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terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Freud demolidor

 

Os sonhos acompanham a humanidade desde que ela existe enquanto tal. Ou, por outra, adotada a perspectiva científica decorrente da teoria da evolução das espécie de Darwin, antes mesmo de a humanidade ser esta que hoje conhecemos, uma vez que os estudos comprovam a atividade onírica em todos os mamíferos.

Em 1994, uma equipe de espeleólogos amadores descobriu por acaso no sul da França, no interior de uma caverna, um acervo maravilhoso de inscrições rupestres, nas quais animais e seres humanos são representados com uma técnica altamente sofisticada, em perfeito estado de conservação — o que ocorreu em razão de um terremoto, estimado em 20 mil anos atrás, ter fechado a entrada da caverna.

 A descoberta da caverna de Chauvet impactou o mundo científico, pois as inscrições datam entre 30 e 40 mil anos atrás, tornando-se, portanto, as mais antigas até hoje conhecidas. Foram tomadas medidas drásticas para preservação desse patrimônio e, assim, as visitas foram proibidas, a caverna foi blindada com uma porta de aço e seu interior foi dotado de sistemas de câmeras e climático para garantir a integridade do acervo pintado em parede de rocha e em estalactites. O acesso a ela é regido por severas normas, e restringe-se ao meio científico e àqueles relacionados à divulgação cultural.

E o que isso tem a ver com os sonhos?

Tem a ver que o premiado cineasta e documentarista Werner Herzog, autorizado a produzir um documentário para registrar a descoberta, não encontrou melhor título para ele do que “A caverna dos sonhos esquecidos”. Assistir ao documentário explica porque esse título se impôs ao cineasta: o impacto não apenas do conjunto de mais de 420 pinturas e desenhos animais, de seres humanos e partes de seus corpos, mas do próprio interior da belíssima caverna — remete diretamente a paisagens de sonhos: o próprio clima no interior dessa espécie de útero simbólico é intensamente onírico.

A relação da humanidade com os sonhos tem sofrido alterações ao logo do tempo. Estudos de história, arqueologia, antropologia, sociologia, psicologia, psicanálise e ciências afins, ou em suas fronteiras, registram essas mudanças significativas.

Numa era em que as ciências sequer sonhavam em se estruturar, realidade, imaginação, fantasia, magia e sonho compunham um único tecido indiscernível. O que ocorria entre o dormir ao pôr-do-sol e o despertar com o sol nascente era tão vida e tão legítimo quando o que ocorria durante o dia claro, em que caça, pesca, coleta, fuga de predadores, cuidados com crianças, entre outros, se davam. Não havendo “muralha da china” entre sono e estado de vigília, o que ocorria em ambos era igualmente considerado pelo indivíduo como verdade: afinal, era extremamente angustiante ser atacado por uma fera tanto na vida real, quanto em sonho — com a diferença de que, como a fera do sonho não matava o homem real, este via naquele um aviso, uma premonição a ser tratada com seriedade.

Ao longo dos séculos, os sonhos foram assumidos com tal respeito que passaram a ser objetos de intepretação e atribuição de personagens especializados nas sociedades, de oráculos a sacerdotes, de adivinhos a sábios — e, com o desenvolvimento do pensamento científico, de filósofos a psicanalistas, passando por psicólogos, antropólogos, sociólogos, neurologistas, neurocientistas etc.

As abordagens não científicas do sonho são legítimas. Cada qual em sua esfera procura vislumbrar o humano por meio de sua perspectiva específica.

Por que rejeitar a leitura mística de um sonho, quando esta se apresenta muitas vezes como a única em que, em algum momento da vida, o indivíduo pode apoiar-se para seguir em frente, em face de perturbações incontornáveis? Por que desprezar uma interpretação religiosa ou mágica de um pesadelo, quando apenas uma fração muito pequena da humanidade se declara ateia ou agnóstica? Tanto mais quando tanto as perspectivas místicas, quanto as religiosas e mágicas legaram à humanidade um acervo de obras de arte e culturais de valor imensurável.

Porém, se essas perspectivas são legítimas, a científica também o é, e talvez mais, pois incorpora todas as demais: as ciências estudam o sonho na esfera material, mas também no âmbito do misticismo, das religiões e do pensamento mágico.

Coube a Freud dar um passo decisivo para compreender de um modo científico o papel dos sonhos na vida humana, levando em conta fatores biológicos, históricos, sociais e, principalmente, psíquicos.

