terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Pulsão de vida, o outro nome da Esperança

 

As razões para que uma pessoa busque auxílio de um psicanalista são as mais variadas, porém, todas envolvendo sofrimentos em relação aos quais ela se sente fragilizada, insuficiente ou mesmo impotente. No entanto, convém considerar com atenção a particularidade de que essa procura, quando voluntária — e somente quando voluntária —, reflete um movimento interior de pulsão de vida, em que ela busca organizar-se psíquica e emocionalmente para enfrentar suas próprias dores, identificando no profissional a figura mais adequada para ajudá-la.

Em si, essa iniciativa voluntária de buscar o apoio de um profissional especializado já é um passo importante do paciente em sua luta pelo restabelecimento da saúde emocional e de seu equilíbrio psíquico. E por quê?

Aqui, cabem inúmeras razões, mas convém destacar algumas das principais.

A primeira delas envolve considerações de ordem social. Não consiste novidade que as doenças ou transtornos psíquicos, mentais e emocionais são alvo de preconceito às vezes explícitos, às vezes velados. Esses preconceitos nos apanham ainda na infância e, por repetição dos outros e falta de estudo e reflexão de nós mesmos, repousam em nossa estrutura afetiva e moral como um pó pegajoso que se acumula ao longo dos anos.

Desta forma, quando uma pessoa busca voluntariamente um psicanalista, com certeza empreendeu enormes energias emocionais e intelectuais para remover de seu espírito esse pó pegajoso do preconceito — esforço que só se completará, de verdade, se ela vir no processo de análise resultados efetivos, ainda que parciais e demorados.

Ocorre que, para vencer o preconceito — esse ovo de serpente depositado em sua psique e em sua estrutura moral —, a pessoa teve que desenvolver em si mecanismos intelectuais internos bastante sofisticados e poderosos, uma vez que a pressão do preconceito, crônica, constante e extremamente opressora, ocorre não apenas de fora para dentro (dos outros contra mim), mas principalmente, uma vez que ele se encontra alojado e arraigado, de dentro para dentro (ou seja, de mim contra mim mesmo). Quando uma pessoa liga para um psicanalista e agenda uma entrevista, embora ainda residual e perigos, o preconceito internalizado está com os dias contados — depois de ter feito essa pessoa retardar em demasia a busca por um direito básico: o direito à saúde, no caso, psíquica, emocional, mental.

Essa busca voluntária de ajuda de um profissional especializado tem outra razão auspiciosa, a saber.

Na luta por enfrentar seus sofrimentos psíquicos, emocionais, mentais, a pessoa se bombardeia com perguntas, algumas das quais responde com facilidade, mas em relação à maioria das quais ou não encontra resposta adequada, ou simplesmente não encontra resposta. Nessa atividade introspectiva, nesse esforço intelectual por alívio, a pessoa desenvolve um certo autoconhecimento. Nesse caso, a busca pelo psicanalista reflete um alto grau de consciência: a de que, sozinho, não logrará sucesso em sua luta — noutras palavras, reconhece os limites de suas ações, sua própria insuficiência e a importância do outro em sua jornada de luta pela vida, porque, a final de contas, é disso que se trata.

Esse simples ato de ligar para um psicanalista e agendar uma entrevista tem também outro significado auspicioso.

Seguramente, antes de realizar essa ligação telefônica ou esse contato por WhatsApp, a pessoa que busca recuperar a paz de espírito, o equilíbrio emocional, refletiu muito sobre as muitas alternativas.

A conveniência de abrir seus problemas a uma pessoa de confiança terá sido considerada. Porém, qual pessoa de confiança em seu círculo de amizades estaria em condições de ajudar? Que riscos haveria nessa alternativa? Qual a possibilidade de essa ajuda não especializada resultar em conflitos internos e externos ainda maiores?

A busca por sacerdotes de diversas religiões também terá sido considerada, em primeiro lugar, a da própria, mas é comum, em esta não “funcionando”, outras serem procuradas. Quanto tempo será despendido entre essa busca por solução religiosa a sofrimentos emocionais, psíquicos e mentais, à busca de um profissional especializado nesses transtornos? Tanto mais quando não há contradição entre ser religioso e buscar um psicanalista, ou um psicólogo — ou um cardiologista, um endócrino etc.

Assim, numa metáfora, ao agendar uma primeira entrevista com um psicanalista, a pessoa, um tanto pelo método de tentativa e erro, cogitou e tentou uma montanha de alternativas anteriores, de sorte que essa iniciativa é fruto de uma decantação prolongada — às vezes prolongada demais, com os prejuízos que essa demora implica.

Há outras razões muito auspiciosas implicadas na simples inciativa de buscar um psicanalista, porém a principal, entre todas é, sem dúvida, a de que o ato de buscar ajuda especializada para superar um tormento emocional, psíquico ou mental reflete uma pulsão de vida muito forte, que se contrapõe à pulsão de morte suscitada pelo sofrimento de que quer livrar-se.

Em certo sentido, é uma espécie de manifesto da pessoa em favor da vida, da própria vida — um “automanifesto”, cuja principal deliberação é mover-se energicamente contra os mecanismos de morte que operam sem controle dentro de si, e que precisam ser neutralizados e desmontados — mas não sem ajuda.

Essa deliberação consciente em favor da vida, da própria vida, resulta dessa pulsão mais profunda e inconsciente, que é uma energia mais poderosa do que o que Vinicius de Moraes, em Mensagem à Poesia, chamou “forças do abismo que pesam sobre mim”.

Com a devida licença do poeta, poderíamos chamar essa pulsão de vida que move a pessoa a cuidar-se com ajuda de um psicanalista, daquilo que ele faz ressoar em seus versos no mesmo poema: esperança.

Assim, uma pessoa que busca um psicanalista voluntariamente está cheia de dor, mas, também, ainda em maior proporção, de ESPERANÇA!

Freud demolidor

 

Os sonhos acompanham a humanidade desde que ela existe enquanto tal. Ou, por outra, adotada a perspectiva científica decorrente da teoria da evolução das espécie de Darwin, antes mesmo de a humanidade ser esta que hoje conhecemos, uma vez que os estudos comprovam a atividade onírica em todos os mamíferos.

