terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Pouca história, pouca mensagem, pouca arte

O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam é uma avalanche verborrágica e inverossímil em que o autor, a propósito da procissão de moradores de rua que deambula pelo centro de São Paulo, extravasa sua cultura intelectual e suas referências literárias. Além do verdadeiro TOC em que consiste as citações obsessivas de Erasmo, somam-se verbalizações onomásticas (de nomes próprios) que, a título de metonímia, poluem o texto como garrafas PET em leito de rio lento e congestionado pela enxurrada recebida dos afluentes.

Há um momento na leitura em que não é mais possível ignorar as citações onomásticas, cada vez mais reincidentes, por meio das quais os sentidos minguam até se estagnarem:

Erasmo de Rotterdam, Lutero, Leibnitz, Thomar More, São João Crisóstomo, Demóstenes, Van Gogh, Horácio, Terêncio, My funny Valentine, Billie Holiday, Platão, Kazantzakis, Tirésias, Michelangelo, Édipo, Jocasta, Einstein, Modigliani, Guimarães Rosa (via Diadorim), Biblia, Nelson Cavaquinho (via citação de verso de canção), Cinemateca, Mizoguchi (cineasta japonês), Bruno Schulz, Santo Anselmo, Cervantes (via citação de Dulcineia), Ariadne, John Ford (o cineasta), Sherazade, Bessie Smith (jazzista), Villa Lobos, Chet Baker, Alberto Nepomuceno, Johnny Merce, Tchaikovsky, Humphrey Bogard, Jesus Cristo, Otto Maria Carpeaux, santa Teresa, papa Adriano, Santo Antônio, Homero (via Ulisses), Caronte etc. etc. etc., com retornos exaustivos a vários deles.

Preso à frase do bilhete – pois este já desapareceu num furto – deixado pela “amada”, que há exatos dez anos mandou às favas o namorado chatonildo, o mendigo culto e abstêmio reporta ao interlocutor, que na prática é o leitor, seu discurso transtornado, que retorna sempre a poucos pontos de baliza, os quais comprem função de marcos limitadores a vedar o desenvolvimento temático, a exemplo das expressões “trouxe-mouxe”, “in totum” ou daquelas representativas de situações que lembram a amada - ou da palavra “Miserável”.

Trata-se de uma estratégia discursiva, sem dúvida, bem engendrada e que socorre o texto sempre que ele chega a algum beco sem saída. Mas é chato demais. Numa segunda leitura do livro, observamos que se trata de um jogo fácil e previsível, de uma máquina que produz sempre os mesmos movimentos – e que conta demais com a boa vontade do leitor para produzir efeitos melancólicos, humorados, críticos ou outros.
As citações onomásticas dirigem-se a um leitor em condições de desdobrar os sentidos embutidos nelas, porém a quantidade é tão grande que se convertem em exibição gratuita de ilustração do autor, em artifício retórico, em ornato barroco de eficácia discutível.

Se a evocação de Ulisses acrescenta à experiência do leitor em face do namorado chatonildo algo, Leibnitz, Horácio, Terêncio, Platão, Tirésias, Santo Anselmo, Tchaikovsky, Johnny Merce entre outros, só servem para conferir pedigree ao texto, uma vez que caberá ao leitor ao qual escapam algumas dessas referências o trabalho de descobrir do que se tratam – e uma vez que assim o faça, ele, o leitor, é que terá de atribuir ao texto um sentido que ele, o texto, não tem, pois esse conteúdo significativo é atinente à fonte de referência, não ao texto que o incorporou tão amiúde e cifradamente.

Essa é uma desgraça da chamada literatura pós-moderna: a citação da citação da citação. Há quem goste, porém, se excluirmos essas citações, miríades, que emprestam ao texto em que foram incorporadas seus sentidos, sejamos honestos, restará pouca história, pouca mensagem, pouca arte.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

A morte e a morte de Quincas Berro D'água

Caso Especial (Rede Globo, 1978). Direção: Walter Avancini; Música: Dori Caymmi; Elenco: Paulo Gracindo, Dionísio Azevedo, Dina Sfat, Flávio Migliaccio, Ana Maria Magalhães, Stênio Garcia, Antônio Pitanga.

