terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Freud e o início da Psicanálise

 

As pesquisas e as práticas de Freud inserem-se no conjunto de revoluções científicas e técnicas do século XIX, que promoveram um progresso exponencial em todas as áreas do conhecimento humano. Porém essas revoluções não ocorreram como frutos do acaso, constituindo-se, antes, como um salto de qualidade de mais de quatro séculos de disputas entre os pontos de vista religiosos e os científicos — os quais ao mesmo tempo impulsionavam e eram impulsionados pelo capitalismo nascente.

Com efeito, das grandes navegações, com suas caravelas movidas pelo vento, em fins do século XV e início do XVI, à máquina à vapor, que pôs navios gigantescos nos oceanos e espalhou ferrovias por todos os continentes da Terra, no século XIX, praticamente todas as barreiras religiosas que se opunham ao progresso tecno-científico vieram abaixo.

Se a filosofia, com seus humanistas e iluministas, em sua guerra contra o predomínio da religião, imperou soberana nos meios cultos até o século XVIII, no século XIX o polo dinâmico se deslocou para as ciências da natureza, que já tinham em Copérnico, Newton, Galileu e Giordano Bruno um solo fértil, cultivado desde o século XVI. Porém não veio diretamente da física a influência predominante desse século XIX tão decisivo para as ciências, mas do que então se chamava história natural, hoje identificada com a biologia.

A pesquisa genética de Mendel e principalmente a da origem das espécies, de Darwin, ultrapassaram seus próprios limites, e tiveram suas perspectivas e seus métodos importados pelas demais ciências, naturais ou humanas — entre as quais as que se voltavam para o estudo dos transtornos mentais.

De uma maneira geral, pessoas com transtornos mentais mais severos eram, como continuam a ser até os dias de hoje em muitas partes do mundo, em manicômios e asilos para alienados, onde, a depender da situação econômica e da tradição local, eram compartilhavam espaço com crianças órfãs e idosos abandonados, surdos-mudos confundidos com pacientes psiquiátricos, tuberculosos, leprosos entre outros.

Os trabalhos de Freud e de sua geração de pesquisadores da mente foi pioneiro, ao buscarem, orientados por critérios científicos, diagnosticar transtornos psíquicos e desenvolver métodos e práticas terapêuticas.

Afastando perspectivas metafísicas, religiosas, místicas e do senso comum, Freud logrou compreender a pisque de seus pacientes por meios inusitados para a época. Porém, para tanto, era necessário desenvolver conceitos eficazes tanto na diagnose quanto na terapêutica. De todos os conceitos desenvolvidos por Freud, talvez o mais emblemático seja o de “inconsciente”.

Ao propor que a psique humana é constituída de três dimensões — consciente, pré-consciente e inconsciente —, Freud põe por terra as ideias religiosas de unidade da alma, e as metafísicas, de identidade individual indivisível. Não fora o suficiente para abalar verdades até então consagradas, Freud ainda defende que a maior parte da psique humana é ocupada pelo inconsciente, no qual residem lembranças, memórias e pulsões recalcadas durante o processo que se inicia no útero materno e que acompanha o indivíduo até sua morte.

Se num primeiro momento Freud compreende a psique humana como tripartida entre consciente, pré-consciente e inconsciente, à medida que suas pesquisas avançam e suas sistematizações progridem ele chega à uma outra versão dessa mesma ideia. Agora, para ele, sem descartar a tríade consciente-pré-consciente-inconsciente, os conceitos de Id, Ego e Superego ganham lugar. Esse modelo promoverá um verdadeiro abalo nas ciências da mente e da psique humanas.

Ao considerar que o Ego é uma dimensão da psique humana que busca controlar as pulsões primitivas do Id (em relação às quais a moral, a ética e os limites sociais nenhum poder têm), e resistir às imposições do Superego (relacionadas às convenções sociais), Freud expõe a fragilidade do equilíbrio psíquico humano, que dependeria, assim, de um Ego bem estruturado e sadio, mediador de tensões entre Id e Superego.

A esses conceitos fundadores, Freud acrescenta e desenvolve o de “pulsões”, que seriam energias psíquicas originárias no Id, a alimentar tanto o Ego quanto o Superego. E para desconforto geral de uma ciência que considerava a morte como inimiga da vida, Freud propõe que a saúde psíquica depende do equilíbrio entre pulões de vida (Eros) e pulsões de morte (Tanatus), sendo as primeiras chamadas por ele de “Libido”.