Em 1994, uma equipe de espeleólogos amadores descobriu por acaso no sul da França, no interior de uma caverna, um acervo maravilhoso de inscrições rupestres, nas quais animais e seres humanos são representados com uma técnica altamente sofisticada, em perfeito estado de conservação — o que ocorreu em razão de um terremoto, estimado em 20 mil anos atrás, ter fechado a entrada da caverna.

 A descoberta da caverna de Chauvet impactou o mundo científico, pois as inscrições datam entre 30 e 40 mil anos atrás, tornando-se, portanto, as mais antigas até hoje conhecidas. Foram tomadas medidas drásticas para preservação desse patrimônio e, assim, as visitas foram proibidas, a caverna foi blindada com uma porta de aço e seu interior foi dotado de sistemas de câmeras e climático para garantir a integridade do acervo pintado em parede de rocha e em estalactites. O acesso a ela é regido por severas normas, e restringe-se ao meio científico e àqueles relacionados à divulgação cultural.

E o que isso tem a ver com os sonhos?

Tem a ver que o premiado cineasta e documentarista Werner Herzog, autorizado a produzir um documentário para registrar a descoberta, não encontrou melhor título para ele do que “A caverna dos sonhos esquecidos”. Assistir ao documentário explica porque esse título se impôs ao cineasta: o impacto não apenas do conjunto de mais de 420 pinturas e desenhos animais, de seres humanos e partes de seus corpos, mas do próprio interior da belíssima caverna — remete diretamente a paisagens de sonhos: o próprio clima no interior dessa espécie de útero simbólico é intensamente onírico.

A relação da humanidade com os sonhos tem sofrido alterações ao logo do tempo. Estudos de história, arqueologia, antropologia, sociologia, psicologia, psicanálise e ciências afins, ou em suas fronteiras, registram essas mudanças significativas.

Numa era em que as ciências sequer sonhavam em se estruturar, realidade, imaginação, fantasia, magia e sonho compunham um único tecido indiscernível. O que ocorria entre o dormir ao pôr-do-sol e o despertar com o sol nascente era tão vida e tão legítimo quando o que ocorria durante o dia claro, em que caça, pesca, coleta, fuga de predadores, cuidados com crianças, entre outros, se davam. Não havendo “muralha da china” entre sono e estado de vigília, o que ocorria em ambos era igualmente considerado pelo indivíduo como verdade: afinal, era extremamente angustiante ser atacado por uma fera tanto na vida real, quanto em sonho — com a diferença de que, como a fera do sonho não matava o homem real, este via naquele um aviso, uma premonição a ser tratada com seriedade.

Ao longo dos séculos, os sonhos foram assumidos com tal respeito que passaram a ser objetos de intepretação e atribuição de personagens especializados nas sociedades, de oráculos a sacerdotes, de adivinhos a sábios — e, com o desenvolvimento do pensamento científico, de filósofos a psicanalistas, passando por psicólogos, antropólogos, sociólogos, neurologistas, neurocientistas etc.

As abordagens não científicas do sonho são legítimas. Cada qual em sua esfera procura vislumbrar o humano por meio de sua perspectiva específica.

Por que rejeitar a leitura mística de um sonho, quando esta se apresenta muitas vezes como a única em que, em algum momento da vida, o indivíduo pode apoiar-se para seguir em frente, em face de perturbações incontornáveis? Por que desprezar uma interpretação religiosa ou mágica de um pesadelo, quando apenas uma fração muito pequena da humanidade se declara ateia ou agnóstica? Tanto mais quando tanto as perspectivas místicas, quanto as religiosas e mágicas legaram à humanidade um acervo de obras de arte e culturais de valor imensurável.

Porém, se essas perspectivas são legítimas, a científica também o é, e talvez mais, pois incorpora todas as demais: as ciências estudam o sonho na esfera material, mas também no âmbito do misticismo, das religiões e do pensamento mágico.

Coube a Freud dar um passo decisivo para compreender de um modo científico o papel dos sonhos na vida humana, levando em conta fatores biológicos, históricos, sociais e, principalmente, psíquicos.

Sua obra A intepretação dos sonhos (1900), tornou-se um marco, a partir do qual uma clivagem radical produziu uma decantação definitiva nas abordagens desse tema, que, de “pária” nos meios científicos,  passa a ser tópico de prestígio nas ciências da mente. A partir dessa obra fundante, as relações entre os sonhos e o bem-estar mental e físico do indivíduo começam a ser investigadas de maneira sistemática ao longo do século XX e adentram o XXI com abundantes pesquisas e publicações pelo mundo todo.

O racionalismo, base do progresso capitalista, que desde o século XIV se desenvolveu na Europa, no interior do que se convencionou chamar Humanismo, ergueu, aqui sim, uma “muralha da China” entre a vida psíquica durante o sono e a em estado de vigília.

Disso decorre que uma parte substancial da existência humana — aquela que vivemos dormindo — passou a ser ajuizada como “inútil”, afinal, não se produz nada, do ponto de vista capitalista, durante o sono.

Freud enxerga a arbitrariedade, a fragilidade, a limitação e o artificialismo dessa “construção” típica do modo capitalista de produção, que ao reduzir o ser humano a uma unidade de produção econômica, concebe o sono como uma pequena morte diária, um tempo desperdiçado, e os sonhos, como bizarrices inúteis dentro de um tempo de produção desperdiçado.

Essa muralha não há para os pensamentos místicos, mágicos ou religiosos — os quais Freud descarta já no início de seus estudos. Não há porque, malgrado as particularidades desses pensamentos não científicos, eles se esforçam por buscar uma compreensão integral (corpo e alma) do ser humano — não apenas sua dimensão física, fisiológica, econômica.

Coube a Freud, no campo científico, com A Intepretação dos sonhos, por abaixo essa muralha.

Transtorno de Ansiedade Generalizada


O Transtorno de Ansiedade Generalizada é considerado uma das principais afecções psíquicas de nossos conturbados tempos atuais, muitas vezes associado a formas depressão e fobias, o que dificulta em alguma medida o diagnóstico.

