domingo, 27 de outubro de 2024

CRÔNICAS CARIOCAS - Santa Teresa

Sexta-feira, dia 25 de outubro deste 2024, após o almoço, resolvi subir a pé até Santa Teresa, indo pela Lapa e subindo a escadaria Selarón. Eu precisava me castigar, por estar tão desatento aos sinais que durante toda a manhã me indicavam o máximo de precaução, quando tive de visitar o Detran do largo do Machado por quatro vezes, todas tentando entender o que exatamente os funcionários queriam que eu apresentasse para transferência de minha Carteira Nacional de Habilitação para a Cidade Maravilhosa. Eles foram me explicando aos picados e eu, para não cometer enganos, preferi ir e voltar várias vezes de casa ao prestigioso órgão do que preencher errado o formulário e arriscar descobrir três meses depois que o meu processo paralisara em algum escaninho por falta de uma vírgula. 

Os sinais eram evidentes: as informações truncadas, oferecidas em doses homeopáticas, a cada retorno ao guichê; minha admirável disposição de resolver a demanda naquela manhã mesmo; minha sonolência em razão de uma quinta-feira de muito trabalho; minha paciência em ir e voltar sem que sombra de irritação me acorresse; e, pior, ao fim da jornada burocrática, a satisfação da funcionária quando me informou que estava tudo certo e que agora era só aguardar o trâmite.

Os sinais eram claros: o destino estava a fim de me pregar uma peça, só eu não percebi. Quando retornei para casa feliz da vida por ter vencido o acaso, que tentava chuviscar na minha manhã de sexta-feira, na verdade ele encerrara a conversa porque me havia passado a rasteira: ao abrir a pasta para guardar os documentos... onde estava a Carteira de Identidade que eu renovara no mesmo prestigioso órgão e retirara no início do mês? Simples: ela caíra da pasta de elástico durante o trajeto.

Refiz mais algumas vezes o caminho, mas... nada, o documento estava perdido, logo na primeira vez em que o utilizei — e por causa do mesmo órgão que o emitira.

Estava na cara que o acaso queria me sacanear naquela manhã. Tentou três vezes, na quarta não falhou. Cheguei em casa praguejando contra minha burrice, almocei de mau humor e, ainda sonolento, decidi: vou subir aquela escadaria num só fôlego para sacudir a zica e aprender a respeitar os avisos do acaso (a ciência do século XIX já ensinara: a primeira vez é acidente; a segunda, coincidência; a terceira, trata-se de fenômeno passível de estudo).

Quando cheguei aos trilhos do bondinho de Santa Teresa, lá em cima, os bofes para fora, o mau humor se fora. O dia estava nublado, com uma ventarola soprando, e as ruas vazias. Esqueci do documento novo extraviado e passeei aleatoriamente pelas ladeiras, pensando em como era bom ter boas pernas e olhos ainda em bom estado. Pensei nos escritores que li e nas referências que muitos deles fizeram a esse bairro. E me lembrei da adaptação para história em quadrinhos que fiz do conto O Espelho, de Machado de Assis, que tem uma ilustração muito bonita dos arcos da Lapa, do genial João Pinheiro.

Aliás o cenário do conto é em uma casa de Santa Teresa:

Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de cousas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo.

Pipocam referências a Santa Teresa em Machado de Assis (mas não só nele), quem tiver curiosidade, é só pesquisar na Internet que ficará surpreso com a abundância.

O fato é que o acaso me surrupiou o documento novinho em folha e me empurrou para uma tarde aprazível em um dos tetos do Rio de Janeiro.

Só no sábado à noite reparei que em meu celular, via uma das redes sociais que pouco utilizo, constava uma mensagem de alguém solicitando autorização do aplicativo para entrar em contato comigo.

A mensagem era do dia anterior, a mesma sexta-feira, 12 horas e 6 minutos. Dizia ela:

“Boa tarde. Sua identidade que vc perdeu se encontra aqui...”

E seguia o endereço, que omito, por discrição, e o nome da pessoa, que cito, pois merece muitas menções de agradecimento e revela um bom coração: obrigado, Cleyton Toshiro.