Lançado em 1961 com amplo acolhimento de leitores e críticos, a novela A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água tornou-se uma das obras de Jorge amado mais festejadas, editadas e adaptadas para o cinema e a televisão. Em artigo escrito para o jornal Última Hora, do Rio de Janeiro, em 1959, que passou acompanhar a título de prefácio as seguidas reedições, Vinicius de Moraes considera-a uma obra prima do autor: “Em dois tentos simples, Jorge Amado acaba de escrever o que para mim é o melhor romance e a melhor novela da literatura brasileira: Gabriela, cravo e canela e A morte e a morte de Quincas Berro D’água”.
Filme (2010) Direção: Sérgio Machado; Roteiro: Sérgio Machado; Produtor: Mauricio Andrade Ramos e Walter Salles. ELENCO: Paulo José (Quincas); Luis Miranda (Pé de Vento); Frank Menezes (Curió); Flavio Bauraqui (Pastinha); Irandhir Santos (Cabo Martim); Marieta Severo (Manoela); Mariana Ximenes (Vanda); Vladmir Britcha (Leonardo); Walderez De Barros (Tia Marisa); Milton Gonçalves (Delegado Morais); Othon Bastos (Alonso).

Nessa novela curta, o autor articula a natureza popular das personagens com um enredo à beira do fantástico e uma linguagem enxuta, porém ambígua, agradável e leve. Nela, o previsível funcionário público Joaquim Soares da Cunha, marido, pai e cidadão cumpridor de seu papel social de burocrata estabilizado na sociedade, aos cinquenta anos joga tudo para alto, se entrega à boêmia e passa à perambulação, ébrio e em andrajos, pelas ruas da Bahia. Numa das bebedeiras, ganha o apelido que o acompanhará além da morte:  Quincas Berro D’água. A novela se inicia com seu cadáver em farrapos já estendido em um quarto insalubre de um beco baiano.

 Mesa do seminário comemorativo dos 100 anos de Jorge Amado, em 2012.

Na morte de Quincas, os parentes enxergam a oportunidade de resgatar no meio social o nome da família, maculado por suas orgias e por sua vida escandalosa. Para tanto, organizam um funeral à altura de um verdadeiro e honrado um ex-funcionário público.

No entanto, visitado em seu velório por antigos amigos de fuzarca (Curió, Negro Pastinha, Cabo Martim e Pé de Vento), que veem no ricto  estampado no rosto do cadáver um sorriso folia, Quincas termina sequestrado por eles e arrastado pelas ruas da Bahia em uma espécie de despedida gloriosa, hilária e pândega do mundo dos vivos.
A confusão se instaura, pois enquanto uns o juram morto, outros o veem passeando de braços dados com os companheiros de boêmia, entre gargalhadas e cusparadas de cachaça. A esbórnia se encerra no barco de Mestre Manuel, onde os amigos cumprem a suposta vontade do morto, levando-o em festa em pleno mar, ocasião em que um violento temporal se abate sobre o barco e encapela as águas, para onde o debochado Quincas resvala para sempre, enterrando no mar, consigo, a chance de a família ajustar contas com o falso verniz da sociedade.

Nesse destino de Quincas Berro D’água há uma certa metáfora do projeto literário do próprio Jorge Amado, que, à literatura enfatiotada e blasé, que sempre combateu, preferiu os personagens populares, os enredos apoiados na realidade dos trabalhadores e a crítica social – em que o humor se foi insinuando progressivamente ao longo da carreira do autor.