Os estudos demonstram que esse transtorno está relacionado diretamente às enormes pressões a que o indivíduo está sujeito desde os mais tenros anos de idade. A socialização das crianças já na primeira infância, o que em si é um fator positivo, as implicam desde cedo a relações de massa que, se por um lado implicam em ganhos em termos de escolarização e desenvolvimento de habilidades cognitivas, sociais e afetivas, por outro, as expõem ao estresse cotidiano — e por longas horas. A gritaria ensurdecedora no horário do intervalo reflete bem esse ambiente que em algumas oportunidades torna-se verdadeiramente tóxico.

Principalmente nas redes públicas, berçários, creches e pré-escolas superlotados, a falta de pessoal, a rotina esvaziada de sentido e o improviso compõem um ambiente de conflitos em que fatalmente algumas crianças desenvolverão sintomas de ansiedade — ou ainda outras afecções ainda mais preocupantes.

Porém, esse meio “carregado de eletricidade” não é privilégio de crianças em início da fase de escolarização. A Educação Básica, até o final do Ensino Médio, seja em escolas públicas, seja em escolas privadas, funcionam como receptáculos de uma grande quantidade de crianças, adolescente e jovens que carregam para esse ambiente as tensões geradas no interior da família, no âmbito de seus grupos, nos veículos do transporte público, nas ruas e avenidas em que o tráfego e os congestionamentos são enlouquecedores. Sob esse aspecto, a escola, desavisada, prepara uma geração de indivíduos ansiosos por ingressar o quanto antes no mundo ansioso, turbulento e conflituoso dos adultos.

Com relação à população adulta, homens e mulheres, já tendo realizado seu estágio de ansiedade na escola básica, encaram a luta pelo emprego, pelo Ensino Superior, pela qualificação profissional — junto com o medo do desemprego, do fracasso profissional, das desventura do amor, de constituir uma família (ou de perdê-la em processos dolorosos de separação).

Além da legítima carga emocional e de responsabilidades que cada um carrega em seu coração, ou sua alma, ou sua psique, derivada da condição de cada qual neste mundo hipercompetitivo, há inda uma outra, ainda mais intensa, fruto da revolução tecnológica. Na palma da mão de praticamente todo habitante de grandes e pequenas cidades, o celular sequestra toda a vida emocional de seu usuário, subordinando seus interesses aos dos veiculadores de conteúdo, que usam e abusam das mais elaboradas estratégias para intensificar ao extremo esse sequestro.

Sequestrado por perfis famosos das redes sociais (os assim chamados “influencers”), no Instagram, YouTube, Facebook, Tik Tok, Whatsapp, Telegram e outros, o indivíduo passa a ser bombardeado com assuntos que não lhe dizem respeito, posts e anúncios hiperssexualizados, questões graves da política, da economia, da saúde, dos costumes etc. cuja solução estão completamente fora de seu alcance — acrescidos daquelas de sua estrita competência cuja solução , tantas vezes, também lhes escapa.

É desse modo que nossa sociedade atual adoece em massa, mas cujos sintomas comparecem de forma mais visível no nível micro, do indivíduo, tornado uma verdadeira pilha de nervos — para empregar uma expressão já fora de uso —, que sofre agudamente seja dentro de seu carro, em face do semáforo vermelho que demora 2 minutos para abrir; seja à frente da porta de seu apartamento, vasculhando a bolsa ou os bolsos em busca da chave que insiste em se esconder; seja  digitando uma mensagem no celular, com o corretor automático corrigindo errado seu texto.

A pressão por todos os lados faz com que haja dificuldade em se admitir que a fronteira da normalidade já foi cruzada há tempo, uma vez que todos alteram a voz ao mínimo conflito, empregam palavras descorteses a qualquer propósito, invadem o espaço alheio sem cerimônia, atropelam “bom dia”, “boa tarde”, “boa noite”, “com licença”, “por gentileza”, “obrigado”, “como está?” para ir direto ao assunto, esgotá-lo com o máximo de rapidez para voltar ao celular.

A prevalência no tempo dessa conduta hiperacelerada confunde-se também com traço de personalidade ou caráter. Assim, os sintomas se agravam ao longo do tempo, convertendo-se em aparente norma, quando na realidade é manifestação de descontrole emocional e psíquico, que só será notado e, talvez, levado a sério, quando danos graves ou irreparáveis tenham vitimado casamentos, afetos entre pais e filhos, relações de amizade e carreiras profissionais tão desejadas e promissoras.

Na fase aguda, os riscos físicos são iminentes: tensão muscular, palpitação, sudorese, cefaleia frequente, disfunções sexuais, disfunção gastrointestinal. Porém, particularmente a população masculina, tradicionalmente avessa à medicina preventiva, só busca ajuda em face de outros sintomas: perda de memória, insônia, dificuldade de concentração, irritabilidade, inquietação.

Na busca de se livrar do sofrimento causado pelo transtorno, o afetado por ele canaliza suas energias para alvos específicos, que pode ser o sexo, a bebida, as drogas ilícitas, os “rachas” de moto ou automóvel, o abuso de exercícios em academias etc.

Quando se dá conta ou é convencido de que necessita de tratamento, a difícil recuperação do indivíduo ocorre, pois é reversível, em meio a perdas muitas vezes irrecuperáveis, na esfera de relações afetivas e sociais caríssimas, entre as quais o casamento, a paternidade, o emprego, as amizades, o grupo social.

Em situações agudas, o tratamento psicanalítico convoca o auxílio do psiquiátrico, ao menos até o indivíduo recuperar-se o suficiente para retomar o controle de suas próprias emoções — a exemplo de casos de insônia prolongada, de sensação recorrente de vertigem ou de pensamentos obsessivos que abrem caminho ou já estão no âmbito da depressão severa.

Quantos relacionamentos tiveram fim, particularmente nos últimos três anos, com a pandemia de Covid-19, e o confinamento dela advindo, pelo estresse de um período em que a vida em comum converteu-se em uma panela de pressão? Quando dos atritos, conflitos e rompimentos de afetos se devem ao Transtorno de Ansiedade Geral, confundido com traço de caráter ou personalidade. Quantas das pessoas descartadas de relações profissionais, sociais ou amorosas o foram por terem se tornado “insuportáveis”, quando na verdade estavam apenas doentes?