O destino me sacaneara, mas alguém muito gentil me salvara (não era a primeira vez: dois anos antes, perdera meu celular em frente a um hospital, liguei da editora para o meu número, um jovem atendeu e prontamente me restituiu o aparelho).

Se eu tivesse olhado o celular logo que dei conta da perda do documento, não teria passado nervoso, mas também não teria ido a Santa Teresa — o que melhorou tanto meu humor que, à noite, inclusive, tomei um chope no largo do Machado, esquecido do documento de cujo luto eu já me sacudira — e não teria conhecido o Cleyton, prova eloquente contra o pessimismo injusto de muitos em relação à espécie humana.

E esta fica sendo a crônica de Santa Teresa — a primeira, porque as referências de autores que estimo a esse bairro exigem mais, e não a propósito das rasteiras que o destino me prepara e dá, e das quais, com uma certa frequência, uma alma boa me livra.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP e Pós-Doutor em História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).

sábado, 12 de outubro de 2024

CRÔNICAS CARIOCAS — Carta ao Tom 74, cinquenta anos depois

O ano era 1980 e eu tinha dezesseis de idade. Peguei parte da indenização de um emprego que me pagava mal, e que fizera a gentileza de me demitir, e comprei um violão Giannini numa loja antiga da Casa Manon, que ficava ao pé do viaduto Santa Ifigênia, no centro velho de São Paulo. Era um violão de iniciante, de braço curto e caixa um tanto reduzida, mas muito bonito, de tampo de um alaranjado ferruginoso, rajado pelos veios da madeira, e laterais, fundo e braço em tom escuro de jacarandá.

Eu não queria ser músico, queria apenas tocar as músicas que, ouvidas no rádio ou na TV, embalaram minha infância, encantaram minha adolescência e instigavam o início de minha juventude. Esse violão sofreu muito em minhas mãos, que se retorciam nos trastes e nas cordas, em busca sôfrega dos acordes desenhados nas páginas das revistas de cifras, vendidas nas bancas de jornais a preço camarada, que me fariam viajar pelos espaços mágicos da música.

Dorival Caymmi, Adoniran Barbosa, Gonzaguinha, Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Chico Buarque entre outros se tornaram vítimas recorrentes de meus ataques insanos à MPB. Cheguei a tocar Gente Humilde em um trabalho de sala de aula, sob o olhar entre complacente e incrédulo, e os ouvidos maltratados, de meu professor de matemática, Dario, que sempre foi freireano no amor pelos estudantes e discreto no aborrecimento que nós lhe proporcionávamos, que não foram poucos e nem se resumiram à música mal tocada.

Mas a questão é que uma das canções de que eu mais gostava era Carta ao Tom 74 — que neste 2024 completa 50 anos —, de Vinicius de Moraes, pela musicalidade suave, pelo ritmo "andante" e cadenciado, pela rima inusitada entre o número 107 e o nome da cantora Elizeth Cardoso, e também pelo clima nostálgico que dela se elevava como uma brisa vinda de um mar distante no tempo (para o poetinha ex-morador de Ipanema, então na Bahia) e no espaço (para mim, morador de vila Ede, na remota São Paulo de um jovem da periferia). Ao ouvir essa canção, eu  me sentia dentro da cena, os olhos úmidos voltados para um Cristo Redentor que ia sendo aos poucos encoberto pelos edifícios.

Esquina da rua Nascimento Silva com
a Vinícius de Moraes, em Ipanema.
Aprendi a tocar essa canção como todas as demais: pessimamente. Que importava? Nunca tivera pretensão artística: tocava para mim, para me sentir parte de algo que vinha magicamente embalado nos acordes da MPB e nas letras das canções, para viajar na imaginação e no tempo: lá estava eu, num apartamento da rua Nascimento Silva 107, que eu nem sabia onde ficava, num Rio de Janeiro antigo, antes mesmo de eu nascer, vendo e ouvindo Elizeth Cardoso ensaiar "as canções de Canção do Amor de Mais."

Ah, mas o tempo é uma caixinha cheia de caixinhas dentro...

Agora que estou morando no Rio de Janeiro, outro dia me veio, como uma obrigação, como um sentimento de dívida que eu tivesse de pagar urgentemente, a necessidade de visitar esse endereço entre a praia de Ipanema e a lagoa Rodrigo de Freitas.

