sábado, 12 de outubro de 2024

CRÔNICAS CARIOCAS — Machado geográfico

Chalé idêntico ao de Machado de Assis e de sua esposa Carolina Novais.
Este foi demolido na década de 1970. O do escritor e sua esposa,
consta que foi abaixo na década de 1920.
 

Quando vim morar no Rio de Janeiro, achei que meu gosto de passear a pé era um vício de adolescência, espécie de complexo de Peter Pan detonado pela magia da liberdade que o emprego de office-boy me propiciara, e que precisava receber um recalque firme e forte, uma vez que sessenta anos de idade não são catorze, infelizmente. Porém, relendo Machado de Assis e Manuel Bandeira —  mas também  Drummond, Lygia Fagundes Telles e Cecília Meireles, que ficarão para outras crônicas —  nesse período inciático de adaptação às terras cariocas, tive a confirmação de que não era vício e, se era, era santo.

Quem leu Esaú e Jacó e Memorial de Aires, sabe que Machado de Assis adorava bater pernas pela cidade do Rio de Janeiro. Nesses romances, do morro do Castelo — do qual atualmente só resta o nome do bairro, porque o acidente geográfico o prefeito Carlos Sampaio pôs abaixo no início da década de 1920 — passando por Lapa, Glória, Catete, Flamengo, até Botafogo, transitam não apenas o conselheiro aposentado e demais personagens principais, como um rol de figuras que compõem a geografia humana da cidade em fins do século XIX.

É lógico que, em se tratando de Machado de Assis, os olhos se voltam principalmente para a linguagem literária, que ele dominou com  tal consciência e habilidade que Augusto Meyer fez-nos um grande bem ao carimbá-lo com o epíteto de "bruxo do Cosme Velho". Porém, talvez não haja página em sua obra narrativa, principalmente da fase realista, em que as referências geográficas coetâneas não ocupem lugar de importância. Há mesmo ligações íntimas entre personagens, fatos e espaços — seja o espaço um batente de janela em que Brás Cubas, no capítulo XXXI de suas Memórias póstumas, dá um "piparote" na borboleta preta que ele acabara de matar com uma tolha; seja o jardim em que ela cai, para ser devorada pelas formigas; seja ainda a janela do sobrado na rua do Catete (Machado de Assis morou no Catete, na rua que hoje leva seu nome), pela qual o conselheiro Aires assiste, no capítulo LXI de Esaú e Jacó, ao tumulto da confusa Proclamação da República: "Pouco depois passava pela rua do Catete a padiola que levava um ministro, ferido."

De maneira que, em paz com meu coração andarilho e satisfeito com minhas pernas inquietas, saio sempre que posso pela cidade, a esmo mas nem tanto, pois tenho por hábito traçar um roteiro que termine sempre em um bom, forte e quente café, que sorvo refletindo sobre minha romaria de um só romeiro.

No domingo passado, dia 6, dia de eleições, vento fresco, céu azul e sol agradável, realizei um roteiro há tempos idealizado. Do Catete, pela Laranjeiras, subi com preguiça, tênis e bermuda —  observando os eleitores, uns indo votar, outros retornando do sagrado gesto democrático —  até o lugar onde morou Machado de Assis e onde é agora  um edifício residencial com algumas poucas lojas no térreo, uma as quais um café temático, dedicado ao antigo morador daquele endereço: rua Cosme Velho, antigo 18, atual 152, onde tomei um café de gosto ótimo, duplo, amargo e denso como uma graxa, a meu pedido, por suposto, e onde bati esta foto de gosto duvidoso:

Diante do programa que muitos realizaram no dia após votar, entre os quais ir à praia ou escapar para a região serrana, o meu programa foi bem mixuruca. E ficou ainda mais mixuruca quando subi uma centena de metros na Cosme Velho e visitei novamente o largo do Boticário, onde, na crônica anterior, encontrei Manuel Bandeira no meio do beco.

Na volta do passeio, vim matutando em como Machado de Assis e Bandeira — mas também Drummond, Lygia Fagundes Telles e Cecília Meireles, que ficarão, já disse, para outras crônicas — me confortaram em minha mixuruquez de andarilho e me salvaram de pôr fora um vício de adolescência que, enquanto tiver pernas, continuarei a cultivar com método, frequência e, agora, sem culpa.

Está decidido: sou um mixuruca. E quem quiser, se ponha a caminho de programas interessantes.


Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP e Pós-Doutor em História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).


terça-feira, 8 de outubro de 2024

ENEM 2024 — REDAÇÃO: TENHA CORAGEM! Fuja de esquemas, clichês, termos e expressões decorados

Ansioso por pontuar satisfatoriamente na redação do ENEM, o candidato é muitas vezes levado a buscar fórmulas miraculosas que o socorram no momento fatal de escrever as temidas trinta linhas da dissertação argumentativa que o exame exige. Porém, alguém precisa dizer ao candidato, e eu digo: pare de perder tempo com fórmulas miraculosas e desenvolva o hábito cotidiano de escrever textos reflexivos sobre temas que realmente interessem à comunidade, à sociedade, ao país, ao mundo.

Reproduzir esquemas de redação veiculados em redes sociais não demonstra que o candidato sabe escrever (e ao final das contas, é isso que a banca examinadora quer avaliar), mas apenas revela que ele, ao longo do Ensino Médio, não desenvolveu senso crítico, e apenas alcançou com sérias limitações o senso comum dos tempos atuais, que é penosamente superficial, abundante de clichês esvaziados de sentido e que claudica entre o "politicamente correto" e o preconceito camuflado.

É de dar nos nervos ler uma redação recheada de obviedades inócuas, que nada revelam sobre as conquistas do candidato, seja no que tange a seu repertório cultural, seja no que diz respeito às habilidades linguísticas em idioma materno que lhes são exigidas para o nível de escolarização em que se encontra.

Os esquemas de cursos "preparatórios" para o ENEM e vestibulares, presenciais ou disponíveis na internet, primam pela esterilização do ponto de vista do candidato e pela "incutição" de fórmulas prontas, que as bancas examinadoras estão fartas de conhecer. O candidato é treinado: em esquemas estereotipados; em vocabulários pretensamente ajustados a temas que  — num exercício temerário de adivinhação  os instrutores macetam à exaustão em sua mente; em omitir sua opinião pessoal; e em empregar termos que eventualmente causem impacto.

Daí porque em meio a um vocabulário não mais que mediano, surge na redação, no meio de um período visivelmente decorado, um "outrossim", um "não obstante", um "uma vez que", que caem como pedregulhos nos olhos do leitor-examinador.

O tempo que perde repetindo fórmulas e registrando no papel temos e expressões mal assimilados, o candidato aproveitaria melhor, caso desenvolvesse o hábito de ler e analisar com atenção textos opinativos de qualidade abundantes na internet, sobre os mais variados temas.

Recentemente, uma aluna de terceiro ano do Ensino Médio me mostrou um esquema miraculoso que o seu instrutor de curso preparatório para o ENEM lhe havia fornecido — não digo "ensinado", pois na verdade nem de longe se tratava disso. Segundo ela, o esquema era infalível, servia para qualquer tema e era só ir "enchendo com as palavras"   uma certa quantidade das quais, entre elas conectivos, frases de efeito (duvidoso) e clichês, ela já memorizara!

Pouco encorajados a desenvolver o pensamento lógico e livre, o juízo crítico e a escrita própria, autoral, muitos candidatos ao ENEM e vestibulares, inseguros, em busca de tábuas de salvação e saídas milagrosas, acabam caindo nas teias de aranha de esquemas voltados para iludir a banca examinadora e, pior!, a si mesmos. O que fazem, ao reproduzirem essas fórmulas preconcebidas e estéreis, nem de longe é demonstrar que sabem abordar um tema em linguagem que dominam: o que fazem é apenas manter em movimento uma maquinaria conservadora, que se retroalimenta de gente levada a   e premiada por  não pensar de forma livre e corajosa.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).

domingo, 29 de setembro de 2024

CRÔNICAS CARIOCAS — Bandeira de volta ao largo do Boticário

Vez por outra entro nas redes sociais para saber se o mundo já acabou. Não sei por que insisto nessa prática, uma vez que a dúvida é ociosa. Sim, o nosso mundo já acabou e as outras formas de vida habitantes do planeta apenas se perguntam quando é que faremos as malas, tomaremos naves espaciais sem bilhete de volta e os deixaremos em paz, para que reiniciem o mundo a partir do ponto estragado da evolução das espécies em que os deixamos.