Todos precisam de todos, o tempo todo

 

A busca pela saúde psíquica e mental é seguramente uma das maiores preocupações dos tempos atuais. Em face da complexidade e dos conflitos do mundo contemporâneo, o indivíduo está a todo momento exposto a situações de estresse que, no curso do tempo, produzem ferimentos emocionais de variados graus de gravidade, dos mais amenos e inócuos aos mais severos e incapacitantes.

Em meio a situações-limite na família, no meio profissional e na vida cidadã, em algum momento de sua vida o indivíduo adoecerá emocionalmente e, a depender de seu histórico particular e da gravidade do transtorno, necessitará de ajuda especializada, por curto, médio ou longo prazo — e às vezes para o resto da vida.

No que tange ao psicanalista, sua especialidade tem assistido a um substancial crescimento de demanda, tanto mais quando se põe na balança os efeitos ocasionados pela pandemia de COVID-19, que resultou em perdas humanas insuperáveis, confinamento social por largo período, mudança de hábitos individuais e coletivos, e agravamento da crise econômica, cujo impacto gerado pela paralisia ou quebra de empresas, em função do longo período de interrupção de atividades, e pelo desemprego generalizado, ainda repercutem fortemente no seio da família, da comunidade e da sociedade em geral.

Seja no ambiente profissional ou urbano, seja nas escolas, seja na família, uma pressão enorme se acrescentou àquelas já normalizadas pelo quotidiano tenso, derivado de uma crise política prolongada que, no Brasil, beira uma década, em que polarizações por disputas ideológicas fizeram naufragar relações entre casais, pais e filhos, amigos, colegas de trabalho entre outras.

Como afirma Freud, todos somos algo neuróticos, no entanto, a intensidade dos conflitos sociais e políticos no Brasil dos anos mais recentes, e a gravidade da pandemia de COVID-19 potencializaram um clima social hostil que, sem solução satisfatória, gerou uma correspondente epidemia de transtornos psíquicos, que vão do mal-estar intermitente à depressão mais severa, em que o crescimento do número de suicídios se mostra apenas como face mais visível.

Com efeito, a título de exemplo, a partir de dados do Ministério da Saúde, a Fundação Oswaldo Cruz desenvolveu estudo sobre o suicídio no Brasil em 2020. O objetivo dessa pesquisa (Excesso de suicídios no Brasil: desigualdades segundo faixas etárias e regiões durante a pandemia de Covid-19) era investigar a elevação do número de suicídios no país por idade e por regiões. Ainda como exemplo, o estudo revelou que na região Norte houve um acréscimo de 26% de suicídios em homens com 60 anos ou mais. (FONTE: Fundação Oswaldo Cruz. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/fiocruz-avalia-excesso-de-suicidios-no-brasil-na-primeira-onda-de-covid-19. Acesso em 22 dez 22.)

Se nas empresas o ambiente de incerteza projeta sobre os indivíduos um véu de ansiedade, em razão da pressão por resultados em face de um mercado contraído; nas escolas, professores e demais profissionais buscam instaurar um clima de normalidade, porém é visível que crianças e adolescentes apresentam dificuldades para restabelecer vínculos com os colegas nos termos pré-pandemia; e em nível “macro”, o estudo da Fundação Oswaldo Cruz demonstra que os efeitos colaterais da pandemia vão muito além das mortes diretamente ligadas ao coronavírus, abrangendo uma dimensão que vai se tornando mais visível à medida que os diagnósticos de transtornos psíquicos vão alimentando estatísticas oficiais do período.

Se por um lado a melhoria da situação geral depende de políticas de saúde amplas, que impliquem em controlar e, idealmente, debelar a pandemia, por outro, os danos psíquicos resultantes desse período aziago de nossa história recente só serão satisfatoriamente mitigados ou sanados a partir do auxílio especializado aos indivíduos diretamente impactados.

Noutras palavras, as empresas superarão suas dificuldades se buscarem propiciar a seus colaboradores um clima saudável, que não se alcança na insegurança ou na pressão psicológica por resultados que, nesse caso, quando vêm, vêm mesclado com atestados médicos de toda natureza — e cada vez mais de natureza psíquica.

Do mesmo modo, o ambiente escolar não superará satisfatoriamente e no prazo mais breve possível o mal-estar remanescente do período de confinamento se não observar o estado emocional de estudantes, de seus familiares e dos profissionais da unidade escolar.

No âmbito da família e da comunidade, infelizmente, muitas situações são irreversíveis. Assim como os casos de suicídio se tornaram mais frequentes, também o número de divórcios apresentou significativa alta no período.

Segundo a Associação Nacional dos Advogados Públicos Federais: “Estudos demonstram que, durante o segundo ano de isolamento social decorrente da pandemia, o número de divórcios feitos em cartórios de notas do país subiu 26,9% de janeiro a maio só em 2021, em relação ao mesmo período de 2020. Se comparado a igual período de 2020, o crescimento foi de 36,35% em 12 meses.” (FONTE: Anafe. Disponível em: https://anafenacional.org.br/divorcios-na-pandemia-que-dizem-os-dados. Acesso em: 22 dez 22).

No artigo da Anafe que trata do assunto, a panela de pressão em que se tornou o lar, saturado pelo home office do casal, por tarefas domésticas e por aulas virtuais dos filhos, que tornaram a sala de casa extensão da sala de aula, levaram a um colapso emocional a família:  “Dentro de casa, as pessoas viram-se forçadas a tentar equilibrar as atividades profissionais com o cuidado das crianças, tarefas domésticas, sem se desocupar das finanças, saúde corporal e mental e até dos relacionamentos interpessoais com parceiros/cônjuges, família e amigos. A dinâmica de equilíbrio desses “pratinhos” é delicada e, dependendo do grau de stress, é inevitável que um deles caia.” (Anafe. Idem, ibidem)

Submetido a pressões insuportáveis, tanto sociedades, quanto grupos sociais, família ou indivíduos sucumbem. Sob esse aspecto, a pandemia deixa como lição a necessidade de dar maior atenção à saúde mental, psíquica e emocional não apenas quando doenças, transtornos ou distúrbios se apresentam, muitas vezes de forma dramática, mas enquanto forma preventiva e mesmo cotidiana de busca de equilíbrio e bem-estar.

