O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam
é uma avalanche verborrágica e inverossímil em que o autor, a propósito da
procissão de moradores de rua que deambula pelo centro de São Paulo, extravasa
sua cultura intelectual e suas referências literárias. Além do verdadeiro TOC
em que consiste as citações obsessivas de Erasmo, somam-se verbalizações onomásticas (de
nomes próprios) que, a título de metonímia, poluem o texto como garrafas PET em
leito de rio lento e congestionado pela enxurrada recebida dos afluentes.
Há um momento na leitura em que não é mais possível ignorar
as citações onomásticas, cada vez mais reincidentes, por meio das quais os
sentidos minguam até se estagnarem:
Erasmo de Rotterdam, Lutero, Leibnitz, Thomar More, São João
Crisóstomo, Demóstenes, Van Gogh, Horácio, Terêncio, My funny Valentine, Billie Holiday, Platão, Kazantzakis, Tirésias,
Michelangelo, Édipo, Jocasta, Einstein, Modigliani, Guimarães Rosa (via
Diadorim), Biblia, Nelson Cavaquinho (via citação de verso de canção),
Cinemateca, Mizoguchi (cineasta japonês), Bruno Schulz, Santo Anselmo,
Cervantes (via citação de Dulcineia), Ariadne, John Ford (o cineasta),
Sherazade, Bessie Smith (jazzista), Villa Lobos, Chet Baker, Alberto
Nepomuceno, Johnny Merce, Tchaikovsky, Humphrey Bogard, Jesus Cristo, Otto
Maria Carpeaux, santa Teresa, papa Adriano, Santo Antônio, Homero (via Ulisses),
Caronte etc. etc. etc., com retornos exaustivos a vários deles.
Preso à frase do bilhete – pois este já desapareceu num
furto – deixado pela “amada”, que há exatos dez anos mandou às favas o namorado
chatonildo, o mendigo culto e abstêmio reporta ao interlocutor, que na prática
é o leitor, seu discurso transtornado, que retorna sempre a poucos pontos de
baliza, os quais comprem função de marcos limitadores a vedar o desenvolvimento
temático, a exemplo das expressões “trouxe-mouxe”, “in totum” ou daquelas representativas de situações que lembram a amada - ou da palavra “Miserável”.

As citações onomásticas dirigem-se a um leitor em condições
de desdobrar os sentidos embutidos nelas, porém a quantidade é tão grande que
se convertem em exibição gratuita de ilustração do autor, em artifício retórico,
em ornato barroco de eficácia discutível.
Se a evocação de Ulisses acrescenta à experiência do leitor
em face do namorado chatonildo algo, Leibnitz, Horácio, Terêncio, Platão,
Tirésias, Santo Anselmo, Tchaikovsky, Johnny Merce entre outros, só servem para
conferir pedigree ao texto, uma vez que caberá ao leitor ao qual escapam
algumas dessas referências o trabalho de descobrir do que se tratam – e uma vez
que assim o faça, ele, o leitor, é que terá de atribuir ao texto um sentido que
ele, o texto, não tem, pois esse conteúdo significativo é atinente à fonte de referência, não ao texto que
o incorporou tão amiúde e cifradamente.
Essa é uma desgraça da chamada literatura pós-moderna: a citação da citação da citação. Há
quem goste, porém, se excluirmos essas citações, miríades, que emprestam ao texto em que foram incorporadas seus sentidos, sejamos honestos, restará pouca história, pouca
mensagem, pouca arte.