Numa dessas redes sociais em que me afundo no prazer mórbido de gozar o Armagedom, li uma postagem cheia de coloridos e letras apelativas que trazia uma mulher jovem, bonita, de óculos, a sorrir e oferecer “10 dicas de novos livros para ler”. Achei a oferta suspeita, pela simples razão de não haver razão para uma publicidade, das profundezas do fim de tudo, oferecer “de graça” cordas pelas quais se subir e escapar ao limbo. Desliguei o celular enfarado com a constatação de que o fim ainda estava no prefácio e fui fazer o que vinha planejando havia muito.

Era sábado, um fim de tarde fosco, não obstante setembro e início de primavera, com um vento fazendo o ar circular agradavelmente, e algumas gotículas erráticas, de vez em quando, picando a pele da face. Se chovesse, ora, nem isso, se garoasse ou mesmo chuviscasse aqueles chuviscos que nem compensa abrir o guarda-chuva, que eu não trazia comigo, teria que me abrigar em algum canto, pois a minha velha antologia Estrela da vida inteira, de Manuel Bandeira, não suportaria mais essa desfaçatez, das tantas a que a tenho submetido nos últimos anos.

Não choveu, nem garoou, sequer chuviscou. Só essas gotículas brincalhonas me acompanharam na caminhada do largo do Machado, pelas ruas das Laranjeiras e Cosme Velho, até o alto do largo do Boticário, onde Manuel Bandeira se deixara fotografar pela extinta revista O Cruzeiro — foto que consta da edição que levava comigo, cuja capa estava protegida canhestramente por um plástico filme, desses que se usam na cozinha.

As gotículas erráticas tiveram um efeito maravilhoso, que foi o de esvaziar as ruas, onde poucos carros circulavam e menos gente ainda. Exceto por um homem  que levava seus três cães pelas respectivas guias e seu ego sem a sua, e que para se fazer notar trancou o passeio por torturantes longos instantes na tarde vazia  a caminhada só se interrompeu nos semáforos.

Em pouco mais de trinta minutos estava eu lá, no exato ponto em que Bandeira tivera sua imagem fixada em preto e branco, já idoso, em calças escuras e paletó claro refletindo o sol forte, a cabeça baixa atenta ao piso irregular, a caminhar pelo calçamento de pedras mal cortadas do leito da rua do beco de acesso ao largo.

Não só o piso do leito da rua como o das calçadas e mesmo as fachadas pareciam os mesmos da foto, com ligeiras alterações. Só o poeta estava ausente, até eu abrir a antologia na página respectiva e uma agradável sensação de pertencimento circular por meus nervos como uma onda morna de felicidade.

Visitei o largo do Boticário com a pretensão (ó alma vaidosa!) de restituir — ao menos durante a minha permanência no local — o poeta, sua antologia em mãos, a um de seus espaços mais caros.

Porém, escrevendo esta crônica, me dei conta da sutileza do poeta: foi ele quem me levou pela mão até lá, e, verdade seja dita, foi também ele quem me deixou, meses antes, à porta do edifício em que morou por último, na avenida Beira-Mar. 

Placa no edifício São Miguel, na avenida Beira-Mar,
bairro do Castelo, Centro do Rio.
Nesse edifício São Miguel, Bandeira morou primeiro nos fundos, que dava para o beco que servia de lixão, que ele registrou no poema O bicho:

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
Rio, 27 de dezembro de 1947

Depois, Bandeira mudou-se para um apartamento de frente do São Miguel, cuja fachada dá para o aeroporto Santos Dumont, que ele registrou no poema Lua Nova, datado de agosto de 1953, constante do livro Opus 10 e da antologia Estrela da vida inteira, que eu trazia comigo:

Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir:
Hei de aprender com ele
A partir de uma vez
– Sem medo,
Sem remorso,
Sem saudade.

Bandeira me levou pela mão, aos vinte anos, à sua poesia, e agora, aos sessenta anos de juventude, a esses seus lugares sagrados. Porém há ainda um roteiro extenso que ele percorreu no Rio e que me falta cumprir. Próxima parada, Santa Teresa, onde ele morou na rua do Curvelo, hoje Dias de Barros, e onde escreveu textos clássicos como os Poema do Beco, Primeira Canção do Beco, Segunda Canção do Beco e Última Canção do Beco.

Sem pressa, vou ao roteiro, me metendo pelos becos cariocas da literatura, onde o mundo ainda não acabou e talvez esteja só começando.

Evoé, Manuel Bandeira

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Hoje professor da rede pública estadual do Rio de Janeiro, foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).