A obra teórica de Freud se avoluma e se sofistica à medida que suas práticas terapêuticas e suas reflexões científicas apresentam novos desafios, que exigem ajustes em seus modelos. Se incialmente seu trabalho se voltou para pacientes às voltas com transtornos psíquicos sintomáticos, à medida que sua perspectiva passou a ser adotada mais largamente, suas reflexões se mostraram também válidas para psique humana em geral — não apenas para a compreensão das psiques abaladas por traumas significativos.

Ao observar que sintomas de seus pacientes estavam relacionados com seus inconscientes — portanto com seus Ids —, Freud buscou formas de acessá-los; primeiro, por meio da sugestão hipnótica; depois, descartando-a, por meio da livre associação, oriunda da fala sem censuras do próprio paciente: ao alcançar por meio da livre associação os eventos traumáticos recalcados nas profundezas do inconsciente, o paciente punha-se em condições de inseri-los em uma nova narrativa, esta consciente, e ressignficá-los, habilitando-se a, reforçando seu próprio Ego, reequilibrar toda sua psique, abalada sempre que o trauma aflorasse sem expressão na linguagem — sob esse aspecto, o sintoma seria uma manifestação fisiológica, oriunda de um trauma não equacionado pelo Ego.

Por entender a importância do inconsciente na psique humana, Freud envereda seus estudos para um campo em que ele, o inconsciente, age sem freios: o campo dos sonhos.

Freud será também pioneiro em investigar os sonhos de um ponto de vista estritamente científico — uma vez que os sonhos são alvo de interesses místicos, religiosos e metafísicos desde que o homem se entende enquanto tal. Sua obra A interpretação dos sonhos, publicada em 1900, se tornará um clássico para além das fronteiras da ciência em ele que pontou como fundador, a psicanálise.

Se Copérnico tirou o homem do centro do universo, e Darwin o tirou de seu pedestal sagrado, Freud demonstrou que ele não é senhor sequer de sua psique, cujo Ego luta para não ser esmagado pelo Superego, introjeção das convenções sociais, e pelo Id, dimensão primitiva e biológica de nossa humana condição.

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Ditadura relativa e negacionismos - Marcos Silva

Ditatura relativa e negacionismos, do prof. Marcos Silva, da Universidade de São Paulo, realiza um minucioso raio X das leituras do jornalista Elio Gaspari e do prof. Marcos Napolitano sobre a ditadura militar brasileira.

Quanto ao primeiro, o prof. Marcos Silva, com sua linguagem elegante, analisa de que perspectiva Elio Gaspari tece sua narrativa de jornalismo retrospectivo, tomada por mais de um desavisado como obra historiográfica.

Ao desmistificar as fontes documentais usadas pelo jornalista para redigir sua obra monumental (ao feitio das obras faraônicas do período Médici), Marcos Silva deslinda a parcialidade de Elio Gaspari, mal disfarçada pela linguagem escorreita que caracteriza a escrita encomiástica da ditadura. O ponto de vista de que o jornalista fala é o do escriba de Castelo Branco, Geisel e Golbery do Couto e Silva - o primeiro, tratado como militar culto e bem intencionado; o segundo, como estadista racional e adversário dos porões da mesma ditadura que ele comandava; e o terceiro, como mago a idealizar, preparar, conceber e  propiciar o fim de uma ditadura da qual participou desde o primeiro momento e à qual serviu como ministro dos diversos ditadores que se sucederam desde o infausto 1o. de abril de 1964.

Em sua crítica à obra, Marcos Silva observa como, para Elio Gaspari, a história comparece como um alinhavo de eventos desencadeados por pessoas ilustres e comandados por figuras proeminentes, quando não notáveis, caso dos três militares acima citados. O conflito entre classes sociais passa longe da coleção de 5 volumes (A ditadura envergonhada, A ditadura escancarada, A ditadura encurralada, A ditadura derrotada, A ditadura acabada), e os movimentos de resistência à ditadura, quando abordados, servem de pano de fundo, à moda de cenário desfocado propositalmente para que holofotes sejam projetados sobre os atores principais.

Os títulos das obras se figuram, assim, após a leitura do livro do prof. Marcos Silva, no mínimo ambíguos, quando não cínicos, em relação ao texto: ditadura, sim; mas haveria ditadores bem intencionados, cultos e avessos a radicalismos de ambos os lados do conflito que ensejou a "revolução redentora'.

Quanto ao livro 1964: História do regime militar brasileiro, do prof. Marcos Napolitano, Marcos Silva analisa a obra do ponto de vista de um colega de ofício, e por isso aponta criticamente o que entendeu serem às vezes insuficiências, às vezes descuido, às vezes erro metodológico — mas há espaço também para a saudável divergência teórica, relacionada às linhas no campo da história que caracterizam a identidade intelectual e política de ambos os professores.

