quinta-feira, 16 de junho de 2011

Fora da Ordem e do Progresso, Luiz e Simone Ruffato (org.s)

A literatura é uma arte, mas é também uma forma de conhecimento do mundo. Não por acaso Freud estudou profundamente a literatura clássica grega para formular suas teorias sobre a psicologia humana e, por essa mesma razão, com frequência historiadores, sociólogos e antropólogos visitam as páginas da ficção para conferir nesse meio suas intuições, derivadas de anos de pesquisa documental, bibliográfica e de campo.

Naturalmente, no mundo da literatura as representações humanas, sociais, históricas e geográficas, não obstante a lagarta de que se criaram, são já borboletas, umas acinzentadas, outras monocromáticas, outras multicores, umas silenciosas e discretas, outras a estalar as asas enquanto voam.

Há quem se aborreça com a alegoria zoológica do parágrafo anterior, porém, foi a que melhor me acorreu para tornar visível um processo orgânico da produção literária: o de metamorfose da realidade.

Por mais realista que se apresente ao leitor um conto ou um romance, a realidade nele é uma produção psíquica do autor, registrada em letras pretas sobre páginas em banco. A realidade de que o autor parte para criar sua ficção é ainda uma lagarta, que só se converterá em borboleta após a hibernação no casulo de sua subjetividade e o rompimento dele por meio de técnicas mais ou menos comuns à sua época e de artimanhas de estilo, próprias de cada qual.

Dito isto, Fora da Ordem e do Progresso, volume de contos brasileiros organizado por Luiz e Simone Ruffato, embora enfatize a memória da lagarta hibernada no inverno de ditaturas e vícios políticos, é revoada de borboletas numa primavera de liberdade expressiva. Mais precisamente, dezessete delas:

João Anzanello Carrascosa, Júlio César Monteiro Martins, Luiz Fernando Emediato, Domingos Pellegrini, João Gilberto Noll, Luiz Vilela, Sérgio Sant’ Anna, Roberto Drummond, Nélida Pignon, Ivan Ângelo, Ignácio de Loyola Brandão, Lygia Fagundes Telles, Otto Lara Resende, Murilo Rubião, José J. Veiga, José Cândido de Carvalho, Marques Rabelo, Alcântara Machado, Dyonélio Machado, Mário de Andrade, Monteiro Lobato, Lima Barreto, João do Rio, Alcides Maya, Arthur de Azevedo, Machado de Assis e Bernardo Guimarães.

Como se pode observar na ordem em que os autores são citados acima, o critério de organização da coletânea é cronológico, e invertido: do presente para o passado. Assim, no início do livro está representada a última década do século XX, ao fim dele, o século XIX comparece.

As mazelas de nosso processo histórico, sociológico e, com mais ênfase, político, são flagradas ora com humor, ora com profunda indignação, mas sempre com muita qualidade estética, em que surpresas nos enredos e luminosidades de linguagem poética pontuam sempre.

O prefácio, dos organizadores da antologia, sucinto, preciso, direto e muitíssimo elucidativo explica:

“Há distintas maneiras de nos aproximarmos da História.  (...) Para esta antologia, propomos uma outra apreensão, a da História como sincronicidade. Ou seja,  entendida como acontecimentos simultâneos no espaço e no tempo, descompassada e inconclusa, que se constrói à medida que ocorre, protagonizada por anônimos personagens destituídos de heroísmos, tragicamente marginais à cronologia, agentes e pacientes sem o saber. Histórias que são e não são parte da História do Brasil. Histórias fora da ordem e do progresso”.

Para confirmar esse ponto de vista dos organizadores da coleção, é interessante listar as primeiras palavras dos contos iniciais do volume:

“Escurecia. As montanhas, havia pouco iluminadas pelo sol, em agora sombras suaves” (Travessia, João Anzanello Carrascosa).

“Meu amigo Pedro morreu de cabeça para baixo, com uma galinha ou uma fruta madura” (A Posição, Júlio César Monteiro Martins).

“Nós acordamos cedo e vestimos os nossos uniformes. Nossos pais nos recomendaram prudência e ouvimos seus conselhos” (A data magna do nosso calendário cívico, Luiz Fernando Emediato).

“O menino balançava na rede, com pijama de flanela. Não podia sair ali da varanda. Não podia pular. Não podia correr” (O dia em que morreu Getúlio Vargas, Domingos Pellegrini).

O leitor pode optar por outra ordem de leitura, mas seguir aquela proposta pelos organizadores da coleção não deixa de ser uma opção bastante feliz, pois as formas literárias de representação de nossa história se vão sucedendo como se o ponto de vista do  leitor mergulhasse em um túnel do tempo.

Fatos históricos de repercussão são abordados não pela lente grande-angular das efusivas comemorações ufanistas do período da ditadura militar, mas, a título de exemplo, por uma lente subjetiva que acompanha os passos de gente comum, encurralada entre bandeirolas da festa da Independência e fuzis que as obrigam a ser patriotas em massa.