Foi o que fiz nesta sexta-feira, 11 de outubro de 2024, 44 anos depois de tirar Carta ao Tom 74 no violão e 50 depois que a canção foi gravada: apanhei o metrô, desci na estação Nossa Senhora da Paz — Ipanema e fiz o trajeto até o número 107 da Nascimento Silva. O prédio baixo continua lá, embora a especulação imobiliária tenha enchido a rua de espigões. Continua e com duas plaquinhas em homenagem a Tom Jobim.

Se aquele jovem de 1980 visse este vecchio de 2024 tirando fotinho na porta de Tom Jobim, teria uma coceira danada de vir morar na Cidade Maravilhosa. Mal sabia ele...

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP e Pós-Doutor em História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).

CRÔNICAS CARIOCAS — Machado geográfico

Chalé idêntico ao de Machado de Assis e de sua esposa Carolina Novais.
Este foi demolido na década de 1970. O do escritor e sua esposa,
consta que foi abaixo na década de 1920.
 

Quando vim morar no Rio de Janeiro, achei que meu gosto de passear a pé era um vício de adolescência, espécie de complexo de Peter Pan detonado pela magia da liberdade que o emprego de office-boy me propiciara, e que precisava receber um recalque firme e forte, uma vez que sessenta anos de idade não são catorze, infelizmente. Porém, relendo Machado de Assis e Manuel Bandeira —  mas também  Drummond, Lygia Fagundes Telles e Cecília Meireles, que ficarão para outras crônicas —  nesse período inciático de adaptação às terras cariocas, tive a confirmação de que não era vício e, se era, era santo.

Quem leu Esaú e Jacó e Memorial de Aires, sabe que Machado de Assis adorava bater pernas pela cidade do Rio de Janeiro. Nesses romances, do morro do Castelo — do qual atualmente só resta o nome do bairro, porque o acidente geográfico o prefeito Carlos Sampaio pôs abaixo no início da década de 1920 — passando por Lapa, Glória, Catete, Flamengo, até Botafogo, transitam não apenas o conselheiro aposentado e demais personagens principais, como um rol de figuras que compõem a geografia humana da cidade em fins do século XIX.

É lógico que, em se tratando de Machado de Assis, os olhos se voltam principalmente para a linguagem literária, que ele dominou com  tal consciência e habilidade que Augusto Meyer fez-nos um grande bem ao carimbá-lo com o epíteto de "bruxo do Cosme Velho". Porém, talvez não haja página em sua obra narrativa, principalmente da fase realista, em que as referências geográficas coetâneas não ocupem lugar de importância. Há mesmo ligações íntimas entre personagens, fatos e espaços — seja o espaço um batente de janela em que Brás Cubas, no capítulo XXXI de suas Memórias póstumas, dá um "piparote" na borboleta preta que ele acabara de matar com uma tolha; seja o jardim em que ela cai, para ser devorada pelas formigas; seja ainda a janela do sobrado na rua do Catete (Machado de Assis morou no Catete, na rua que hoje leva seu nome), pela qual o conselheiro Aires assiste, no capítulo LXI de Esaú e Jacó, ao tumulto da confusa Proclamação da República: "Pouco depois passava pela rua do Catete a padiola que levava um ministro, ferido."

De maneira que, em paz com meu coração andarilho e satisfeito com minhas pernas inquietas, saio sempre que posso pela cidade, a esmo mas nem tanto, pois tenho por hábito traçar um roteiro que termine sempre em um bom, forte e quente café, que sorvo refletindo sobre minha romaria de um só romeiro.

No domingo passado, dia 6, dia de eleições, vento fresco, céu azul e sol agradável, realizei um roteiro há tempos idealizado. Do Catete, pela Laranjeiras, subi com preguiça, tênis e bermuda —  observando os eleitores, uns indo votar, outros retornando do sagrado gesto democrático —  até o lugar onde morou Machado de Assis e onde é agora  um edifício residencial com algumas poucas lojas no térreo, uma as quais um café temático, dedicado ao antigo morador daquele endereço: rua Cosme Velho, antigo 18, atual 152, onde tomei um café de gosto ótimo, duplo, amargo e denso como uma graxa, a meu pedido, por suposto, e onde bati esta foto de gosto duvidoso:

Diante do programa que muitos realizaram no dia após votar, entre os quais ir à praia ou escapar para a região serrana, o meu programa foi bem mixuruca. E ficou ainda mais mixuruca quando subi uma centena de metros na Cosme Velho e visitei novamente o largo do Boticário, onde, na crônica anterior, encontrei Manuel Bandeira no meio do beco.