Sua obra A intepretação dos sonhos (1900), tornou-se um marco, a partir do qual uma clivagem radical produziu uma decantação definitiva nas abordagens desse tema, que, de “pária” nos meios científicos,  passa a ser tópico de prestígio nas ciências da mente. A partir dessa obra fundante, as relações entre os sonhos e o bem-estar mental e físico do indivíduo começam a ser investigadas de maneira sistemática ao longo do século XX e adentram o XXI com abundantes pesquisas e publicações pelo mundo todo.

O racionalismo, base do progresso capitalista, que desde o século XIV se desenvolveu na Europa, no interior do que se convencionou chamar Humanismo, ergueu, aqui sim, uma “muralha da China” entre a vida psíquica durante o sono e a em estado de vigília.

Disso decorre que uma parte substancial da existência humana — aquela que vivemos dormindo — passou a ser ajuizada como “inútil”, afinal, não se produz nada, do ponto de vista capitalista, durante o sono.

Freud enxerga a arbitrariedade, a fragilidade, a limitação e o artificialismo dessa “construção” típica do modo capitalista de produção, que ao reduzir o ser humano a uma unidade de produção econômica, concebe o sono como uma pequena morte diária, um tempo desperdiçado, e os sonhos, como bizarrices inúteis dentro de um tempo de produção desperdiçado.

Essa muralha não há para os pensamentos místicos, mágicos ou religiosos — os quais Freud descarta já no início de seus estudos. Não há porque, malgrado as particularidades desses pensamentos não científicos, eles se esforçam por buscar uma compreensão integral (corpo e alma) do ser humano — não apenas sua dimensão física, fisiológica, econômica.

Coube a Freud, no campo científico, com A Intepretação dos sonhos, por abaixo essa muralha.

sexta-feira, 8 de abril de 2016

A palavra mais linda do mundo


Como o sonho, a poesia também condensa, sobrepõe, justapõe, associa, dissocia, inverte, aumenta, reduz, desfoca, deforma e assim sucessivamente. A verdade da poesia é também irmã da verdade do sonho. Por isso é um tanto ingênua, em se tratando de ambos, a pergunta: "Aconteceu, mesmo"?

Vladimir Kush, Pôr de sol no oceano.

Tudo que acontece no sonho e na poesia é verdade: verdade do sonho e verdade da poesia. Porém, muitos hão de concordar, embora verdades ambíguas, é mais fácil e prudente crer nessas duas do que naquelas que dizem pertencer à vida real. Por isso, uma vez tendo-se penetrado nas lógicas oníricas e poéticas, é praticamente impossível escapar-se de suas narrativas. por mais antinarrativas que pareçam, por mais ilógicas que sejam, por mais inverídicas também.


Porém, num sonho, somos tragados involuntariamente por sua narrativa, instaurada pelo sono e por mecanismos psíquicos longe ainda de serem desvendados. Na poesia, não. Vamos ao poema voluntariamente - ainda que por vezes instados por imposições sociais, como ocorre na vida escolar e acadêmica. Para que sejamos tragados pela narrativa do poema, precisamos, antes, tragá-la por mecanismos de leitura muito conhecidos de todos nós.

Do idioma ao vocabulário, da sintaxe às regras de pontuação e acentuação empregadas ou subvertidas, da organização das palavras na página aos jogos de linguagem etc., tudo é a um só tempo objeto de leitura e elemento de resistência. Somente quando vencidos totalmente os elementos de resistência - enigmas - é que, tornando-nos parte da própria narrativa que internalizamos concretamente no ato de ler, nos aproximamos da fruição, que no sonho é involuntária por natureza - talvez até mais que involuntária: compulsória.

Vladimir Kush, Cavalo de Troia.
Quando os elementos linguísticos de resistência do pema são plenamente assimilados e incorporados automaticamente no ato de ler, os encadeamentos e associações se deflagram na psicologia do leitor, também automaticamente, como nos sonhos.

E aqui observamos um mecanismo, agora, também involuntário: como no sonho (do qual podemos ser despertados, mas cujo encadeamento não podemos controlar) podemos interromper a fruição do poema simplesmente abandonando a leitura, mas não podemos controlar as associações que a fruição fará aflorar em nosso espírito, em nossas emoções, em nosso juízo.

Estamos, pois, diante de dois processos diversos que alcançam os mesmos efeitos, senão resultados: no sonho, é necessário estar-se dormindo, portanto inconsciente, para se estar completamente entregue a sua narrativa. Na poesia, é necessária a plenitude da consciência para, internalizada a narrativa, alcançar-se a plenitude da fruição, sobre a qual perdemos, então, o controle. Noutras palavras, a cerca entre sonho e poesia está no chão.


Jeosafá é escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria) e  em maio deste ano, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora.