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sábado, 12 de outubro de 2024

CRÔNICAS CARIOCAS — Carta ao Tom 74, cinquenta anos depois

O ano era 1980 e eu tinha dezesseis de idade. Peguei parte da indenização de um emprego que me pagava mal, e que fizera a gentileza de me demitir, e comprei um violão Giannini numa loja antiga da Casa Manon, que ficava ao pé do viaduto Santa Ifigênia, no centro velho de São Paulo. Era um violão de iniciante, de braço curto e caixa um tanto reduzida, mas muito bonito, de tampo de um alaranjado ferruginoso, rajado pelos veios da madeira, e laterais, fundo e braço em tom escuro de jacarandá.

Eu não queria ser músico, queria apenas tocar as músicas que, ouvidas no rádio ou na TV, embalaram minha infância, encantaram minha adolescência e instigavam o início de minha juventude. Esse violão sofreu muito em minhas mãos, que se retorciam nos trastes e nas cordas, em busca sôfrega dos acordes desenhados nas páginas das revistas de cifras, vendidas nas bancas de jornais a preço camarada, que me fariam viajar pelos espaços mágicos da música.

Dorival Caymmi, Adoniran Barbosa, Gonzaguinha, Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Chico Buarque entre outros se tornaram vítimas recorrentes de meus ataques insanos à MPB. Cheguei a tocar Gente Humilde em um trabalho de sala de aula, sob o olhar entre complacente e incrédulo, e os ouvidos maltratados, de meu professor de matemática, Dario, que sempre foi freireano no amor pelos estudantes e discreto no aborrecimento que nós lhe proporcionávamos, que não foram poucos e nem se resumiram à música mal tocada.

Mas a questão é que uma das canções de que eu mais gostava era Carta ao Tom 74 — que neste 2024 completa 50 anos —, de Vinicius de Moraes, pela musicalidade suave, pelo ritmo "andante" e cadenciado, pela rima inusitada entre o número 107 e o nome da cantora Elizeth Cardoso, e também pelo clima nostálgico que dela se elevava como uma brisa vinda de um mar distante no tempo (para o poetinha ex-morador de Ipanema, então na Bahia) e no espaço (para mim, morador de vila Ede, na remota São Paulo de um jovem da periferia). Ao ouvir essa canção, eu  me sentia dentro da cena, os olhos úmidos voltados para um Cristo Redentor que ia sendo aos poucos encoberto pelos edifícios.

Esquina da rua Nascimento Silva com
a Vinícius de Moraes, em Ipanema.
Aprendi a tocar essa canção como todas as demais: pessimamente. Que importava? Nunca tivera pretensão artística: tocava para mim, para me sentir parte de algo que vinha magicamente embalado nos acordes da MPB e nas letras das canções, para viajar na imaginação e no tempo: lá estava eu, num apartamento da rua Nascimento Silva 107, que eu nem sabia onde ficava, num Rio de Janeiro antigo, antes mesmo de eu nascer, vendo e ouvindo Elizeth Cardoso ensaiar "as canções de Canção do Amor de Mais."

Ah, mas o tempo é uma caixinha cheia de caixinhas dentro...

Agora que estou morando no Rio de Janeiro, outro dia me veio, como uma obrigação, como um sentimento de dívida que eu tivesse de pagar urgentemente, a necessidade de visitar esse endereço entre a praia de Ipanema e a lagoa Rodrigo de Freitas.

Foi o que fiz nesta sexta-feira, 11 de outubro de 2024, 44 anos depois de tirar Carta ao Tom 74 no violão e 50 depois que a canção foi gravada: apanhei o metrô, desci na estação Nossa Senhora da Paz — Ipanema e fiz o trajeto até o número 107 da Nascimento Silva. O prédio baixo continua lá, embora a especulação imobiliária tenha enchido a rua de espigões. Continua e com duas plaquinhas em homenagem a Tom Jobim.

Se aquele jovem de 1980 visse este vecchio de 2024 tirando fotinho na porta de Tom Jobim, teria uma coceira danada de vir morar na Cidade Maravilhosa. Mal sabia ele...

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP e Pós-Doutor em História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).