Na volta do passeio, vim matutando em como Machado de Assis e Bandeira — mas também Drummond, Lygia Fagundes Telles e Cecília Meireles, que ficarão, já disse, para outras crônicas — me confortaram em minha mixuruquez de andarilho e me salvaram de pôr fora um vício de adolescência que, enquanto tiver pernas, continuarei a cultivar com método, frequência e, agora, sem culpa.

Está decidido: sou um mixuruca. E quem quiser, se ponha a caminho de programas interessantes.


Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP e Pós-Doutor em História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).


terça-feira, 8 de outubro de 2024

ENEM 2024 — REDAÇÃO: TENHA CORAGEM! Fuja de esquemas, clichês, termos e expressões decorados

Ansioso por pontuar satisfatoriamente na redação do ENEM, o candidato é muitas vezes levado a buscar fórmulas miraculosas que o socorram no momento fatal de escrever as temidas trinta linhas da dissertação argumentativa que o exame exige. Porém, alguém precisa dizer ao candidato, e eu digo: pare de perder tempo com fórmulas miraculosas e desenvolva o hábito cotidiano de escrever textos reflexivos sobre temas que realmente interessem à comunidade, à sociedade, ao país, ao mundo.

Reproduzir esquemas de redação veiculados em redes sociais não demonstra que o candidato sabe escrever (e ao final das contas, é isso que a banca examinadora quer avaliar), mas apenas revela que ele, ao longo do Ensino Médio, não desenvolveu senso crítico, e apenas alcançou com sérias limitações o senso comum dos tempos atuais, que é penosamente superficial, abundante de clichês esvaziados de sentido e que claudica entre o "politicamente correto" e o preconceito camuflado.

É de dar nos nervos ler uma redação recheada de obviedades inócuas, que nada revelam sobre as conquistas do candidato, seja no que tange a seu repertório cultural, seja no que diz respeito às habilidades linguísticas em idioma materno que lhes são exigidas para o nível de escolarização em que se encontra.

Os esquemas de cursos "preparatórios" para o ENEM e vestibulares, presenciais ou disponíveis na internet, primam pela esterilização do ponto de vista do candidato e pela "incutição" de fórmulas prontas, que as bancas examinadoras estão fartas de conhecer. O candidato é treinado: em esquemas estereotipados; em vocabulários pretensamente ajustados a temas que  — num exercício temerário de adivinhação  os instrutores macetam à exaustão em sua mente; em omitir sua opinião pessoal; e em empregar termos que eventualmente causem impacto.

Daí porque em meio a um vocabulário não mais que mediano, surge na redação, no meio de um período visivelmente decorado, um "outrossim", um "não obstante", um "uma vez que", que caem como pedregulhos nos olhos do leitor-examinador.

O tempo que perde repetindo fórmulas e registrando no papel temos e expressões mal assimilados, o candidato aproveitaria melhor, caso desenvolvesse o hábito de ler e analisar com atenção textos opinativos de qualidade abundantes na internet, sobre os mais variados temas.

Recentemente, uma aluna de terceiro ano do Ensino Médio me mostrou um esquema miraculoso que o seu instrutor de curso preparatório para o ENEM lhe havia fornecido — não digo "ensinado", pois na verdade nem de longe se tratava disso. Segundo ela, o esquema era infalível, servia para qualquer tema e era só ir "enchendo com as palavras"   uma certa quantidade das quais, entre elas conectivos, frases de efeito (duvidoso) e clichês, ela já memorizara!