Num outro exemplo, a tortura é captada não pela ótica de um estoicismo supra-humano, mas pela de um heroísmo chão, coerente, de um realismo cru, pelos olhos do personagem que descreve a morte do amigo, pendurado pela pernas como um frango de frigorífico, num dos muitos porões de suplício que se proliferaram durante o Regime Militar brasileiro.

Daí podemos dizer que se trata de um mergulho na história? Sim, sem dúvida porém, com o devido cuidado de lembrar que a lagarta aqui é já borboleta: é a história pela lente da literatura, por mais convincentes que sejam essas 27 narrativas e o prefácio.

Mas alguém em sã consiciência afirmaria que a história, com  "h" minúsculo ou maiúsculo, prescinde da lente literária? Com efeito, a história, tenha ela o "h" que tiver, nua e crua, sem o aporte significativo da literatura, talvez seja a maior das ilusões.

FONTE: Fora da Ordem e do Progresso. Organização, apresentação e notas Luiz e Simonte Ruffato. São Paulo. Geração Editorial, 2004.


quarta-feira, 8 de junho de 2011

Levantado do Chão, de José Saramago

Domingos Mau-Tempo é um giramundo, um sapateiro, um artesão cujo espírito não se ajusta comodamente ao modo de vida do latifúndio alentejano de fins do século XIX e início do XX. Com sua esposa, vagará de lugar em lugar em busca de emprego para sustentar a família e de taberna para sustentar o vício da bebedeira.

Que fazer? Artistas assim são, embriagam-se sempre de vida e, havendo dignidade pouca nela, embriagam-se doutras coisas. Esse é Domingos Mau-Tempo, de bar em bar, perdido o rumo de casa na confusão da embriaguez, que se não distingue o latifúndio que o vergasta, aplaca sua consciência insatisfeita.

Quando atar a um pé de pau sua corda de enforcar-se, terá pensamentos na esposa, Sara da Conceição, e nos filhos que deixará. Porém, já separado em definitivo deles por conta de seu desregramento imprevisível, de suas andanças e de seus sumiços episódicos, saltará no ar e morrerá suspenso, com mais esse nó na garganta.

Do pai, João Mau-Tempo, o primogênito, herdará o sobrenome, recebido como mensageiro de maus presságios ou como objeto de galhofa, e a indisposição em relação ao latifúndio que, com o padre Agamedes e a guarda, forma a santíssima trindade da exploração, sempre violenta sobre os camponeses do Além-Tejo, sul de Portugal, atados à terra como outrora estiveram os negros africanos às correntes da escravidão.

João Mau-Tempo consumirá sua infância no trabalho da terra tão logo suporte o peso de uma segadeira, foice, enxada ou pá. Em jornadas de dezesseis, dezessete, dezoito horas atravessará a juventude e penetrará a velhice arrastando às costas o fardo do latifúndio, que para os pobres constitui-se de exaustão física e nada de seu além da cova em que se deitará por último.

A esse peso no corpo – de resto, espécie de força de gravidade de uma estrutura fundiária escandalosamente injusta e cruel, cujos efeitos se abatem sobre todos os pobres – João Mau-Tempo acrescentará o dos castigos por – ao invés do pai, que esmagado pelo modo de vida semi-feudal se enforcou – aderir à resistência comunista que se alastra por meio de folhetos volantes largados pelo caminho e do jornal Avante! do PC Português.

Diferentemente do pai, que sucumbe pelas próprias mãos, João Mau-Tempo resistirá a setenta e duas horas de ininterruptas torturas, sairá do calabouço alquebrado, mas vivo para participar ativamente de uma semeadura cujas flores desabrocharão em forma de cravo, na Revolução de 25 de abril de 1974, a qual encontrará seu filho, Antônio Mau-Tempo, em idade de compreender os mecanismos injustos, mas passíveis de serem derrotados, que, no campo, atam o homem à terra e, na cidade, o homem à máquina.

Por meio da saga dos Mau-Tempo, José Saramago destrinça literariamente entre setenta e oitenta anos de lutas camponesas no Sul de Portugal, e põe em cena personagens cuja beleza reside em parte na arte do escritor, mas também em grande parte nos próprios referenciais da vida real em que ele se inspirou.

Do giramundo, que se enforca por não se ajustar à uma vida indigna, ao militante clandestino, que enfrenta a tortura por lutar contra essa mesma existência aviltada, Saramago colhe traços para compor um enredo com um pé na ficção, outro na realidade, dois braços na enxada e dois olhos em um futuro mais digno para o artista, representado na figura de Domingos Mau-Tempo, e para o trabalhador, na de seu filho, João Mau-Tempo.

Quanto a Antônio Mau-Tempo, neto do primeiro e filho do segundo, no enredo do romance participante das manifestações que vão dar na Revolução dos Cravos, de 1974, me ponho a pensar: já ancião, como terá recebido a vitória da direita portuguesa nas eleições de 2011?

Tremo de horror em pensar que ele tenha participado com seu voto dessa “consagradora” vitória, uma vez que sem o voto popular,ela não se teria concretizado. Nesse caso, teria feito como o avô: passado a corda no pescoço e saltado para o nada.

