segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

A morte e a morte de Quincas Berro D'água

Caso Especial (Rede Globo, 1978). Direção: Walter Avancini; Música: Dori Caymmi; Elenco: Paulo Gracindo, Dionísio Azevedo, Dina Sfat, Flávio Migliaccio, Ana Maria Magalhães, Stênio Garcia, Antônio Pitanga.

Lançado em 1961 com amplo acolhimento de leitores e críticos, a novela A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água tornou-se uma das obras de Jorge amado mais festejadas, editadas e adaptadas para o cinema e a televisão. Em artigo escrito para o jornal Última Hora, do Rio de Janeiro, em 1959, que passou acompanhar a título de prefácio as seguidas reedições, Vinicius de Moraes considera-a uma obra prima do autor: “Em dois tentos simples, Jorge Amado acaba de escrever o que para mim é o melhor romance e a melhor novela da literatura brasileira: Gabriela, cravo e canela e A morte e a morte de Quincas Berro D’água”.
Filme (2010) Direção: Sérgio Machado; Roteiro: Sérgio Machado; Produtor: Mauricio Andrade Ramos e Walter Salles. ELENCO: Paulo José (Quincas); Luis Miranda (Pé de Vento); Frank Menezes (Curió); Flavio Bauraqui (Pastinha); Irandhir Santos (Cabo Martim); Marieta Severo (Manoela); Mariana Ximenes (Vanda); Vladmir Britcha (Leonardo); Walderez De Barros (Tia Marisa); Milton Gonçalves (Delegado Morais); Othon Bastos (Alonso).

Nessa novela curta, o autor articula a natureza popular das personagens com um enredo à beira do fantástico e uma linguagem enxuta, porém ambígua, agradável e leve. Nela, o previsível funcionário público Joaquim Soares da Cunha, marido, pai e cidadão cumpridor de seu papel social de burocrata estabilizado na sociedade, aos cinquenta anos joga tudo para alto, se entrega à boêmia e passa à perambulação, ébrio e em andrajos, pelas ruas da Bahia. Numa das bebedeiras, ganha o apelido que o acompanhará além da morte:  Quincas Berro D’água. A novela se inicia com seu cadáver em farrapos já estendido em um quarto insalubre de um beco baiano.

 Mesa do seminário comemorativo dos 100 anos de Jorge Amado, em 2012.

Na morte de Quincas, os parentes enxergam a oportunidade de resgatar no meio social o nome da família, maculado por suas orgias e por sua vida escandalosa. Para tanto, organizam um funeral à altura de um verdadeiro e honrado um ex-funcionário público.

No entanto, visitado em seu velório por antigos amigos de fuzarca (Curió, Negro Pastinha, Cabo Martim e Pé de Vento), que veem no ricto  estampado no rosto do cadáver um sorriso folia, Quincas termina sequestrado por eles e arrastado pelas ruas da Bahia em uma espécie de despedida gloriosa, hilária e pândega do mundo dos vivos.
A confusão se instaura, pois enquanto uns o juram morto, outros o veem passeando de braços dados com os companheiros de boêmia, entre gargalhadas e cusparadas de cachaça. A esbórnia se encerra no barco de Mestre Manuel, onde os amigos cumprem a suposta vontade do morto, levando-o em festa em pleno mar, ocasião em que um violento temporal se abate sobre o barco e encapela as águas, para onde o debochado Quincas resvala para sempre, enterrando no mar, consigo, a chance de a família ajustar contas com o falso verniz da sociedade.

Nesse destino de Quincas Berro D’água há uma certa metáfora do projeto literário do próprio Jorge Amado, que, à literatura enfatiotada e blasé, que sempre combateu, preferiu os personagens populares, os enredos apoiados na realidade dos trabalhadores e a crítica social – em que o humor se foi insinuando progressivamente ao longo da carreira do autor.

Referências bibliográficas

Amado, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro d’Água. In Os velhos marinheiros (o romance O capitão de longo curso), São Paulo: Martins, 1961.
Duarte, Eduardo Assis. Jorge Amado: romance em tempo de utopia. Natal: UFRN-Editora Universitária, 1995.
Gomes, Álvaro Cardoso. Jorge Amado. 2 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
Itazil Benício. Jorge Amado: retrato incompleto. Rio de Janeiro: Record, 1993.
Lafuente, Fernando Rodrigues (Coord.). Jorge Amado. Madri, Instituto de Cooperación Iberoamericana. 1987.
Martins, João de Barros. Jorge Amado: trinta anos de literatura. Rio de Janeiro, Record, 1993.
Raillard, Alice. Conversando com Jorge Amado.Trad. Annie Dymetaman. Rio de Janeiro, Record, 1991.
Táti, Miécio. Jorge Amado, vida e obra. Belo Horizonte, Itatiaia, 1961.
_________ O baiano Jorge Amado e sua obra. Rio de Janeiro, Record, 1980.
Tavares, Paulo. Criaturas de Jorge Amado. Dicionário de todos os personagens imaginários.... São Paulo, Livraria Martins Editora, s. d.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Um Mandela muito particular

Assista a entrevista à Opera Mundi sobre o legado de Mandela

O personagem que o leitor tem diante de si em O jovem Nelson Mandela é muito particular. Isto porque, na trilha dos acontecimentos extraordinários que envolveram a derrota final do apartheid na África do Sul e que repercutiram pelo mundo todo ao final do século XX, em sua voz ecoam vozes de poetas e de escritores, além de angústias de outros personagens mergulhados em dramas semelhantes. Assim, o leitor descobrirá, no Capítulo 3, intitulado “Luz para cegar”, que a luz a agredir os detentos da pedreira de calcário da ilha de Robben é irmã daquela reverberação torturante que ofende os olhos do sentenciado à pena de morte de O estrangeiro, de Albert Camus.

