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segunda-feira, 15 de abril de 2013

Flaubert é inocentado, mas por razões erradas

Selecionei alguns trechos do processo que envolveu Flaubert, quando da publicação de seu clássico Madame Bovary. O conjunto do processo faz parte da edição do romance publicado pela Editora Nova Alexandria (São Paulo, 2007), cuja tradução amplamente reconhecida e elogiada é de Fúlvia Moretto.


Tanto o libelo de acusação quanto a peça de defesa giram em torno de pretensas ofensas à moral pública e à religião. O promotor público acusa o romancista de imoral e de atentar contra a religião do Estado, enquanto o defensor o apresenta como um moralista da melhor cepa e de respeitador dos dogmas cristãos.

Ora, o judiciário, aqui também, se revela um teatro de gosto duvidoso, que nem de longe necessita quer da verdade (com o que devia se preocupar), quer da verossimilhança (que,no caso da literatura,  não é absolutamente de sua conta). Historicamente, para a "justiça" dos poderosos, uma história precária, contada de forma a dar álibi para Pilatos lavar as mãos, é o bastante.

É óbvio que a acusação contra o autor é uma forma ridícula de atores de segunda categoria (o promotor e a corte, que inclusive se arroga a prescrever na própria sentença o que deva ser a literatura), apanharem carona na notoriedade do escritor, o que obriga o defensor menos a provar a inocência de seu cliente e amigo, mais a livrá-lo da arapuca montada por invejosos, de má consciência e ainda pior caráter.

Seja como for, vão aí trechos que destaquei, entre outros que valem a pena conhecer, na mesma edição:

*     *     *

O Ministério Público
Ação do ministério público interposta pelo advogado Imperial, Sr. Ernest Pinard

Assinalo aqui duas coisas, senhores, uma pintura admirável sob o ponto de visa do talento, mas uma pintura execrável do ponto de vista da moral. Sim, o sr. Flaubert sabe embelezar suas pinturas com todos os recursos a arte, mas sem a cautela da arte. Não há nele nenhuma gaze, nenhum véu, é a natureza em toda sua nudez, em toda a sua crueza!

Insipidez no casamento, poesia no adultério! Ora é a degradação do casamento, ora é sua insipidez, mas é sempre a poesia do adultério. Eis, senhores, as situações que o sr. Flaubert gosta de pintar e infelizmente pinta bem demais.


A defesa
Defesa apresentada pelo acusado por meio do advogado sr. Sénard

O sr. Flaubert não é um homem que vos pinte um encantador de adultério para fazer em seguida chegar o deus ex machina; saltas-te com demasiada rapidez da página que lestes para a última. O adultério em sua obra é somente uma sequência de tormentos, de pesares, de rermosos; e além disso, chega a uma expiação final, assustadora.

O advogado de defesa citando Lamartine em entrevista com Flaubert:

Ao mesmo tempo que vos li sem restrição até a última página, censurei as últimas. Fizeste-me mal, fizeste-me literalmente sofrer! A expiação é proporcionalmente maior do que o crime; criastes uma morte horrível, assustadora! Geralmente uma mulher que mancha o leito conjugal deve esperar uma expiação, mas esta é horrível, é um suplício como nunca se viu. Fostes muito longe, fizeste-me mal aos nervos; este poder de descrição, nos últimos instantes de morte deixou-me um indizível sofrimento!

A sentença

Visto que Gustave Flaubert protesta seu respeito pelos bons costumes e por tudo que está ligado à moral religiosa [...];

Que ele somente cometeu o erro de perder às vezes de vista as regras que todo escritor que se respeita nunca deve ultrapassar e de esquecer que a literatura, como a arte, para cumprir bem o que é chamada a produzir não somente deve ser casta e pura em sua forma e em sua expressão;


O tribunal os absolve [Flaubert, o escritor; Pichat, o editor; e Pillet, o gráfico!] da incriminação de que foram acusados e os dispensa sem custos.