Se maus momentos políticos e econômicos de uma sociedade são caldo de cultura para adoecimento da população, inclusive na dimensão psíquica, também é verdade que indivíduos mais conscientes de sua dimensão emocional — e que cuidam dela — enfrentam melhor esses períodos, quer expondo-se menos a situações traumáticas, quer as enfrentando de forma mais adequada e racional.

O ser humano é falível, tem limites, fragilidades e disfunções características. Ter consciência dessa falibilidade, desses limites, fragilidades e disfunções não os elimina, mas propicia meios para enfrentá-los cotidianamente e vencê-los, quer por conta própria do indivíduo, quer com ajuda especializada, o que não é demérito nenhum — antes pelo contrário, revelando uma sabedoria profunda: a de reconhecer que, no âmbito da humanidade, ninguém é autossuficiente, pois todos precisam de todos, nos piores momentos principalmente, mas, a rigor, o tempo todo.


Sexo e poder

 

O século XX foi atravessado por duas grandes ondas revolucionárias, cujo epicentro ocorre na Europa de fins do século XIX e cujos reflexos se espalharam pelo mundo e repercutem até os dias de hoje.

A primeira delas, não necessariamente em ordem de importância, diz respeito ao campo da política, e está ligada diretamente à obra de Karl Marx, para quem as crises capitalistas levariam o mundo inexoravelmente ao socialismo. Não houve processo de independência nacional ou de revolução social de fins do século XIX e de todo o século XX que não esteve de alguma forma associada ao pensamento marxista.

A segunda onda que se ergue no fim do século XIX, atravessa todo o XX e segue com força neste início de XXI, é da revolução sexual, diretamente relacionada à obra de Sigmund Freud. Não houve e não há movimento feminista ou contra discriminação de gênero ou identidade sexual desde Freud que não se remeta de alguma forma à sua obra, seja para apoiar-se nela, seja para buscar novos caminhos, criticando-a.

A influência desses dois pensadores é tão avassaladora sobre a produção científica e intelectual, que se tornou comum explicar os processos sociais e políticos do mundo contemporâneo pelo binômio “sexo e poder”, noutras palavras, Freud e Marx.

No entanto, as revoluções sociais não são objeto deste artigo — embora seja instigante buscar as aproximações e distanciamentos entre Freud e Marx. O objetivo, aqui, é realizar uma reflexão não extensa sobre a importância de Freud na pesquisa da psique humana.

Diferentemente de Marx, que buscou nas relações e nas classes sociais as razões da infelicidade coletiva, Freud voltou suas atenções para os mecanismos psíquicos internos do indivíduo, responsáveis por sua saúde ou por sua insanidade emocional.

Seu modelo topográfico, em que consciente, pré-consciente e inconsciente se articularam para descrever a vida psíquica humana foi um passo decisivo para que as ciências da mente se afastassem de explicações mistificadoras ou de ordem religiosa. Seu modelo estrutural, posterior, em que Id, Ego e Superego descrevem o mecanismo estruturante do indivíduo foi outro passo de gigante para as ciências da mente.

Ao abordar transtornos psíquicos como resultantes de traumas relacionados ao desenvolvimento sexual, do nascimento à idade adulta, Freud jogou luzes sobre problemas muitas vezes representados na literatura e nas artes, porém de forma poética.

Nas relações conturbadas entre homens e mulheres, mãe-filho/a, pai-filho/a, tão frequentes na literatura, Freud enxergou não retratos de anomalias morais, mas representação artística de uma constante mais profunda, relacionada ao próprio desenvolvimento da sexualidade humana.

Fugindo aos limites da moral de época, que tantas vezes penetrou os domínios da ciência e a impregnou de preconceitos — porém sem deixar de ser um homem de sua época, portanto, moldado pelos limites históricos do tempo em que viveu — Freud esforçou-se por desromantizar a relação homem-mulher e pais-filhos. Por essa razão, foi, e ainda é, alvo da ira de grupos e indivíduos que preferem sacralizar relações humanas, a encará-las como produto de relações sociais e políticas, mas também psicossexuais.

Ao propor que o indivíduo humano desenvolve sua sexualidade desde o momento em que reúne condições fisio e neurológicas para tanto, Freud deu a senha para que parte significativa da humanidade marchasse contra ele mesmo. Melhor não ficou sua situação no meio científico conservador de sua época, e menos aprovação teve ainda do senso comum, quando escreveu com todas as letras que a mãe e o pai são os primeiros responsáveis tanto pelo desenvolvimento saudável da sexualidade de seus filhos, quanto por seus traumas na idade adulta.

A visão científica de Freud era incompatível com representações ideológicas prevalentes ao longo dos séculos que se, por um lado, colocavam a mãe em um altar e o pai em um trono, por outro, fechava os olhos para as razões dos transtornos psíquicos, destinando os “anormais” e  “loucos” para casas de alienados, para os hospícios, para as cadeias, ou para a fogueira, junto com bruxas, perversos, criminosos ou descontentes com a ordem vigente.

Ao buscar explicações científicas para transtornos psíquicos, Freud foi forçado a esmiuçar as entranhas da mais antiga instituição humana, a família, que se reveste dos véus simbólicos da religião, mas cuja base concreta é o sexo.

Ao voltar sua lupa para os mecanismos psíquicos do indivíduo, o que Freud descobriu foram associações complexas entre biologia, fisiologia e introjeção de representações simbólicas de relações sociais: mãe, pai, família, comunidade, Estado.

Descartadas razões de ordem física, em que se incluem lesões, malformações e genética, que origem poderiam ter as neuroses e psicopatologias, a não ser em mecanismos psíquicos afetados por relações ou eventos traumáticos, introjetados em momentos decisivos da vida do indivíduo, o principal deles a infância?

Dedicando sua vida de cientista humanista à luta contra o sofrimento do indivíduo, Freud desenvolveu métodos de pesquisa e terapêuticos que o levaram a creditar grande parte da origem dos traumas psíquicos da vida adulta a eventos relacionados a perturbações do desenvolvimento sexual na infância.

