo as primeiras chamadas por ele de “Libido”.
A obra teórica de Freud se avoluma e se sofistica à medida
que suas práticas terapêuticas e suas reflexões científicas apresentam novos
desafios, que exigem ajustes em seus modelos. Se incialmente seu trabalho se
voltou para pacientes às voltas com transtornos psíquicos sintomáticos, à
medida que sua perspectiva passou a ser adotada mais largamente, suas reflexões
se mostraram também válidas para psique humana em geral — não apenas para a
compreensão das psiques abaladas por traumas significativos.
Ao observar que sintomas de seus pacientes estavam
relacionados com seus inconscientes — portanto com seus Ids —, Freud buscou
formas de acessá-los; primeiro, por meio da sugestão hipnótica; depois,
descartando-a, por meio da livre associação, oriunda da fala sem censuras do
próprio paciente: ao alcançar por meio da livre associação os eventos
traumáticos recalcados nas profundezas do inconsciente, o paciente punha-se em
condições de inseri-los em uma nova narrativa, esta consciente, e
ressignficá-los, habilitando-se a, reforçando seu próprio Ego, reequilibrar
toda sua psique, abalada sempre que o trauma aflorasse sem expressão na
linguagem — sob esse aspecto, o sintoma seria uma manifestação fisiológica, oriunda
de um trauma não equacionado pelo Ego.
Por entender a importância do inconsciente na psique humana,
Freud envereda seus estudos para um campo em que ele, o inconsciente, age sem
freios: o campo dos sonhos.
Freud será também pioneiro em investigar os sonhos de um
ponto de vista estritamente científico — uma vez que os sonhos são alvo de
interesses místicos, religiosos e metafísicos desde que o homem se entende
enquanto tal. Sua obra A interpretação dos sonhos, publicada em 1900, se
tornará um clássico para além das fronteiras da ciência em ele que pontou como
fundador, a psicanálise.
Se Copérnico tirou o homem do centro do universo, e Darwin o
tirou de seu pedestal sagrado, Freud demonstrou que ele não é senhor sequer de
sua psique, cujo Ego luta para não ser esmagado pelo Superego, introjeção das
convenções sociais, e pelo Id, dimensão primitiva e biológica de nossa humana
condição.
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