*     *     *

Assim, a sentença favorável a Flaubert, seu editor e o gráfico não se deu pelos motivos justos, quais sejam o de que não o romance ou seu autor são imorais, mas o de que a sociedade burguesa é que é imoral, e o de que há imoralidade no romance é o que vazou dessa sociedade para a literatura. Porém, não se diga que a sentença se deu por erro judicial: se deu pelo caráter farisaico do judiciário burguês, que vige hoje pelo mundo, quem há de negar?

Nesse caso, menos mau que o farisaísmo tenha resultado em justiça, ainda que enviesada, ao grande escritor francês



domingo, 4 de setembro de 2011

Era uma vez no meu bairro - Zona Norte e Zona Leste

Há mais de vinte e cinco anos iniciei minha pesquisa por bairros de São Paulo. Obviamente, a pesquisa empreendida para fins de produção artística, por sua natureza, tem caráter e métodos próprios, que muitas vezes não coincidem com a pesquisa científica.

Coletei muita história oral, algumas memorialísticas, outras, fruto da invenção de quem contou. Mas coletei também imagens, ambientações, luzes, fotos de ruínas, de rostos, de ruas vazias, de tardes de chuvisco.

Em 1996 publiquei um resultado parcial dessa pesquisa a um tempo documental e sentimental: o volume de contos O Atirador de facas. Nesse volume de contos, os narradores mergulham de ponta cabeça em histórias da existência transtornada da metrópole. Há contos humorísticos, sardônicos, irônicos, dramáticos, poéticos que reviram as entranhas de personagens cujas vidas simbólicas foram inventadas a partir de fragmentos de conversas ouvidas na rua, em ônibus, em trens do metrô, à saída de um café. O conto mais emblemático desse resultado parcial é “Trabalhar em São Paulo”, que já rendeu roteiro de filme de curta metragem.

Um segundo resultado parcial dessa pesquisa do paulistano de todas as naturalidades e nacionalidades é o volume de poemas Dois poetas paulistanos, de 2002.  Nesse livro, poemas gráficos projetam, na forma de sombra, poemas líricos sobre calçadas do centro da cidade, ou, na forma de respingos, véu de chuva sobre telhados.

Foram dois passos importantes para um salto mais arriscado, preparado longamente, com paciência, e que, tão logo foi publicado Dois poetas paulistanos, foi dado: a produção de um ciclo de romances sobre a cidade, suas tragédias e sonhos, a partir da visão das regiões e bairros.

Já em 2007 planejei esse ciclo e iniciei a redação de Era uma vez no meu bairro – ZONA NORTE, que escrevi durante o ano de 2008 e publiquei em 2009, em formato de bolso. O livro fui muitíssimo bem recebido pelos leitores e sua edição inicial de dois mil exemplares esgotou-se rapidamente.

Apresentado o projeto do ciclo aalgumas editoras, a Nova Alexandria demonstrou entusiasmo em publicar todos os demais romances do ciclo, porém, em novo formato, mais nobre, mais vistoso, e com capas que são verdadeiras obras de arte, inclusive o ZONA NORTE.

Assim, minha pesquisa histórico-sentimental sobre São Paulo e sua gente, a partir dos olhos, da lógica e dos sentimentos dos moradores de bairros e regiões da capital, encontrou nessa editora, que tem em seu catálogo clássicos da literatura universal e brasileira em edições primorosas, o impulso necessário para tão largo e ousado salto.

Disso resulta que os volumes ZONA NORTE e ZONA LESTE serão lançados em outubro deste ano de 2011, e o cronograma de produção e publicação dos demais volumes ZONA SUL, ZONA OESTE e CENTRO já foi estabelecido: um lançamento a cada seis meses, até o último, em maio de 2013 – respectivamente maio e outubro de 2012 e maio de 2013.

