segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Mozart das lavadeiras




JB foi despertado do flash back de entrevero socialista pela música profundamente linda e profundamente melancólica que, através da parede, chegava abafada a seus ouvidos, vinda do apartamento ao lado.
Embalou-se por alguns segundos na névoa de notas melodiosas, plásticas e entorpecedoras, levantou-se da banqueta, deu chauzinho para as fotografias do espelho e foi à campainha da vizinha, importuná-la talvez.
JB fez o que Nenê mandou. A mãe no tanque e a namorada na mesa de passar roupas se sobrepunham, condensadas pela música diluente de Mozart. Fosse qual fosse o dia da semana, aquele momento era um domingo à noite, desmaiado, perdido no tempo, ou melhor, solto num lapso atemporal.
Nenê, ali, concentrada nas volutas barrocas da sinfonia, a alisar a roupa amorosamente era todas as mulheres de Itaquera, todas as mulheres pobres do mundo, todas as mulheres trabalhadoras havidas e por haver, na lida de tornar a roupa mais macia para se vestir e a vida mais digna para se viver.
Deu um nó na garganta do cineasta, que observava a companheira como se ela fizesse parte da orquestra em transe na execução dos movimentos sinfônicos.
O primeiro andamento muito alegre da sinfonia número quarenta avançava célere, com Nenê exibindo virtuosos solos de ferro quente sobre camisetas de malha e calças de algodão. Jeans, regatas, camisas de todas as cores, fronhas ganhavam aparência de novas. Que dignas, que macias, que mozarteanas, que... humanas.
Um toque do dedo indicador de Nenê fez a música saltar. Agora era a Pequena Serenata Noturna.
As pilhas de roupas amassadas iam se reduzindo, enquanto as pilhas de roupas alisadas iam crescendo. Peças mais delicadas iam direto para cabides pendurados no varal provisório que cruzava a sala. Peças de gaveta, iam sendo dobradas com mãos de violinista.
Agora, a parte mais difícil, a que a mãe moça de João mais ouvia, ela que chorava sobre a água do tanque nesse momento tão lindo e triste: o do Andante do Concerto 21 para piano.
Nenê, firme na lida do ferro quente, tornou-se vaga, distante, nostálgica. Ou João estava efetivamente apaixonado, ou Nenê era a mulher mais linda mundo, ou Mozart revelava a beleza escondida sob o pano turvo da realidade, ou era tudo isso junto ao mesmo tempo.
A namorada alisava o pano, erguia a face, olhava através da janela do apartamento, cujo vidro aparava o chuvisco, e baixava novamente os olhos para a tábua de passar roupas. Faltava pouco, mas a expressão de cansaço somada à pungência do Andante tornavam o final de domingo uma peça interminável de beleza, angústia e atemporalidade.
As gotículas a cintilar no vidro da janela à luz de neon da rua lembravam o braço da vitrola a deslizar nas faixas lustrosas do LP de vinil, no qual um pouco de água da torneira sempre respingava.
João pensou que sua mãe também talvez odiasse lavar e passar roupa. Quem garante que o que a fazia derramar lágrimas na água do tanque não fosse a música do gênio barroco, mas o ódio da vida idiota em comparação com a música celestial?
Nenê levou o namorado pela mão à janela, abriu o vidro para o reflexo interno não atrapalhar a visão e apontou com o dedo indicador da mão direita a noite de chuvisco.
Em cada uma, num conjunto habitacional apinhado de prédios, uma mulher esfalfada, com pilhas maiúsculas de roupas para passar, encerrava o domingo melancólico.
João baixou os olhos, certo de que a vida sem arte verdadeira não tem a menor chance de ser digna:
No CDPlayer, o Segundo Movimento do Concerto para Clarinete estendia um Mozart humano, morno, suave e tristonho. Tangidas pelo vento, gotículas de chuvisco iluminavam-se próximo às luminárias de neônio, depois, sumiam-se na sombra.
Findo o Concerto para Clarinete, silêncio de prelúdio, quando a máquina busca o início da próxima trilha. Pronto, o leitor digital encontrou o que procurava, e um doce, gotejado, pungente som invadiu a atmosfera do pequeno apartamento como um vapor de água subido de ferro quente.
JB moveu-se lento no espaço exíguo e apanhou o estojo do disco. Parou os olhos na trilha do Concerto para Piano em Dó Maior, KV 427, número 21, Andante.
Confirmada a dúvida que espiralara ao compasso da harmonia impregnante, retornou a seu lugar, ao lado de uma Nenê cismada com as silhuetas escuras e ágeis nas janelas semiluminadas.
Nas janelas dos prédios envoltos na noite, silhuetas dançantes entre pilhas de roupas formavam um teatro mágico de sombras ao final de um domingo chuvisquento, melancólico mas não perdido em vãs divagações.