Pouco encorajados a desenvolver o pensamento lógico e livre, o juízo crítico e a escrita própria, autoral, muitos candidatos ao ENEM e vestibulares, inseguros, em busca de tábuas de salvação e saídas milagrosas, acabam caindo nas teias de aranha de esquemas voltados para iludir a banca examinadora e, pior!, a si mesmos. O que fazem, ao reproduzirem essas fórmulas preconcebidas e estéreis, nem de longe é demonstrar que sabem abordar um tema em linguagem que dominam: o que fazem é apenas manter em movimento uma maquinaria conservadora, que se retroalimenta de gente levada a   e premiada por  não pensar de forma livre e corajosa.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).

domingo, 29 de setembro de 2024

CRÔNICAS CARIOCAS — Bandeira de volta ao largo do Boticário

Vez por outra entro nas redes sociais para saber se o mundo já acabou. Não sei por que insisto nessa prática, uma vez que a dúvida é ociosa. Sim, o nosso mundo já acabou e as outras formas de vida habitantes do planeta apenas se perguntam quando é que faremos as malas, tomaremos naves espaciais sem bilhete de volta e os deixaremos em paz, para que reiniciem o mundo a partir do ponto estragado da evolução das espécies em que os deixamos.

Numa dessas redes sociais em que me afundo no prazer mórbido de gozar o Armagedom, li uma postagem cheia de coloridos e letras apelativas que trazia uma mulher jovem, bonita, de óculos, a sorrir e oferecer “10 dicas de novos livros para ler”. Achei a oferta suspeita, pela simples razão de não haver razão para uma publicidade, das profundezas do fim de tudo, oferecer “de graça” cordas pelas quais se subir e escapar ao limbo. Desliguei o celular enfarado com a constatação de que o fim ainda estava no prefácio e fui fazer o que vinha planejando havia muito.

Era sábado, um fim de tarde fosco, não obstante setembro e início de primavera, com um vento fazendo o ar circular agradavelmente, e algumas gotículas erráticas, de vez em quando, picando a pele da face. Se chovesse, ora, nem isso, se garoasse ou mesmo chuviscasse aqueles chuviscos que nem compensa abrir o guarda-chuva, que eu não trazia comigo, teria que me abrigar em algum canto, pois a minha velha antologia Estrela da vida inteira, de Manuel Bandeira, não suportaria mais essa desfaçatez, das tantas a que a tenho submetido nos últimos anos.

Não choveu, nem garoou, sequer chuviscou. Só essas gotículas brincalhonas me acompanharam na caminhada do largo do Machado, pelas ruas das Laranjeiras e Cosme Velho, até o alto do largo do Boticário, onde Manuel Bandeira se deixara fotografar pela extinta revista O Cruzeiro — foto que consta da edição que levava comigo, cuja capa estava protegida canhestramente por um plástico filme, desses que se usam na cozinha.

As gotículas erráticas tiveram um efeito maravilhoso, que foi o de esvaziar as ruas, onde poucos carros circulavam e menos gente ainda. Exceto por um homem  que levava seus três cães pelas respectivas guias e seu ego sem a sua, e que para se fazer notar trancou o passeio por torturantes longos instantes na tarde vazia  a caminhada só se interrompeu nos semáforos.

Em pouco mais de trinta minutos estava eu lá, no exato ponto em que Bandeira tivera sua imagem fixada em preto e branco, já idoso, em calças escuras e paletó claro refletindo o sol forte, a cabeça baixa atenta ao piso irregular, a caminhar pelo calçamento de pedras mal cortadas do leito da rua do beco de acesso ao largo.

Não só o piso do leito da rua como o das calçadas e mesmo as fachadas pareciam os mesmos da foto, com ligeiras alterações. Só o poeta estava ausente, até eu abrir a antologia na página respectiva e uma agradável sensação de pertencimento circular por meus nervos como uma onda morna de felicidade.

Visitei o largo do Boticário com a pretensão (ó alma vaidosa!) de restituir — ao menos durante a minha permanência no local — o poeta, sua antologia em mãos, a um de seus espaços mais caros.

Porém, escrevendo esta crônica, me dei conta da sutileza do poeta: foi ele quem me levou pela mão até lá, e, verdade seja dita, foi também ele quem me deixou, meses antes, à porta do edifício em que morou por último, na avenida Beira-Mar. 

Placa no edifício São Miguel, na avenida Beira-Mar,
bairro do Castelo, Centro do Rio.
Nesse edifício São Miguel, Bandeira morou primeiro nos fundos, que dava para o beco que servia de lixão, que ele registrou no poema O bicho:

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
Rio, 27 de dezembro de 1947

Depois, Bandeira mudou-se para um apartamento de frente do São Miguel, cuja fachada dá para o aeroporto Santos Dumont, que ele registrou no poema Lua Nova, datado de agosto de 1953, constante do livro Opus 10 e da antologia Estrela da vida inteira, que eu trazia comigo:

Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir:
Hei de aprender com ele
A partir de uma vez
– Sem medo,
Sem remorso,
Sem saudade.

Bandeira me levou pela mão, aos vinte anos, à sua poesia, e agora, aos sessenta anos de juventude, a esses seus lugares sagrados. Porém há ainda um roteiro extenso que ele percorreu no Rio e que me falta cumprir. Próxima parada, Santa Teresa, onde ele morou na rua do Curvelo, hoje Dias de Barros, e onde escreveu textos clássicos como os Poema do Beco, Primeira Canção do Beco, Segunda Canção do Beco e Última Canção do Beco.

Sem pressa, vou ao roteiro, me metendo pelos becos cariocas da literatura, onde o mundo ainda não acabou e talvez esteja só começando.

Evoé, Manuel Bandeira

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Hoje professor da rede pública estadual do Rio de Janeiro, foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).

terça-feira, 6 de agosto de 2024

Qual era mesmo a família maldita?

Não se pode crer cegamente no poema. Não se pode duvidar cegamente dele também. No poema as coisas podem ter se dado tal e qual, mas podem também comparecer transmutadas, ou nem comparecer. A única coisa certa num poema que tem letras são as mesmas. Já cansei de falar que num texto cada um lê o que quiser, inclusive o que está escrito. Lente, o poema é, mas que lente? Exata? De aumentar? De diminuir? De embelezar? De deformar? O poema é uma sala dos espelhos de um circo que vem por aí, ou foi há não sabemos quanto tempo.

O furo no muro do poema a seguir, eu garanto que tinha. A família maldita, havia e ainda há remanescentes dela, um dos quais achavam que era meu irmão gêmeo. A mãe, havia até 2020, o pai, até 1998. Aquela preguiça do poema também não há mais. Desde que a barba apareceu na cara, foi sendo substituída ao longo dos anos por outras menos viscerais, porém mais desiludidas — talvez porque esse tipo de preguiça infantil desapareça no primeiro saco de bolachas, enquanto que a preguiça acumulada de certas pessoas, quando nos tornamos adultos, talvez seja uma espécie de reumatismo que, a depender do clima, exige doses crescentes de morfina: é preguiça crônica de gente que nos cutuca, alfineta, ferroa ex officio.

Qual era mesmo a família maldita? 
Ai ai
Me deu preguiça.
Preguiça de minha mãe,
preguiça de meu pai,
dos professores e da inspetora de alunos.
Vazei o muro da escola
por um furo que tinha lá,
feito pelos maconheiros
da família maldita.
Fui jogar bola com eles
sem preguiça nenhuma de ninguém.
Minha mãe me comeu na porrada.
Daí, que a preguiça voltou.
(Livro de Infância - Poema 2)

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).

quarta-feira, 31 de julho de 2024

ENSAIO - A cerca entre literatura e sonho no chão

Como o sonho, a poesia — ambos narrativas simbólicas — condensa, sobrepõe, justapõe, dissocia, inverte, aumenta, reduz, desfoca, deforma e assim sucessivamente. A verdade da poesia é também irmã da verdade do sonho. Por isso é um tanto ingênua, em se tratando dos dois, a pergunta "Aconteceu mesmo?"

Tudo que acontece no sonho e na poesia é verdade: verdade do sonho e verdade da poesia. Porém, muitos hão de concordar, embora verdades ambíguas, é mais fácil e prudente crer nessas duas do que naquelas que dizem pertencer à vida real, seja lá o que isso for. 

Por isso, penetradas as lógicas oníricas e poéticas, é praticamente impossível escapar-se de suas narrativas, por mais antinarrativas que se afigurem, por mais irracionais que se apresentem e por mais contrárias à realidade que se possa aceitar.

No entanto, se num sonho somos tragados involuntariamente por sua narrativa, instaurada pelo sono e por mecanismos psíquicos involuntários longe ainda de serem desvendados, na poesia — e na literatura em geral —, não. Vamos ao poema voluntariamente — ainda que, às vezes, instados por imposições sociais, como ocorre na vida escolar e acadêmica; por motivação intelectual, quando a poesia se oferece como apoio à reflexão; ou por impulsos emocionais, ocasião em que a poesia opera o milagre do prazer íntimo e estético.

Para que sejamos tragados pela narrativa poética, precisamos antes tragá-la por mecanismos de leitura — uns, muito conhecidos de todos nós, outros, nem tanto. Do idioma ao vocabulário; da sintaxe às regras de pontuação e acentuação, empregadas ou subvertidas; da organização das palavras na página aos jogos de linguagem, entre muitos outros aspectos, tudo na narrativa poética ou literária é a um só tempo objeto, meio de leitura e elemento de resistência a ela mesma.

À medida que são vencidos os elementos de resistência à cognição — verdadeiros enigmas — , integramo-nos à própria narrativa: é quando, ao internalizá-la, como que automaticamente, nos sentimos contraditoriamente sugados para o interior dela. É quando os riscos e ir parar inadvertidamente na última estação do metrô aumentam sobremaneira, por que se entra numa espécie de transe. Assim, a partir do sonho, que é uma espécie de transe, atingimos as narrativas simbólicas; ao passo que na literatura ocorre o inverso: a partir da narrativa poética ou literária é que se chega a um estado de transe, em que o corpo físico está em um lugar, mas a psique está mergulhada no mundo onírico proporcionado pela narrativa poética.

Quando os elementos linguísticos de resistência do texto literário são plenamente superados, assimilados e incorporados automaticamente no ato de ler, os encadeamentos e associações deflagram-se na psique do leitor, também automaticamente, como nos sonhos, em que as imagens se sucedem sem o controle do sonhador, dotadas de vida própria.

Aqui, uma particularidade interessante: como no sonho, do qual podemos nos despertar ou sermos despertados, mas, via de regra sobre cujas cascatas de imagens que nele se desencadeiam não temos o menor controle, a fruição da leitura pode ser interrompida por uma intervenção externa — um ruído, uma parada brusca do vagão do trem, etc. —, mas, uma vez deflagrada, escapam ao nosso controle as associações que ela faz aflorar em nosso espírito, em nossas emoções, em nossa psique.

Estamos, pois, em face de dois processos diversos — melhor seria dizer inversos — que alcançam os mesmos efeitos, senão resultados. No sonho, é necessário estar-se dormindo, portanto inconsciente, para se estar completamente entregue à narrativa onírica. Na poesia e na literatura em geral, é necessária a plenitude da consciência, da concentração cognitiva para, internalizada plenamente a narrativa, alcançar-se a plenitude da fruição —  caso em que, então, nos dissociamos de nosso corpo e penetramos os mesmos domínios do inconsciente. Quando isso ocorre, a cerca que separa a literatura do sonho está no chão.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).

quinta-feira, 25 de julho de 2024

CRÔNICA - 1973


 As lembranças de escola terminam por ter um papel importante, porque a vida nela era muito diferente da vida de menino de quintal, descalço, sem camisa, que gostava de trepar em árvores e andar sobre cercas, muros e telhados.

Porém, embora novos amigos e algumas paixões infantis fossem bem interessantes, a vida, a vida mesmo, estava muito além dos muros e portões escolares. Tanto que, quando tocava a sineta da saída, disparávamos enlouquecidos pelas escadas e corredores até atingirmos a rua, que nos atiçava a sensação de liberdade — sensação que até hoje a rua me inspira.

Talvez por isso às vezes me sufoco e saio por aí a bater cabeça pelas ruas da cidade, até me cansar e desejar voltar para casa.

1973

Que tardes intermináveis
aquelas do terceiro ano escolar.
O calor
a chateação
o medo de reguada
a dona Laura dedo-duro
a dona Benedita irada
o diretor Nelson sádico.
Tomei gosto da liberdade
Por inspiração
desses três tiranos.
(Livro de Infância - Poema 69)