 Na voz do protagonista deste O jovem Mandela, reflexões sobre os impasses gerados pela luta contra o apartheid acolhem versos da “Canção amiga”, de Carlos Drummond de Andrade, no Capítulo 7, denominado “Universidade Mandela, uma aula”. A título de ilustração sobre a aventura dos portugueses pelo Cabo da Boa Esperança, hoje Cidade do Cabo, África do Sul, no Capítulo 8, “Universidade Mandela, outra aula”, o poema famoso “Mar portuguez”, de Fernando Pessoa, funciona como um marco da passagem de Bartolomeu Dias, em 1488, por esse ponto extremo sul do continente.

Quando a questão é pesar o drama do indivíduo instado a abrir mão do convívio familiar para enfrentar a luta contra o regime de segregação racial, no Capítulo 9, “Por quanto tempo pode ser prolongada a juventude”, versos de “Mensagem à poesia”, de Vinicius de Moraes, surgem na forma de prosa sutilmente modulada. No Capítulo 10, “Uma Johannesburg estranha demais”, uma cidade enevoada ecoa os “timbres tristes de martírios” do Livro azul, de Mário de Andrade. E em “Um homem não é uma ilha”, o Capítulo 11, a referência a Robinson Crusoé, de Daniel Defoe é direta.

Além dessas incrustações de fácil observação, ecos do Dostoiévski de Recordações da casa dos mortos (publicado pela Nova Alexandria) e do Graciliano Ramos de Memórias do cárcere podem ser rastreados por todo o texto, na forma de discurso indireto livre e de registro de fluxo de consciência, empregados tão magistralmente por ambos.

Assim, este O jovem Mandela que o leitor tem em mãos é ao mesmo tempo ficção e história, informação e condensação artística de expectativas, sonhos, frustrações e júbilo. Sua espinha dorsal é, sem dúvida, o personagem real de mesmo nome, mas este recebe a contribuição de outras vozes inventadas, representativas de dramas humanos igualmente verdadeiros.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

ZONA OESTE

 Reproduzo aqui o release que a jornalista Renata Vs fez para o lançamento de meu romance ZONA OESTE.

ZONA OESTE é o quarto e penúltimo romance do ciclo Era uma vez no meu bairro, do escritor paulistano Jeosafá Fernandez Gonçalves. Resultado de mais de vinte anos de pesquisa sobre a violência, particularmente contra crianças e jovens, em jornais, livros, documentos oficiais e a partir de entrevistas em trabalho de campo, ZONA OESTE é a quarta estação de uma obra cujo enredo, em forma de espiral, tendo partido da ZONA NORTE e passado por ZONA LESTE e ZONA SUL, atingirá o CENTRO, estação derradeira, em 2014. Cada região da metrópole, um romance enraizado na realidade e, como ela, cheio de surpresas, expectativas e, naturalmente, sonhos.

Quem por São Paulo ande sem destino certo pode ser que encontre o que não espera – e isso pode ser bom, ou não. Talvez esta seja a mensagem em torno da qual se articula o enredo deste ZONA OESTE. Neste romance – cujos personagens se movem pelas ruas da Lapa e Pompeia, por regiões da Paulista e além do rio Pinheiros  – as vozes se sucedem ao vivo, diante do leitor que, convertido em testemunha, acompanha, em tempo real, fatos e dramas ainda em processo, sem saber ao certo o rumo para o qual se encaminha a trama. 

Aqui se está no terreno escorregadio do “tudo é possível”, com a advertência de que o pano de fundo dessa geografia meio inventada, meio real, é uma cidade que oferece as maiores singelezas e os maiores horrores – às vezes simultaneamente. 

A lógica aparentemente fantástica deste ZONA OESTE é a mesma que permeia os romances anteriores da série: a partir de pesquisas bibliográficas, históricas, urbanísticas, documentais, de reportagem fotográfica e de entrevistas com pessoas reais o autor teceu uma teia em que o real parece absurdo (a exemplo de depoimentos de moradores e ocupantes ocasionais de túmulos da necrópole homônima da cidade) e em que o ficcional é contrabandeado para o interior do enredo como fato aceitável (uma vez que, em São Paulo, cidade ou necrópole, nada é de duvidar). 

Quando um organismo social de despedaça as consequências – quem não sabe? – são sempre dramáticas. Quando esse organismo é uma família, nem sempre sobra quem possa recolher os cacos, os escombros, os espólios. Porém... às vezes sobra. Neste romance, com um dos pés fincados na realidade e outro na possibilidade legitimada pela fantasia, a sobrevivente de um desses eventos dramáticos, em busca de aquietar seu coração despedaçado, reinsere numa narrativa mais humana e amorosa os cacos de vida que colecionou, em surdina, durante os anos de aprendizagem e maturidade.


JEOSAFÁ Fernandez Gonçalves nasceu em São Paulo, em 24 de novembro de 1963. Trabalhou como jornaleiro, operário metalúrgico, vendedor de roupas, porteiro de cineclube, entre outros, até ingressar no curso de Letras da Universidade de São Paulo e tornar-se professor, carreira que exerceu por dezesseis anos, na Educação Básica e no Ensino Superior. Doutorou-se em Literatura pela mesma Universidade em 2002, publicou seu primeiro livro em 1986 e reúne hoje em sua obra, entre poesia, ficção, ensaio e ensino, mais de cinquenta títulos.

Para ver algumas fotos do lançamento, clique aqui.