domingo, 13 de setembro de 2015

Os negreiros que chegaram aos EUA deixaram seus rastros nas Antilhas

Quando e escritora Maryse Condé, natural da ilha de Guadalupe e radicada nos EUA, conta a história de Titubá, a feiticeira negra do Salem, entre outras passagens duras e comoventes, uma das mais perturbadoras retrata a protagonista, ainda menina, a observar a mãe, pendurada pelo pescoço no galho de uma árvore, a balançar desengonçada.  

Qual o crime de Abená, a infeliz mãe de Titubá? Ferir sem a menor gravidade seu senhor, ao defender-se de uma tentativa de estupro – ela, cuja filha Titubá era já fruto do estupro cometido por um marinheiro inglês, sob o riso cúmplice de escárnio dos companheiros de embarcação.


Criada por uma segunda mãe, também escrava, Titubá, nascida numa ilha de Barbados mergulhada na escravidão das plantações de cana-de-açúcar, terá de aprender a duras penas a lição de como dominar seu ódio contra os opressores, porém, ao longo de sua vida, cuja extensão e fim a história documental ignora, as humilhações e injustiças que verá e viverá acumularão matéria de combustão em sua raiva. E nem sempre, embora raramente, Titubá resistirá ao impulso de revide.

O livro Moi, Tituba, sorcière... noire de Salem (Eu, Titubá, feiticeira negra de Salem) merece ser lido – e há tradução em português, se bem que a versão pocket da francesa da Mercure de France, para quem domine o idioma, seja um espetáculo de palavras. Porém o assunto aqui é Malcolm X, e se o leitor não se deu conta, trato dele desde o primeiro parágrafo.

Tanto quanto Titubá, a vida de Malcolm X foi uma provação sobre a Terra. Seu pai Earl Little, militante das lutas do movimento de Marcus Garvey, após migrar para o norte dos EUA fugindo do massacre contra negros nos estados do sul, no início do século 20, terminou morto, chacinado por membros de um grupo de ódio racial. Sua mãe, Lousie Norton, branca de cabelos ruivos, fruto do estupro cometido por um trabalhador irlandês, deprimida e mergulhada nas dificuldades financeiras, sozinha a cuidar da prole, enlouquece. Disso resulta que as crianças da família são distribuídas, pelo serviço social, em vários lares adotivos.

Tanto quanto Titubá, Malcolm X não conhece sua raiz familiar, pois até mesmo o frágil laço estabelecido pelo nome foi quebrado pelo apagamento do elo de ancestralidade, quando da venda seus antepassados nos mercados negreiros da América.

Empurrada para o cárcere pelos ardis do ódio racial, do preconceito e da injustiça, Titubá conhecerá por dentro as engrenagens do belo sistema judiciário e penal da América – e aqui não se fala apenas dos EUA, uma vez que por todo o continente se reproduzem as estruturas de um sistema que não esconde sua natureza de escudo dos ricos, e que transborda em sarcasmo contra os pobres e os mais fracos.

As semelhanças entre a biografia romanceada de Titubá, personagem histórica do século 17, e o que se sabe da vida de Malcolm X, um dos maiores protagonistas da luta por igualdade do século 20, não cessam por aí. É mesmo um exercício irônico comparar o que vai no livro da professora da Columbia University, com o que as pesquisas revelam da vida do líder norte-americano, patrono de praticamente todos os grupos de hip hip do mundo. Duas das mais eloquentes são, com certeza a insistência, o cuidado e a meticulosidade com que o stablishment busque, a todo custo, eliminá-los da História (com H maiúsculo); a outra é a espetacular capacidade de resistência e permanência que esses personagens demonstram ao longo do tempo, no curso do qual vão-se convertendo em verdadeiros mitos contemporâneos, que, ao que tudo indica, atravessarão os séculos e, no futuro distante, serão lidos como hoje se lê e conhece Pandora e Prometeu.



Jeosafá é escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria). e em maio deste ano, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

CORAÇÃO DE ESTUDANTE: Indivíduo, cidadão, ser humano

Encontro com estudantes do Colégio ECO, na Lapa, em 2013, a propósito de meu livro O diário secreto das Copas.
Notas de uma aula voluntária para os estudantes da 6ª. Semana Acadêmica de Educação Física e da Pedagogia da Faculdade Mário Schenberg (26/08/15) e para a Casa Pia Externato São Vicente de Paulo (24/10/15).

Relações de ensino-aprendizagem: Ética, Valores e Cidadania


Faculdade Mário Schenberg - Aula comunitária
26/08/15
Na conversa que tivemos recentemente, debatemos as sutis diferenças entre indivíduo, cidadão e ser humano.  Procuramos estabelecer os limites aceitáveis entre essas três dimensões de uma mesma realidade (a realidade humana). O tempo foi pouco para um maior aprofundamento, mas a verdade é que nenhum tempo do mundo seria suficiente para esgotarmos o assunto, sobre o qual oceanos de tinta têm sido gastos em compêndios e mais compêndios de filosofia, sociologia, antropologia, história, geografia e demais ciências ditas humanas.

Porém, tivemos sucesso ao pôr em foco o debate sobre as condições mínimas necessárias para existência do indivíduo, para a instauração do cidadão e para o entendimento razoável do que seja o ser humano.