Porém, ouso um palpite. Não: Antônio  Mau-Tempo não saiu ao avô, mas ao pai.

Nesse caso, a luta continua.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Do lirismo à galhofa, num salto de Jerônimo

Este blog salta do lírico para a galhofa gritando: JERONIMÔÔÔÔÔ, o que explica a presença de Vinicius de Moraes neste espaço por uma semana e até hoje, e a de Bruno Azevêdo de hoje até quarta-feira próxima, isso se o Armagedon não acontecer ou se dele escapar este virtual espaço de meditargumentação litero-humorístico-cineclubeástica.

Escritor maranhense com cara de cineasta da boca do lixo paulistana, só porque São Luís está mais próxima de Nova Iorque do que São Paulo, Bruno Azevêdo se acha no direito de entrar de sola na cultura texana ianque pelo atalho goiano das duplas sertanejas de música de corno. Tudo bem, galhofa também é cultura.

Faço aqui uma digressão: dizem que vem da terra dos Sarney, mas também de Aluísio Azevedo, vamos mostrar o lado bom de todas as coisas, a anedota segundo a qual a espingarda de cano duplo foi inventada para matar dupla caipira. Maledicência contra os maranhenses, pois essa piada existe desde que os filmes de caubói entortaram a cabeça dos filhos dos verdadeiros caipiras, com micagens de chapéu de mocinho do velho oeste.

Breganejo Blues é um deboche hilário de Bruno Azevêdo, que junta dupla sertaneja oportunista com quadrinhos Tex, bate tudo no liquidificador de uma linguagem esperta, cheia de segundas intenções, despeja num copo de coquetel paródico, chacoalha mais um pouco e põe sobre o balcão do boteco maranhense, à frente do qual o leitor está sentado, e diz, toma aí, hombre, de una sola vez, sem gorgolejar.

Não sei porque, o andamento enredo me lembra A grande arte, de Rubem Fonseca. Há um clima de perseguição policial interessante, meio noir, muito embora o escracho explícito compareça a cada parágrafo, enquanto no escritor mineiro radicado no Rio esse escárnio de linguagem seja mediado pelo lirismo que, afinal, sobreleva, afinal, todo escritor mineiro tem dívidas enormes com Tomás Antônio Gozaga, não nega, e vai pagando de pouquinho.
Adailton, espada, e Adahilton, vulgo Ada Hilton, transformista assumido, porém clandestino, estão envolvidos em trapaças típicas do show business tupiniquim: jabaculê para emplacar sucessos, músicas compradas a terceiros, bacanais orgiásticos encobertos pela imagem de dupla sertaneja bom-mocista, tráfico de drogas com escolta policial em avião de turnê e otras cositas más.

Noutras palavras, nem metade do que essas turmas fazem de mal ao país e aos ouvidos está na vitrine, mas o leitor fica autorizado, pela amostragem, a inferir o que rola nos bastidores das duplas de sucesso que estragam nosso gosto musical com aquelas caras de vaqueiros texanos e com aqueles falsetes que não enganam ninguém, a não ser quem gosta desse gênero (se é que é gênero) musical (se é que é música) – aqui a gente é assim, arruína a imagens, arruma inimigo, mas conta a piada inteira.

Quem leu Galvez, Imperador do Acre, de Márcio Souza, não se frustará ao ler Breganejo Blues. Estão na mesma corrente da literatura picaresca, que no Brasil tem pratos e pratos e pratos cheios de assunto para chorar de rir, ou só chorar, ou só rir, a depender de o freguês conseguir engolir tudo sem gorgolejar.

De quebra, o leitor passeia pela mão de um narrador envolvente e matreiro por lugares proibidos, aos quais, no entanto, teria medo de ir sozinho, ou nos quais teria vergonha de ser flagrado acompanhado.

Como se está, porém, no mundo cínico da literatura picaresca, esse adjetivo cheio de segundas intenções, ninguém vai reparar quem está segurando na mão ou em outras partes de quem, que esses preconceitos no Brasil já acabaram, só não avisaram o Jair Bolsonaro e o lobie religioso  ultraconservador mal humorado, positvos e operantes por todo lugar, lobie para o qual, diferente de Mário de Andrade, os problemas do Brasil são três: a falta de fé e moral, as droga e o homossescualismo.

A não ser que se leia o livro no ônibus e um curioso ou uma curiosa pegue os olhos nas letras mal sediciosas dessa novela trezoitão, cano duplo, está o leitor liberado para ler o dito cujo no busão. Além do mais, o ônus de quem fica fuxicando as intimidades das páginas alheias recai sobre o próprio fuxicante.

No final deste mês, publico nesta mesma bat hora e neste mesmo bat blog ENTREVISTA TARJA PRETA com Bruno Azevêdo. Se você não sentir dor de barriga de tanto rir, cara e caro radiouvinte, mando a produção devolver o dinheiro da entrada. Aliás, para receber esse valor, o leitor deverá enviar mensagem para: http://bazevedo.blogspot.com, que não sou trouxa.

FONTE: Bruno Azevêdo. Breganejo Blues - Novela trezoitão. São Luís. Ed. Pitomba, 2009.