Durante o século XX, muitos estudiosos, estes com conhecimento de causa, questionaram a ênfase de Freud na sexualidade como dimensão central da saúde psíquica — ou de transtornos, neuroses e patologias psíquicas —, e Jung não é, aqui, figura solitária.

No entanto, cabe a pergunta: não tivesse Freud chamado a atenção a esse aspecto que, hoje, passa por obviedade, teriam as ciências da mente alcançado o estágio em que se encontram?

A importância do método psicanalítico hoje


Todo aquele que busca auxílio a um psicanalista o faz premido por uma necessidade incontornável — às vezes e com frequência como último recurso — para superação de sofrimentos interiores em face dos quais se sente impotente e muitas vezes devastado. Isso ocorre porque os conflitos internos de menor complexidade o indivíduo enfrenta por seus próprios meios, só se dando conta da urgência de ajuda especializada quando se convence, quase sempre de maneira tardia, de que não recuperará seu equilíbrio emocional sem essa ajuda.

Porém, o psicanalista, consciente de seu próprio limite, dado pelo ponto de análise em que ele mesmo se encontra junto a outro psicanalista, é livre par aceitar a demanda, ou orientar o paciente a outro colega em melhores condições, uma vez que o processo de transferência analisando-analisado é posto em risco se o analista se depara com conflitos situados além de seu próprio ponto de análise.

Isso ocorre porque o método psicanalista, ao buscar a busca pela palavra, põe um sujeito em interação franca com outro, um com uma demanda, outro com uma técnica, ambos envolvidos num mesmo processo cujo fim é a resolução dos conflitos internos do demandante, mas cujo meio é propiciado pelo demandado, que pode se sentir inteiramente apto para liderar o processo de análise, mas que também está livre para, em dado momento, reencaminhar o demandante a outro profissional.

A entrevista preliminar, sob esse ponto de vista, é essencial, pois permite ao analista tanto realizar um diagnóstico tão preciso quanto possível, quanto avaliar seu próprio papel em face da demanda solicitada e do próprio demandante.

Uma vez aceita a demanda, o processo psicanalítico põe em movimento não apenas os elementos apresentados pelo demandante, os quais inevitavelmente são apenas resíduos, vestígios, fragmentos dos conflitos que atormentam sua psique.

Se o elemento aparentemente detonador do sofrimento que levou o demandante ao consultório se afigura a ele claro e inequívoco — tal como uma perda de ente querido, uma separação dolorosa e inexorável, uma frustração avassaladora —, a partir dessa declaração voluntária e livre, estimulando a livre associação do próprio paciente, o analista trabalha com esse elemento no mesmo nível de importância que os demais que forem surgindo a partir da fala do próprio analisando, pois o demandante pode estar certo, parcialmente certo ou simplesmente equivocado com relação à causa de seu sofrimento.

Num processo contínuo de transferência e contratransferência, analista e analisando, ajustando sempre o idioma comum, aprofundam a busca na psique das causas do sofrimento — que sempre são mais complexas do que se afiguram na superfície da consciência. E, ainda que a intuição do analista esteja correta, a técnica psicanalítica exige que ele ajude o analisando a construir por si mesmo o caminho de sua cura, porque, nesse sentido, a cura é exatamente essa construção íntima, essa estrutura psíquica que jamais poderá ser alcançada do exterior, sendo, antes, fruto da elaboração do próprio analisando.

A reconquista do equilíbrio emocional, da saúde psíquica, assim, não é resultado de uma ação exclusiva, dirigida a um único ponto da psique em que por ventura, aparentemente, um trauma se apresente, mas é um processo integral de transformação do sujeito, em que as causas dos sofrimento são buscadas ao mesmo tempo em que mecanismos de autoconhecimento são ativados e estimulados para a reconfiguração da psique, reconfiguração que, caso bem-sucedida, dá ensejo a uma psique saudável não porque uma “cicatriz” simbólica passa a ocupar o lugar de um trauma, mas porque o trauma, descoberto, analisado, elaborado e superado pelo próprio indivíduo, por mecanismo internos desenvolvidos por ele mesmo, deixa de produzir seus efeitos perturbadores na psique.

Em certo sentido, talvez um dos principais objetivos do método psicanalítico seja auxiliar o analisando a reconstituir seu Ego, que, por alguma razão que o método busca elucidar, perdeu força em face do Id, do Superego — ou de ambos.

Forçado a servir a dois senhores — Id e Superego —, o Ego, tendo de se haver ainda com as demandas do mundo real, pode se fragilizar em algum momento da vida — e, inevitavelmente, em algum momento se fragilizará, mesmo, uma vez que, como a vida externa, a vida psíquica é dinâmica e está sujeita a impactos imprevisíveis, muitos deles negativos e alguns, mesmo, devastadores.

Ao longo de seu tempo de vida, o indivíduo está sujeito a frustrações e perdas extremamente dolorosas — e quanto mais tempo viver, mais estará exposto a essas experiências. Será inevitável que em algum momento sua saúde psíquica seja afetada, particularmente nos tempos conturbados em que vivemos, de conflitos de toda espécie e dimensões, que envolvem o conjunto da sociedade e têm impacto direto no indivíduo, o tempo todo pressionado pelas instabilidades econômicas e políticas, pelo fantasma do desemprego ou do insucesso profissional, pela insegurança em relação ao amanhã ou ainda pelas crises conjugais e familiares.

Desse modo, manter a saúde psíquica, mais do que uma preocupação ocasional, assume relevância cotidiana. Fazer psicanálise, sob esse ponto de vista, não é apenas uma necessidade para demandas específicas, em que crises agudas se manifestam, mas uma prática relacionada à prevenção de situações-limite, ao autoconhecimento e ao bem-estar do indivíduo contemporâneo que, exposto a conflitos e à fadiga mental diariamente, só os enfrenta com sucesso se estiver interiormente firme e forte — em poucas palavras: se estiver reforçando sua psique o tempo todo.