Marcos Napolitano oferece sua perspectiva teórica ao leitor já no título de sua obra em destaque — e começa já aí a crítica de Marcos Silva, uma vez que "regime" e "ditadura" têm denotações e conotações muitíssimo diversas. Para Marcos Silva, o título é, quando menos, um eufemismo (isso digo eu, que escrevo esta resenha).

Também aqui Marcos Silva observa na narrativa de Marcos Napolitano um certo papel secundário reservado às classes e grupos sociais resistentes à ditadura, em meio a certas imprecisões no detalhamento de conceitos trabalhados no livro, mas que se prestam a questionamento teórico sempre (o que é a classe média? o que é periferia? haveria classe média em periferias geográficas? o centro geográfico de uma metrópole comporta periferias?).

Nas duas obras o prof. Marcos Silva apresenta com farta argumentação elementos que se prestam à relativização da ditadura e à negação de suas consequências na vida do país - consequência que, demonstra Marcos Silva, apontam para a permanência de fortes elementos da ditadura até os dias atuais, a exemplo do golpe que derrubou a presidenta Dilma Rousseff e do atual governo, abertamente apologista da tortura, do assassinado de opositores e da própria ditadura, a qual reinstaurará caso a correlação de forças na sociedade o permita — isto dito por último, também, o afirmo eu, que escrevo esta resenha, com o que, no entanto, me permito supor, o prof. Marcos Silva talvez concordará. 

Maria Antônia Edições
Número de páginas: 160
Dimensões:12,5 x 21 cm
Peso: 212 gr.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP E Pesquisador Colaborador do Departamento de História da mesma Universidade. Escritor e professor mesma Universidade, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).

sábado, 10 de outubro de 2020

CARAÇA: Caricaturas do Grandioso Fá - Sonetos Picarescos

CARAÇA é um volume de poemas, porém ninguém se engane: nele, mesmo quando o assunto é amor, há o espeto de uma piada embutido no lirismo, a dizer: "Quem quer o amor, quer o espeto". Maus juízes, maus políticos, maus patrões, maus amigos, maus amores... ahhhh, vocês vão sentir o chicote dessa língua. No formato exclusivo e-book ilustrado, com 262 páginas divididas em 11 partes, o livro se diverte com as pobrezas humanas e explora as riquezas poéticas mas também humorísticas da língua portuguesa, em versos líricos e satíricos, com especial carinho dedicado a maus amigos, políticos e juízes.

E-book ilustrado, exemplares personalizados e numerados, em PDF, para todos os aplicativos e dispositivos. 1 ed. São Paulo: Editora Serra Azul, 2020. R$30,00. Receba em seu e-mail.

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Da frase clara, doce e elegante (à moda Bocage), à barroca, humorada e desbocada (à moda Gregório de Matos), do encanto ao deboche (que os dois praticaram sem poupar o calão), num balanço pendular cheio de riscos não só de linguagem, o leitor é embalado no trapézio da escrita, gozando o friozinho que o despencar do alto das palavras  sem rede de proteção embaixo – dá na barriga.


Ora trapezista, ora ilusionista;  ora palhaço, ora domador na jaula dos leões; ora atirador de facas, ora engolidor de fogo, ora mulher barbada o Grandioso Fá puxa o leitor ao centro desse picadeiro simbólico e o converte em cúmplice de suas 241 caricaturas – uma para cada soneto.


As ilustrações, extraídas a baralhos inclusive de Tarô, sinalizam a vocação farsesca, arlequinal e circense do livro, que não despreza nenhuma palavra do idioma, nem sequer as deformadas, sujas, rotas e andrajosas, como aqueles paupérrimos clowns que tiravam o sustento de improvisos patéticos nas feiras medievais.

A seguir, algumas caricaturas do Grandioso Fá a título de ingresso grátis:









Caraça: Caricaturas do Grandioso Fá - Sonetos Picarescos. E-book ilustrado, exemplares personalizados e numerados, legível em todos os aplicativos e dispositivos, São Paulo, Editora Serra Azul, 2020 - R$30,00.

Grandioso Fá é professor, pesquisador e escritor em diversas editoras. Entre seus títulos estão O atirador de facas e Dois poetas paulistanos (Plêiade); o ciclo de romances urbanos Era uma vez no meu bairroO jovem Mandela e O jovem Malcolm X (Nova Alexandria), O espelho de Machado de Assis em HQ e  A lenda do belo Pecopin da bela Bauldour em HQ, tradução do francês e adaptação do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).