Referências bibliográficas

Amado, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro d’Água. In Os velhos marinheiros (o romance O capitão de longo curso), São Paulo: Martins, 1961.
Duarte, Eduardo Assis. Jorge Amado: romance em tempo de utopia. Natal: UFRN-Editora Universitária, 1995.
Gomes, Álvaro Cardoso. Jorge Amado. 2 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
Itazil Benício. Jorge Amado: retrato incompleto. Rio de Janeiro: Record, 1993.
Lafuente, Fernando Rodrigues (Coord.). Jorge Amado. Madri, Instituto de Cooperación Iberoamericana. 1987.
Martins, João de Barros. Jorge Amado: trinta anos de literatura. Rio de Janeiro, Record, 1993.
Raillard, Alice. Conversando com Jorge Amado.Trad. Annie Dymetaman. Rio de Janeiro, Record, 1991.
Táti, Miécio. Jorge Amado, vida e obra. Belo Horizonte, Itatiaia, 1961.
_________ O baiano Jorge Amado e sua obra. Rio de Janeiro, Record, 1980.
Tavares, Paulo. Criaturas de Jorge Amado. Dicionário de todos os personagens imaginários.... São Paulo, Livraria Martins Editora, s. d.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Um Mandela muito particular

Assista a entrevista à Opera Mundi sobre o legado de Mandela

O personagem que o leitor tem diante de si em O jovem Nelson Mandela é muito particular. Isto porque, na trilha dos acontecimentos extraordinários que envolveram a derrota final do apartheid na África do Sul e que repercutiram pelo mundo todo ao final do século XX, em sua voz ecoam vozes de poetas e de escritores, além de angústias de outros personagens mergulhados em dramas semelhantes. Assim, o leitor descobrirá, no Capítulo 3, intitulado “Luz para cegar”, que a luz a agredir os detentos da pedreira de calcário da ilha de Robben é irmã daquela reverberação torturante que ofende os olhos do sentenciado à pena de morte de O estrangeiro, de Albert Camus.

 Na voz do protagonista deste O jovem Mandela, reflexões sobre os impasses gerados pela luta contra o apartheid acolhem versos da “Canção amiga”, de Carlos Drummond de Andrade, no Capítulo 7, denominado “Universidade Mandela, uma aula”. A título de ilustração sobre a aventura dos portugueses pelo Cabo da Boa Esperança, hoje Cidade do Cabo, África do Sul, no Capítulo 8, “Universidade Mandela, outra aula”, o poema famoso “Mar portuguez”, de Fernando Pessoa, funciona como um marco da passagem de Bartolomeu Dias, em 1488, por esse ponto extremo sul do continente.

Quando a questão é pesar o drama do indivíduo instado a abrir mão do convívio familiar para enfrentar a luta contra o regime de segregação racial, no Capítulo 9, “Por quanto tempo pode ser prolongada a juventude”, versos de “Mensagem à poesia”, de Vinicius de Moraes, surgem na forma de prosa sutilmente modulada. No Capítulo 10, “Uma Johannesburg estranha demais”, uma cidade enevoada ecoa os “timbres tristes de martírios” do Livro azul, de Mário de Andrade. E em “Um homem não é uma ilha”, o Capítulo 11, a referência a Robinson Crusoé, de Daniel Defoe é direta.

Além dessas incrustações de fácil observação, ecos do Dostoiévski de Recordações da casa dos mortos (publicado pela Nova Alexandria) e do Graciliano Ramos de Memórias do cárcere podem ser rastreados por todo o texto, na forma de discurso indireto livre e de registro de fluxo de consciência, empregados tão magistralmente por ambos.

Assim, este O jovem Mandela que o leitor tem em mãos é ao mesmo tempo ficção e história, informação e condensação artística de expectativas, sonhos, frustrações e júbilo. Sua espinha dorsal é, sem dúvida, o personagem real de mesmo nome, mas este recebe a contribuição de outras vozes inventadas, representativas de dramas humanos igualmente verdadeiros.