O desenvolvimento conflitivo da psique humana

Embora o desenvolvimento psíquico humano ocorra à medida que o próprio desenvolvimento físico ocorra, os estudos de Freud demonstraram que isso se dá de forma contraditória, não linear e sempre com avanços, recuos e acidentes de percurso de maior ou menor gravidade, dos quais derivam as neuroses e psicoses.

Num desenvolvimento absolutamente “normal”, Freud identificou cinco fases de desenvolvimento psíquico humano: ora, anal, fálica, latência e genial.

Na primeira fase, oral, entre 0 e 2 anos, a erotização da boca leva o indivíduo a buscar não apenas o alimento tão necessário à sua sobrevivência fora do útero materno, mas também o prazer. Esse prazer, a partir de um certo momento, descola-se da própria atividade de sugar o leite materno, o que explica o regurgito do bebê, que em busca do prazer, proporcionado pelo sugar, ingere mais do que o seu aparelho digestivo suporta — noutras palavras, ele continuou a sugar, por prazer, após sua necessidade fisiológica ter sido satisfeita. Também demostra a erotização dessa parte do corpo o uso da chupeta ou, tantas vezes, do próprio dedo.

A segunda fase do desenvolvimento psíquico para Freud é a anal, entre 2 e 3 anos, quando entra em jogo o controle da urina e das fezes. Naturalmente levado a esse exercício pelos próprios movimentos do organismo, e orientado e censurado pelos pais, a criança descobre o prazer de prender a urina e as fezes e de liberá-las. A sensação proporcionada por esse exercício de controle do próprio corpo erotiza essas regiões, mas o prazer ainda está associado exclusivamente à liberação de urina e fezes

A fase fálica, entre 3 e 6 anos, corresponde para Freud àquela em que o órgão genital é percebido enquanto tal pela criança, que passa a tocá-los em busca do prazer, mesmo quando a necessidade puramente fisiológica já foi satisfeita. O que ocorreu coma erotização da boca, ocorre com a erotização do órgão genital: o prazer se descola da função fisiológica da micção, e passa a ser buscado quando ela está em jogo.

Na fase de latência, de 6 anos à puberdade, Freud identifica um período em que as atenções do indivíduo se voltam para as relações sociais, para o exterior, em razão do que o desenvolvimento psíquico relacionado à sexualidade sofre uma repressão das sensações erógenas, em favor uma constituição mais definida do ego. Nesse período, as transformações físicas e psíquicas ocorrem gradualmente, muitas vezes de forma quase imperceptível, mas ao fim da qual, grandes e radicais transformações, em ambas as dimensões, ocorrem vertiginosa e definitivamente.

A fase genital, a partir da puberdade, para Freud, corresponde ao estágio em que o indivíduo, em condições normais, atinge em definitivo a maturidade psíquica e sexual. Mudanças significativas, deflagradas ao final da fase de latência, se impõem no início desta e, ao final dela, alcança-se a fase adulta.

Porém, os estudos de Freud verificaram que, em razão de traumas, fantasias ou idiossincrasias do próprio indivíduo, seu desenvolvimento psíquico pode sofrer recuos importantes e mesmo patológicos, caso em que afloram neuroses ou psicoses.

Para Freud, as neuroses são mecanismos defesa a que o indivíduo recorre para suportar um sofrimento excruciante. Assim, as manifestações emocionais ou psíquicas anormais não seriam a doença em si, mas uma reação do indivíduo para enfrentar uma dor interna sobre a qual não tem domínio e à qual não consegue sanar sem ajuda — aqui se justifica para Freud o papel do psicanalista, que é o de ajudar ao paciente afetado a descobrir a origem de seu sofrimento e a construir mecanismos psíquicos internos para restaurar sua saúde emocional.

As origens dessas neuroses, Freud identificou, residem em fases remotas do desenvolvimento psicossexual. As fobias, por exemplo, teriam relação a uma fixação do indivíduo na fase fálica, em que a angústia de castração e a sensação de aniquilamento e desemparo se sobrelevam. Aqui, uma lembrança ou em face de um objeto ou situação específica, o indivíduo reage desproporcionalmente. Por seu turno, as obsessões e compulsões teriam origem na fase anal, quando a imposição de regras e censuras, com os primeiros conflitos entre ID e Superego. Nesse particular, para “evitar o erro” e a dor de ser censurado, o indivíduo repete inúmeras vezes o mesmo gesto, o mesmo processo, a mesma ação. A histeria teria como ponto de fixação a fase fálica. Suas manifestações seriam uma somatização de uma defesa que não pôde ser elaborada psiquicamente pelo indivíduo.

Os estudos de Freud demostraram também que em linhas gerais, todos os seres humanos são em certa medida neuróticos, pois durante o processo de desenvolvimento psicossexual, todos, todos recalcamos impulsos e desejos, alguns dos quais, mal elaborados em nossa psique, retorna na forma de sintoma.

Sob esse aspecto, Freud também inovou no que tange à saúde preventiva, pois, ao constatar que todos estamos expostos a traumas de maior ou menor monta, deixou implícita a necessidade de que a psicanálise se voltasse não somente para os indivíduos diagnosticados com patologias, mas também para os considerados em condição de normalidade, uma vez que mesmo estes não estão a salvo de processos estressantes que desencadeiem sintomas neuróticos mais acentuados — e a situação de confinamento durante a pandemia de Covid-19 bem o demonstrou, com os índices de atendimento de saúde mental do SUS saltando substancialmente entre os anos de 2020 e 2022.

Porém às neuroses, somam-se ainda as psicoses (esquizofrenia, paranoia e melancolia), cujas origens podem ser diversas, mas cujos danos psíquicos são ainda mais severos. Ambas, tanto neuroses quanto psicoses, demonstram que o desenvolvimento psíquico humano nem é linear, nem está livre de afecções, e que o conflito entre Id, Ego e Superego é inerente à própria condição humana.

Freud e o início da Psicanálise

 

As pesquisas e as práticas de Freud inserem-se no conjunto de revoluções científicas e técnicas do século XIX, que promoveram um progresso exponencial em todas as áreas do conhecimento humano. Porém essas revoluções não ocorreram como frutos do acaso, constituindo-se, antes, como um salto de qualidade de mais de quatro séculos de disputas entre os pontos de vista religiosos e os científicos — os quais ao mesmo tempo impulsionavam e eram impulsionados pelo capitalismo nascente.