Durante a redação dos dois primeiros romances, Zona Norte e Zona Leste, uma intuição que moveu a pesquisa se confirmou: se tivermos olhos para ver e coração para sentir, as histórias mais espetaculares podem ser captadas e registradas a partir uma simples volta no bairro em que se mora ou trabalha.

Nele, há o egoísta e sua solidão, o menino afundado no tédio de uma tarde de ruas vazias, sem ninguém para brincar, a senhora transida de dor a ir receber o auxílio funeral de seu filho, o adolescente, mochila às costas, curtindo seu sonho de jogador de futebol...

Evidente, há ruas mal varridas, outras descuidadas, e aquelas sempre congestionadas, nas quais os ocupantes dos carros de passeio e dos ônibus superlotados compartilham a sensação de impotência em face de um tempo de vida precioso jogado fora.

Também há os conflitos, os dramas, as tragédias, que se observadas pelo ângulo da ficção não são menos dolorosas, ao menos são compartilháveis – e, concordando com o poeta, é sempre melhor sofrer cantando do que sofrer calado.

Porém, tão certo quanto por detrás das paredes mal pintadas e sem reboco borbulha a vida, há também aí sonhos e esperanças, que resistem a tudo: ao córrego infecto a pôr tudo a perder na primeira enchente, ao político oportunista, à polícia violenta, aos bandidos sanguinários.

Ao escrever esses romances, minha intuição se confirmou: as histórias incríveis, lindas ou perturbadoras, moram perto de nós. Por fala nisso, já conversou com o porteiro do seu prédio hoje?


LANÇAMENTO

Era uma vez no meu Bairro
ZONA NORTE – Nova Edição.
 ZONA LESTE – Inédito.
Dia 18 de outubro de 2011.
Terça-Feira - 19:30h
Livraria do Espaço Unibanco de Cinema
Rua Augusta - São Paulo - SP

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Fora da Ordem e do Progresso, Luiz e Simone Ruffato (org.s)

A literatura é uma arte, mas é também uma forma de conhecimento do mundo. Não por acaso Freud estudou profundamente a literatura clássica grega para formular suas teorias sobre a psicologia humana e, por essa mesma razão, com frequência historiadores, sociólogos e antropólogos visitam as páginas da ficção para conferir nesse meio suas intuições, derivadas de anos de pesquisa documental, bibliográfica e de campo.

Naturalmente, no mundo da literatura as representações humanas, sociais, históricas e geográficas, não obstante a lagarta de que se criaram, são já borboletas, umas acinzentadas, outras monocromáticas, outras multicores, umas silenciosas e discretas, outras a estalar as asas enquanto voam.

Há quem se aborreça com a alegoria zoológica do parágrafo anterior, porém, foi a que melhor me acorreu para tornar visível um processo orgânico da produção literária: o de metamorfose da realidade.

Por mais realista que se apresente ao leitor um conto ou um romance, a realidade nele é uma produção psíquica do autor, registrada em letras pretas sobre páginas em banco. A realidade de que o autor parte para criar sua ficção é ainda uma lagarta, que só se converterá em borboleta após a hibernação no casulo de sua subjetividade e o rompimento dele por meio de técnicas mais ou menos comuns à sua época e de artimanhas de estilo, próprias de cada qual.

Dito isto, Fora da Ordem e do Progresso, volume de contos brasileiros organizado por Luiz e Simone Ruffato, embora enfatize a memória da lagarta hibernada no inverno de ditaturas e vícios políticos, é revoada de borboletas numa primavera de liberdade expressiva. Mais precisamente, dezessete delas:

João Anzanello Carrascosa, Júlio César Monteiro Martins, Luiz Fernando Emediato, Domingos Pellegrini, João Gilberto Noll, Luiz Vilela, Sérgio Sant’ Anna, Roberto Drummond, Nélida Pignon, Ivan Ângelo, Ignácio de Loyola Brandão, Lygia Fagundes Telles, Otto Lara Resende, Murilo Rubião, José J. Veiga, José Cândido de Carvalho, Marques Rabelo, Alcântara Machado, Dyonélio Machado, Mário de Andrade, Monteiro Lobato, Lima Barreto, João do Rio, Alcides Maya, Arthur de Azevedo, Machado de Assis e Bernardo Guimarães.

