JB foi despertado do flash back de entrevero
socialista pela música profundamente linda e profundamente melancólica que,
através da parede, chegava abafada a seus ouvidos, vinda do apartamento ao
lado.
Embalou-se por alguns segundos na névoa de notas
melodiosas, plásticas e entorpecedoras, levantou-se da banqueta, deu chauzinho
para as fotografias do espelho e foi à campainha da vizinha, importuná-la
talvez.
̶
É você, Jão.
̶
Quem podia ser?
̶
Fala.
̶
É essa música. Lembra de quando eu era pequeno e ficava
vendo minha mãe lavar roupas no tanque.
̶
Mozart lembra sua mãe lavadeira?
̶
É. Ela punha LPs de música clássica numa vitrola
portátil para ouvir enquanto lavava roupas. Desde essa época, Mozart para mim
combina com sabão em pó e alvejante. Até hoje, quando ponho a roupa na máquina
de lavar, ligo o rádio em estação de música clássica para abafar o som da
trepidação dela.
̶
Mas não estou lavando roupa, estou passando. Pega café
na garrafa térmica, senta em algum lugar e fica quieto, que gosto de passar
roupa ouvindo Mozart.
̶
Tá.

Nenê, ali, concentrada nas volutas barrocas da
sinfonia, a alisar a roupa amorosamente era todas as mulheres de Itaquera,
todas as mulheres pobres do mundo, todas as mulheres trabalhadoras havidas e
por haver, na lida de tornar a roupa mais macia para se vestir e a vida mais
digna para se viver.
Deu um nó na garganta do cineasta, que observava a
companheira como se ela fizesse parte da orquestra em transe na execução dos
movimentos sinfônicos.
O primeiro andamento muito alegre da sinfonia número
quarenta avançava célere, com Nenê exibindo virtuosos solos de ferro quente
sobre camisetas de malha e calças de algodão. Jeans, regatas, camisas de todas
as cores, fronhas ganhavam aparência de novas. Que dignas, que macias, que
mozarteanas, que... humanas.
Um toque do dedo indicador de Nenê fez a música
saltar. Agora era a Pequena Serenata Noturna.
As pilhas de roupas amassadas iam se reduzindo,
enquanto as pilhas de roupas alisadas iam crescendo. Peças mais delicadas iam
direto para cabides pendurados no varal provisório que cruzava a sala. Peças de
gaveta, iam sendo dobradas com mãos de violinista.
Agora, a parte mais difícil, a que a mãe moça de
João mais ouvia, ela que chorava sobre a água do tanque nesse momento tão lindo
e triste: o do Andante do Concerto 21 para piano.

A namorada alisava o pano, erguia a face, olhava
através da janela do apartamento, cujo vidro aparava o chuvisco, e baixava
novamente os olhos para a tábua de passar roupas. Faltava pouco, mas a
expressão de cansaço somada à pungência do Andante tornavam o final de domingo
uma peça interminável de beleza, angústia e atemporalidade.
As gotículas a cintilar no vidro da janela à luz de
neon da rua lembravam o braço da vitrola a deslizar nas faixas lustrosas do LP
de vinil, no qual um pouco de água da torneira sempre respingava.
̶
Sabe por que ouço Mozart quando passo roupa, Jão?
̶
Não dá pra saber o que uma mulher pensa, nunca.
̶
Odeio passar roupa, mas Mozart torna tudo leve, tudo
digno, tudo suave. Quando desperto do transe, passei todas as pilhas. Com
certeza, Mozart amava as lavadeiras.
João pensou que sua mãe
também talvez odiasse lavar e passar roupa. Quem garante que o que a fazia
derramar lágrimas na água do tanque não fosse a música do gênio barroco, mas o
ódio da vida idiota em comparação com a música celestial?
̶
Vem cá.
Nenê levou o namorado pela
mão à janela, abriu o vidro para o reflexo interno não atrapalhar a visão e
apontou com o dedo indicador da mão direita a noite de chuvisco.
̶
Olha para todas aquelas janelas.

̶
Elas não conhecem Mozart, Jão.
João baixou os olhos,
certo de que a vida sem arte verdadeira não tem a menor chance de ser digna:
̶
Mas tem uma beleza de cinema nisso que elas estão
fazendo, que você está fazendo...
̶
Você só consegue pensar em termos de imagem, de cinema?
̶
Acho que sim. Desde criança, quando o sol era para mim
uma borra de luz amarela, alaranjada, depois avermelhada, afundando entre os
morros do algodoal.
No CDPlayer, o Segundo Movimento do Concerto para
Clarinete estendia um Mozart humano, morno, suave e tristonho. Tangidas pelo
vento, gotículas de chuvisco iluminavam-se próximo às luminárias de neônio,
depois, sumiam-se na sombra.
Findo o Concerto para Clarinete, silêncio de
prelúdio, quando a máquina busca o início da próxima trilha. Pronto, o leitor
digital encontrou o que procurava, e um doce, gotejado, pungente som invadiu a
atmosfera do pequeno apartamento como um vapor de água subido de ferro quente.
JB moveu-se lento no espaço exíguo e apanhou o
estojo do disco. Parou os olhos na trilha do Concerto para Piano em Dó Maior,
KV 427, número 21, Andante.
Confirmada a dúvida que espiralara ao compasso da harmonia
impregnante, retornou a seu lugar, ao lado de uma Nenê cismada com as silhuetas
escuras e ágeis nas janelas semiluminadas.
̶
Isso é cinema ou não é?
̶
Não, não é não, Jão. Olha direito.
Nas janelas dos prédios envoltos
na noite, silhuetas dançantes entre pilhas de roupas formavam um teatro mágico
de sombras ao final de um domingo chuvisquento, melancólico mas não perdido em
vãs divagações.
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