Com efeito, das grandes navegações, com suas caravelas movidas pelo vento, em fins do século XV e início do XVI, à máquina à vapor, que pôs navios gigantescos nos oceanos e espalhou ferrovias por todos os continentes da Terra, no século XIX, praticamente todas as barreiras religiosas que se opunham ao progresso tecno-científico vieram abaixo.

Se a filosofia, com seus humanistas e iluministas, em sua guerra contra o predomínio da religião, imperou soberana nos meios cultos até o século XVIII, no século XIX o polo dinâmico se deslocou para as ciências da natureza, que já tinham em Copérnico, Newton, Galileu e Giordano Bruno um solo fértil, cultivado desde o século XVI. Porém não veio diretamente da física a influência predominante desse século XIX tão decisivo para as ciências, mas do que então se chamava história natural, hoje identificada com a biologia.

A pesquisa genética de Mendel e principalmente a da origem das espécies, de Darwin, ultrapassaram seus próprios limites, e tiveram suas perspectivas e seus métodos importados pelas demais ciências, naturais ou humanas — entre as quais as que se voltavam para o estudo dos transtornos mentais.

De uma maneira geral, pessoas com transtornos mentais mais severos eram, como continuam a ser até os dias de hoje em muitas partes do mundo, em manicômios e asilos para alienados, onde, a depender da situação econômica e da tradição local, eram compartilhavam espaço com crianças órfãs e idosos abandonados, surdos-mudos confundidos com pacientes psiquiátricos, tuberculosos, leprosos entre outros.

Os trabalhos de Freud e de sua geração de pesquisadores da mente foi pioneiro, ao buscarem, orientados por critérios científicos, diagnosticar transtornos psíquicos e desenvolver métodos e práticas terapêuticas.

Afastando perspectivas metafísicas, religiosas, místicas e do senso comum, Freud logrou compreender a pisque de seus pacientes por meios inusitados para a época. Porém, para tanto, era necessário desenvolver conceitos eficazes tanto na diagnose quanto na terapêutica. De todos os conceitos desenvolvidos por Freud, talvez o mais emblemático seja o de “inconsciente”.

Ao propor que a psique humana é constituída de três dimensões — consciente, pré-consciente e inconsciente —, Freud põe por terra as ideias religiosas de unidade da alma, e as metafísicas, de identidade individual indivisível. Não fora o suficiente para abalar verdades até então consagradas, Freud ainda defende que a maior parte da psique humana é ocupada pelo inconsciente, no qual residem lembranças, memórias e pulsões recalcadas durante o processo que se inicia no útero materno e que acompanha o indivíduo até sua morte.

Se num primeiro momento Freud compreende a psique humana como tripartida entre consciente, pré-consciente e inconsciente, à medida que suas pesquisas avançam e suas sistematizações progridem ele chega à uma outra versão dessa mesma ideia. Agora, para ele, sem descartar a tríade consciente-pré-consciente-inconsciente, os conceitos de Id, Ego e Superego ganham lugar. Esse modelo promoverá um verdadeiro abalo nas ciências da mente e da psique humanas.

Ao considerar que o Ego é uma dimensão da psique humana que busca controlar as pulsões primitivas do Id (em relação às quais a moral, a ética e os limites sociais nenhum poder têm), e resistir às imposições do Superego (relacionadas às convenções sociais), Freud expõe a fragilidade do equilíbrio psíquico humano, que dependeria, assim, de um Ego bem estruturado e sadio, mediador de tensões entre Id e Superego.

A esses conceitos fundadores, Freud acrescenta e desenvolve o de “pulsões”, que seriam energias psíquicas originárias no Id, a alimentar tanto o Ego quanto o Superego. E para desconforto geral de uma ciência que considerava a morte como inimiga da vida, Freud propõe que a saúde psíquica depende do equilíbrio entre pulões de vida (Eros) e pulsões de morte (Tanatus), sendo as primeiras chamadas por ele de “Libido”.

A obra teórica de Freud se avoluma e se sofistica à medida que suas práticas terapêuticas e suas reflexões científicas apresentam novos desafios, que exigem ajustes em seus modelos. Se incialmente seu trabalho se voltou para pacientes às voltas com transtornos psíquicos sintomáticos, à medida que sua perspectiva passou a ser adotada mais largamente, suas reflexões se mostraram também válidas para psique humana em geral — não apenas para a compreensão das psiques abaladas por traumas significativos.

Ao observar que sintomas de seus pacientes estavam relacionados com seus inconscientes — portanto com seus Ids —, Freud buscou formas de acessá-los; primeiro, por meio da sugestão hipnótica; depois, descartando-a, por meio da livre associação, oriunda da fala sem censuras do próprio paciente: ao alcançar por meio da livre associação os eventos traumáticos recalcados nas profundezas do inconsciente, o paciente punha-se em condições de inseri-los em uma nova narrativa, esta consciente, e ressignficá-los, habilitando-se a, reforçando seu próprio Ego, reequilibrar toda sua psique, abalada sempre que o trauma aflorasse sem expressão na linguagem — sob esse aspecto, o sintoma seria uma manifestação fisiológica, oriunda de um trauma não equacionado pelo Ego.

Por entender a importância do inconsciente na psique humana, Freud envereda seus estudos para um campo em que ele, o inconsciente, age sem freios: o campo dos sonhos.

Freud será também pioneiro em investigar os sonhos de um ponto de vista estritamente científico — uma vez que os sonhos são alvo de interesses místicos, religiosos e metafísicos desde que o homem se entende enquanto tal. Sua obra A interpretação dos sonhos, publicada em 1900, se tornará um clássico para além das fronteiras da ciência em ele que pontou como fundador, a psicanálise.

Se Copérnico tirou o homem do centro do universo, e Darwin o tirou de seu pedestal sagrado, Freud demonstrou que ele não é senhor sequer de sua psique, cujo Ego luta para não ser esmagado pelo Superego, introjeção das convenções sociais, e pelo Id, dimensão primitiva e biológica de nossa humana condição.