Como se pode observar na ordem em que os autores são citados acima, o critério de organização da coletânea é cronológico, e invertido: do presente para o passado. Assim, no início do livro está representada a última década do século XX, ao fim dele, o século XIX comparece.

As mazelas de nosso processo histórico, sociológico e, com mais ênfase, político, são flagradas ora com humor, ora com profunda indignação, mas sempre com muita qualidade estética, em que surpresas nos enredos e luminosidades de linguagem poética pontuam sempre.

O prefácio, dos organizadores da antologia, sucinto, preciso, direto e muitíssimo elucidativo explica:

“Há distintas maneiras de nos aproximarmos da História.  (...) Para esta antologia, propomos uma outra apreensão, a da História como sincronicidade. Ou seja,  entendida como acontecimentos simultâneos no espaço e no tempo, descompassada e inconclusa, que se constrói à medida que ocorre, protagonizada por anônimos personagens destituídos de heroísmos, tragicamente marginais à cronologia, agentes e pacientes sem o saber. Histórias que são e não são parte da História do Brasil. Histórias fora da ordem e do progresso”.

Para confirmar esse ponto de vista dos organizadores da coleção, é interessante listar as primeiras palavras dos contos iniciais do volume:

“Escurecia. As montanhas, havia pouco iluminadas pelo sol, em agora sombras suaves” (Travessia, João Anzanello Carrascosa).

“Meu amigo Pedro morreu de cabeça para baixo, com uma galinha ou uma fruta madura” (A Posição, Júlio César Monteiro Martins).

“Nós acordamos cedo e vestimos os nossos uniformes. Nossos pais nos recomendaram prudência e ouvimos seus conselhos” (A data magna do nosso calendário cívico, Luiz Fernando Emediato).

“O menino balançava na rede, com pijama de flanela. Não podia sair ali da varanda. Não podia pular. Não podia correr” (O dia em que morreu Getúlio Vargas, Domingos Pellegrini).

O leitor pode optar por outra ordem de leitura, mas seguir aquela proposta pelos organizadores da coleção não deixa de ser uma opção bastante feliz, pois as formas literárias de representação de nossa história se vão sucedendo como se o ponto de vista do  leitor mergulhasse em um túnel do tempo.

Fatos históricos de repercussão são abordados não pela lente grande-angular das efusivas comemorações ufanistas do período da ditadura militar, mas, a título de exemplo, por uma lente subjetiva que acompanha os passos de gente comum, encurralada entre bandeirolas da festa da Independência e fuzis que as obrigam a ser patriotas em massa.

Num outro exemplo, a tortura é captada não pela ótica de um estoicismo supra-humano, mas pela de um heroísmo chão, coerente, de um realismo cru, pelos olhos do personagem que descreve a morte do amigo, pendurado pela pernas como um frango de frigorífico, num dos muitos porões de suplício que se proliferaram durante o Regime Militar brasileiro.

Daí podemos dizer que se trata de um mergulho na história? Sim, sem dúvida porém, com o devido cuidado de lembrar que a lagarta aqui é já borboleta: é a história pela lente da literatura, por mais convincentes que sejam essas 27 narrativas e o prefácio.

Mas alguém em sã consiciência afirmaria que a história, com  "h" minúsculo ou maiúsculo, prescinde da lente literária? Com efeito, a história, tenha ela o "h" que tiver, nua e crua, sem o aporte significativo da literatura, talvez seja a maior das ilusões.

FONTE: Fora da Ordem e do Progresso. Organização, apresentação e notas Luiz e Simonte Ruffato. São Paulo. Geração Editorial, 2004.