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domingo, 27 de outubro de 2024

CRÔNICAS CARIOCAS - Santa Teresa

Sexta-feira, dia 25 de outubro deste 2024, após o almoço, resolvi subir a pé até Santa Teresa, indo pela Lapa e subindo a escadaria Selarón. Eu precisava me castigar, por estar tão desatento aos sinais que durante toda a manhã me indicavam o máximo de precaução, quando tive de visitar o Detran do largo do Machado por quatro vezes, todas tentando entender o que exatamente os funcionários queriam que eu apresentasse para transferência de minha Carteira Nacional de Habilitação para a Cidade Maravilhosa. Eles foram me explicando aos picados e eu, para não cometer enganos, preferi ir e voltar várias vezes de casa ao prestigioso órgão do que preencher errado o formulário e arriscar descobrir três meses depois que o meu processo paralisara em algum escaninho por falta de uma vírgula. 

Os sinais eram evidentes: as informações truncadas, oferecidas em doses homeopáticas, a cada retorno ao guichê; minha admirável disposição de resolver a demanda naquela manhã mesmo; minha sonolência em razão de uma quinta-feira de muito trabalho; minha paciência em ir e voltar sem que sombra de irritação me acorresse; e, pior, ao fim da jornada burocrática, a satisfação da funcionária quando me informou que estava tudo certo e que agora era só aguardar o trâmite.

Os sinais eram claros: o destino estava a fim de me pregar uma peça, só eu não percebi. Quando retornei para casa feliz da vida por ter vencido o acaso, que tentava chuviscar na minha manhã de sexta-feira, na verdade ele encerrara a conversa porque me havia passado a rasteira: ao abrir a pasta para guardar os documentos... onde estava a Carteira de Identidade que eu renovara no mesmo prestigioso órgão e retirara no início do mês? Simples: ela caíra da pasta de elástico durante o trajeto.

Refiz mais algumas vezes o caminho, mas... nada, o documento estava perdido, logo na primeira vez em que o utilizei — e por causa do mesmo órgão que o emitira.

Estava na cara que o acaso queria me sacanear naquela manhã. Tentou três vezes, na quarta não falhou. Cheguei em casa praguejando contra minha burrice, almocei de mau humor e, ainda sonolento, decidi: vou subir aquela escadaria num só fôlego para sacudir a zica e aprender a respeitar os avisos do acaso (a ciência do século XIX já ensinara: a primeira vez é acidente; a segunda, coincidência; a terceira, trata-se de fenômeno passível de estudo).

Quando cheguei aos trilhos do bondinho de Santa Teresa, lá em cima, os bofes para fora, o mau humor se fora. O dia estava nublado, com uma ventarola soprando, e as ruas vazias. Esqueci do documento novo extraviado e passeei aleatoriamente pelas ladeiras, pensando em como era bom ter boas pernas e olhos ainda em bom estado. Pensei nos escritores que li e nas referências que muitos deles fizeram a esse bairro. E me lembrei da adaptação para história em quadrinhos que fiz do conto O Espelho, de Machado de Assis, que tem uma ilustração muito bonita dos arcos da Lapa, do genial João Pinheiro.

Aliás o cenário do conto é em uma casa de Santa Teresa:

Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de cousas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo.

Pipocam referências a Santa Teresa em Machado de Assis (mas não só nele), quem tiver curiosidade, é só pesquisar na Internet que ficará surpreso com a abundância.

O fato é que o acaso me surrupiou o documento novinho em folha e me empurrou para uma tarde aprazível em um dos tetos do Rio de Janeiro.

Só no sábado à noite reparei que em meu celular, via uma das redes sociais que pouco utilizo, constava uma mensagem de alguém solicitando autorização do aplicativo para entrar em contato comigo.

A mensagem era do dia anterior, a mesma sexta-feira, 12 horas e 6 minutos. Dizia ela:

“Boa tarde. Sua identidade que vc perdeu se encontra aqui...”

E seguia o endereço, que omito, por discrição, e o nome da pessoa, que cito, pois merece muitas menções de agradecimento e revela um bom coração: obrigado, Cleyton Toshiro.

O destino me sacaneara, mas alguém muito gentil me salvara (não era a primeira vez: dois anos antes, perdera meu celular em frente a um hospital, liguei da editora para o meu número, um jovem atendeu e prontamente me restituiu o aparelho).

Se eu tivesse olhado o celular logo que dei conta da perda do documento, não teria passado nervoso, mas também não teria ido a Santa Teresa — o que melhorou tanto meu humor que, à noite, inclusive, tomei um chope no largo do Machado, esquecido do documento de cujo luto eu já me sacudira — e não teria conhecido o Cleyton, prova eloquente contra o pessimismo injusto de muitos em relação à espécie humana.

E esta fica sendo a crônica de Santa Teresa — a primeira, porque as referências de autores que estimo a esse bairro exigem mais, e não a propósito das rasteiras que o destino me prepara e dá, e das quais, com uma certa frequência, uma alma boa me livra.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP e Pós-Doutor em História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).