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Era uma vez no meu bairro
Zona Norte e Zona Leste
www.eraumaveznomeubairro.blogspot.com

domingo, 4 de setembro de 2011

Era uma vez no meu bairro - Zona Norte e Zona Leste

Há mais de vinte e cinco anos iniciei minha pesquisa por bairros de São Paulo. Obviamente, a pesquisa empreendida para fins de produção artística, por sua natureza, tem caráter e métodos próprios, que muitas vezes não coincidem com a pesquisa científica.

Coletei muita história oral, algumas memorialísticas, outras, fruto da invenção de quem contou. Mas coletei também imagens, ambientações, luzes, fotos de ruínas, de rostos, de ruas vazias, de tardes de chuvisco.

Em 1996 publiquei um resultado parcial dessa pesquisa a um tempo documental e sentimental: o volume de contos O Atirador de facas. Nesse volume de contos, os narradores mergulham de ponta cabeça em histórias da existência transtornada da metrópole. Há contos humorísticos, sardônicos, irônicos, dramáticos, poéticos que reviram as entranhas de personagens cujas vidas simbólicas foram inventadas a partir de fragmentos de conversas ouvidas na rua, em ônibus, em trens do metrô, à saída de um café. O conto mais emblemático desse resultado parcial é “Trabalhar em São Paulo”, que já rendeu roteiro de filme de curta metragem.

Um segundo resultado parcial dessa pesquisa do paulistano de todas as naturalidades e nacionalidades é o volume de poemas Dois poetas paulistanos, de 2002.  Nesse livro, poemas gráficos projetam, na forma de sombra, poemas líricos sobre calçadas do centro da cidade, ou, na forma de respingos, véu de chuva sobre telhados.

Foram dois passos importantes para um salto mais arriscado, preparado longamente, com paciência, e que, tão logo foi publicado Dois poetas paulistanos, foi dado: a produção de um ciclo de romances sobre a cidade, suas tragédias e sonhos, a partir da visão das regiões e bairros.

Já em 2007 planejei esse ciclo e iniciei a redação de Era uma vez no meu bairro – ZONA NORTE, que escrevi durante o ano de 2008 e publiquei em 2009, em formato de bolso. O livro fui muitíssimo bem recebido pelos leitores e sua edição inicial de dois mil exemplares esgotou-se rapidamente.

Apresentado o projeto do ciclo aalgumas editoras, a Nova Alexandria demonstrou entusiasmo em publicar todos os demais romances do ciclo, porém, em novo formato, mais nobre, mais vistoso, e com capas que são verdadeiras obras de arte, inclusive o ZONA NORTE.

Assim, minha pesquisa histórico-sentimental sobre São Paulo e sua gente, a partir dos olhos, da lógica e dos sentimentos dos moradores de bairros e regiões da capital, encontrou nessa editora, que tem em seu catálogo clássicos da literatura universal e brasileira em edições primorosas, o impulso necessário para tão largo e ousado salto.

Disso resulta que os volumes ZONA NORTE e ZONA LESTE serão lançados em outubro deste ano de 2011, e o cronograma de produção e publicação dos demais volumes ZONA SUL, ZONA OESTE e CENTRO já foi estabelecido: um lançamento a cada seis meses, até o último, em maio de 2013 – respectivamente maio e outubro de 2012 e maio de 2013.

Durante a redação dos dois primeiros romances, Zona Norte e Zona Leste, uma intuição que moveu a pesquisa se confirmou: se tivermos olhos para ver e coração para sentir, as histórias mais espetaculares podem ser captadas e registradas a partir uma simples volta no bairro em que se mora ou trabalha.

Nele, há o egoísta e sua solidão, o menino afundado no tédio de uma tarde de ruas vazias, sem ninguém para brincar, a senhora transida de dor a ir receber o auxílio funeral de seu filho, o adolescente, mochila às costas, curtindo seu sonho de jogador de futebol...

Evidente, há ruas mal varridas, outras descuidadas, e aquelas sempre congestionadas, nas quais os ocupantes dos carros de passeio e dos ônibus superlotados compartilham a sensação de impotência em face de um tempo de vida precioso jogado fora.

Também há os conflitos, os dramas, as tragédias, que se observadas pelo ângulo da ficção não são menos dolorosas, ao menos são compartilháveis – e, concordando com o poeta, é sempre melhor sofrer cantando do que sofrer calado.

Porém, tão certo quanto por detrás das paredes mal pintadas e sem reboco borbulha a vida, há também aí sonhos e esperanças, que resistem a tudo: ao córrego infecto a pôr tudo a perder na primeira enchente, ao político oportunista, à polícia violenta, aos bandidos sanguinários.

Ao escrever esses romances, minha intuição se confirmou: as histórias incríveis, lindas ou perturbadoras, moram perto de nós. Por fala nisso, já conversou com o porteiro do seu prédio hoje?


LANÇAMENTO

Era uma vez no meu Bairro
ZONA NORTE – Nova Edição.
 ZONA LESTE – Inédito.
Dia 18 de outubro de 2011.
Terça-Feira - 19:30h
Livraria do Espaço Unibanco de Cinema
Rua Augusta - São Paulo - SP

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Os flagelados do vento leste, de Manuel Lopes

Sob o signo da ambiguidade*

As menções que se fazem ao romance Os flagelados do vento leste, do escritor caboverdiano Manuel Lopes, frequentemente estabelecem relações diretas entre ele e obras de autores brasileiros. Todavia, essas menções não são unânimes nem quanto aos autores, nem quanto às obras, nem quanto às classificações, nem quanto à natureza dessas relações (se de influência ou de livre apropriação).

A imprecisão no estabelecimento de tais relações tende a provocar uma distorção de juízo relativa a Os flagelados do vento leste: qualidades que lhe dão sentido como peça relevante de uma literatura específica do macrossistema das literaturas de língua portuguesa acabam relegadas a um segundo plano.

Esse reconhecimento de especificidade se vê perturbado por aproximações inescapavelmente hierárquicas, que alternam Brasil e Portugal na posição de matrizes culturais:

As idéias, já ultrapassadas, de Gilberto Freyre contribuíram, nos anos 40 e 50, para uma nova ideologia brasileira para exportação e que servia os interesses da burguesia nacional ao passo que dava certo prestígio ao Brasil na arena internacional. Assim compreendemos porque Balthazar Lopes e aquele grupo reduzido de amigos, que chegaram à maturidade intelectual nos anos 30, se viam tão inspirados pelo lusotropicalismo quanto limitados pela sua incapacidade de chegar a um tipo de compromisso entre o status político e a autonomia sócio-cultural do arquipélago. (Hamilton, Russel G. Literatura africana, literatura necessária. Lisboa, Edições 70, 1984, p. 98);

 (...) com a sua idéia do sucesso de um passado legítimo, de alguma maneira semelhante ao do Brasil, os intelectuais caboverdianos olhavam para o país sul-americano como um modelo e como uma sociedade irmã. (Idem, p. 122);

 (...) Os jovens do grupo’Certeza’ lançaram a sua revista sob a influência mais identificável do neo-realismo português e brasileiro (no caso do Brasil era uma questão da continuada e mais intensa influência dos nordestinos).(Idem, p. 125).

A busca de fontes de influência orienta não apenas a leitura de críticos, que visam estabelecer laços entre culturas, mesmo quando isso não resulte em hierarquização cultural: também os ficcionistas tendem a essa perspectiva, mesmo quando isso explique pouco a particularidade de suas obras:

Em Março de 1933, Balthazar Lopes escrevia no primeiro número do jornal semioficial Notícia de Cabo Verde que os cabo-verdianos deveriam ser ‘intransigentemente regionalistas’ para serem ‘inteligentemente portugueses’. Cada um poderia interpretar esta afirmação à sua maneira (Davidson, Basil. As ilhas afortunadas. Lisboa, Caminho, 1988, p. 67).

A aceitação desse ponto de vista – sobretudo de antemão – causa sérios prejuízos para o estudo concreto das obras, pois as enforma aprioristicamente num programa determinado.

Com relação à obra de Manuel Lopes, dois rótulos já se vão cristalizando, na senda do estabelecimento de fontes de influências e na de uma classificação literária peremptória, não sem implicações para sua recepção: o de que teria relação direta com o regionalismo nordestino brasileiro e o de que lhe cabe comodamente a classificação de neo-realista.

A leitura orientada pelo primeiro desses rótulos enquadra a obra do escritor caboverdiano sob o raio de influência estilística de uma das tendências do modernismo brasileiro; a que se faz direcionada pelo segundo, coloca-a também na órbita do neo-realismo português. Ou seja, sob dependência de duas literaturas, dois sistemas literários de língua portuguesa.

Quanto ao neo-realismo de Manuel Lopes e ao seu débito para com os escritores do chamado regionalismo nordestino brasileiro, vejamos o que já se observou, particularmente no tocante ao seu romance mais famoso:

Os Flagelados’ é um romance letúrgico-gótico (sic) algo na tradição de certos romances pós-realistas e positivistas, como o Canaã (1901) de Graça Aranha (1868-1931). Semelhante a esse romance brasileiro, Flagelados contém cenas arrepiantes de tragédias, crimes hediondos e sortilégios contados num estilo supra-realista e operático (sic) ( Hamilton, Russel . Cf. op. cit. 1984,  p. 155).

Assim como há espaço para considerá-lo neo-realista, há para considerá-lo outra coisa. Pós-realista seria sinônimo de pré-modernista? Além do mais, Canaã, versando sobre a imigração alemã no Estado do Espírito Santo, tampouco se enquadra nos limites da literatura regional nordestina.

A bem da verdade, a obra publicada de Manuel Lopes não constitui uma unidade homogênea desprovida de contradições e ambivalências. Por isso, classificações e aproximações taxativas explicam pouco de sua natureza. Tanto sua narrativa quanto suas técnicas só podem ser analisadas como resultantes parciais de um processo de maturação autoral coincidente com um momento bastante particular da vida de Cabo Verde, o da gestação da independência nacional, com toda sua complexidade, marchas, contra-marchas, contradições, antagonismos, soluções inesperadas e impasses políticos, econômicos, teóricos, ideológicos, culturais, lingüísticos e literários.

Se a aceitação prévia de classificações para fins de estudo muitas vezes resulta em erro, que dizer então quando elas nem são concordantes, como no caso particular da obra de Manuel Lopes?

De qualquer maneira, a quem caberia a responsabilidade por essas classificações por vezes díspares? Ao trabalho crítico? À obra do autor, ela mesma propícia a linhas divergentes de reflexões?

Creio que Os flagelados do vento leste, obra que maior prestígio angariou para Manuel Lopes, necessita ser compreendida como ponto de convergência das contradições e ambigüidades do próprio autor: neo-realista ou “gótico”, ou os dois e algo mais? Regionalista português? Nacionalista?

Ao propor o êxodo do excesso populacional como saída para a situação catastrófica do homem das ilhas, ele nos levaria a entendê-lo efetivamente como regionalista português:

A emigração foi o caminho que o Cabo-Verdiano buscou, não apenas quando era possível e fácil (lembre-se que a emigração começou com as baleeiras americanas, já no segundo quartel do século passado) mas agora e sempre, no objectivo de solucionar, à sua maneira, seus impasses financeiros. O caminho indicado, afinal, em circunstâncias tais como as presentes. Todavia, embora contrariada por toda espécie de obstáculos, a emigração representa, hoje, um contributo efectivo traduzido em divisas entradas e em melhoria do nível de vida das classe pobres com incidência no comércio (Lopes, Manuel. “Problemas e realizações”. Comunidades portuguesas. Revista trimestral da União das Comunidades de Cultura Portuguesa, no. 22, abril/1971, p. 33).

Já ao dar voz, por meio da linguagem literária, ao homem caboverdiano, poderia ser compreendido como um dos fundadores da identidade caboverdiana: 

[‘Galo cantou na baía’ é o] primeiro conto da literatura caboverdiana (Abdala Jr., Benjamin. (“Estado e nação nas literaturas de língua portuguesa: perspectiva política e cultural. Sentido que a vida faz – estudos para Oscar Lopes. 1 ed. Porto, 1997, p. 245.).

A obra de Manuel Lopes, Os flagelados do vento leste tomada como polo de comparação literária, ganha mais importância se problematizada nos diálogos com obras, autores e estilos por ela mesma propostos, do que se sua natureza específica e não poucas vezes contraditória for reduzida a classificações taxativas e submetida a uma sempre discutível contabilidade de influências que, mesmo quando estabelecidas, pouco elucidam.

O livro foi adaptado com o mesmo título para o cinema em 1987 por Antônio Faria.