Com contribuição do colega professor José Evaristo Silvério Netto, vimos que indivíduo, cidadão e ser humano são dimensões indissociáveis: não se oprime uma sem se violentar as outras duas; por outro lado, ao se promover uma, as demais também se desenvolvem obrigatoriamente.

Quando nascemos, somos um indivíduo da espécie. Nessa condição básica, somos incapazes de
Casa Pia Externato São Vicente de Paulo
Aula comunitária - 24/10/15.
prover nossa própria existência. Porém, incapazes de decidirmos por nossa conta, ao sermos acolhidos pelos demais membros de nossa espécie, somos introduzidos no âmbito da humanidade, que nos dias de hoje exige o imediato reconhecimento do direito à cidadania. Por isso é hoje (mas em outra épocas não) obrigatório o registro de nascimento, no qual uma humanidade específica (de um país, de um estado ou província, de uma cidade) faz constar o compromisso que ela assume conosco logo ao nascer, identificando pai, mãe, data e local de nascimento, naturalidade e nacionalidade. Ou seja, não se nasce humano: torna-se humano (nos mesmos termos que Simone de Beaovoir afirma: “Não se nasce mulher: torna-se mulher”).

Nossa discussão ficou bastante presa à polêmica de até que ponto a dignidade humana aceita que o indivíduo seja violentado para que permaneça vivo apenas em suas funções puramente fisiológicas. Vimos que essa é uma discussão ética bastante dramática, mas que não se deve resvalar para o terreno da moral, seja ela religiosa, política ou de grupo ideológico – pois se abriria aí a possibilidade de a moral de um grupo, portanto restrita, impor seus valores aos demais grupos que compõe o conjunto da humanidade.

Ora, mas o que é ética? O que é moral?

O assunto é extenso. Para fins absolutamente didáticos, abro aqui espaço para um quadro sinóptico comparativo (e todo conhecimento é um conhecimento comparado, já nos ensinaram os mestres das ciências da educação) menos para explicar, mais para investigar:

Quanto
A Ética
A Moral
Ao alcance
É ampla e busca alcançar a humanidade como um todo.
É restrita e válida apenas no interior de um grupo humano específico.
Busca encontrar nas diversas morais pontos de convergência que tornem possível a convivência humana.
Prescreve regras de conduta obrigatória para a constituição e sobrevivência do grupo.
Ao estabelecimento das normas de convívio social e humano.
Tende à incorporação das descobertas, inovações e revoluções científicas
Tende à manutenção das tradições do grupo e à resistência a mudanças.
À função
É o campo especulativo, da reflexão filosófica, do estudo, da pesquisa, das leis e normas gerais de convívio humano.
É o campo reprodução ideológica e dos costumes, da prescrição de normas de conduta e de controle do indivíduo.
À análise de fatos concretos
Tende à objetividade.
Tende à subjetividade.
Tende à síntese na forma de conceito generalizante a partir de observações de fatos humanos concretos.
Tende ao juízo de valor a partir das normas grupo social, convertidos em “pré”-conceitos e preconceitos.
Busca o possível e aceitável a partir dos pontos convergentes.
Busca o obrigatório e o compulsório a partir da ótica do grupo.
Mobiliza a razão.
Mobiliza a emoção.
Tende à mediação.
Tende à polarização.


O quadro acima poderia ser estendido e, a título de lição de casa, os estudantes poderiam ir opondo linha a linha elementos de ética e moral, de maneira a, organizando o que já sabem, compor um quandro mais completo a partir de suas próprias experiências e intuições. Porém, não me ofenderia se uma estudante dissesse: "Para que essa lição de casa?", ou, "Para que esse quadro?", ou ainda "Para que ética e moral?" - o que me obrigaria a estudar mais e a discorrer mais sobre o assunto (e isso tudo seria muito bom para mim e não só para essa eventual estudante inquieta).

Quando estamos à frente de uma sala de aula, ou de um grupo heterogêneo, precisamos refletir com o máximo cuidado sobre nossas ações e palavras, pois somos a um só tempo indivíduos, cidadãos e seres humanos éticos e morais.

Caso não nos coloquemos na posição de quem busca os pontos convergentes entre todos os indivíduos, cidadãos e seres humanos desse grupo heterogêneo (portanto composto diversas éticas e morais), fatalmente resvalaremos para uma verdadeira guerra de valores, na qual cada um, instigado pela nossa própria parcialidade, se sentirá autorizado a defender a sua própria ética e a sua própria moral, lançando, nesse caso, mão das armas necessárias para fazê-las triunfar sobre as outras a qualquer custo.

Se eu considero o MEU conceito de vida O conceito de vida, o MEU conceito de feio O conceito de feio, o MEU conceito de Deus O conceito de Deus, então eu estou autorizado a punir todos os que não concordam comigo, pois, nesse caso, eu, mais do que estar certo, sou a própria certeza.

Muitas vezes a sala de aula se torna o campo da punição, do medo e da esterilidade. Quando um aluno tem medo de errar, ele passa a repetir sem raciocinar tudo que o professor fala - e o mesmo vale para um líder diante de seus liderados, seja um pastor, um padre, um dirigente sindical ou político.

O erro é a oportunidade de diálogo entre professor e estudante, entre o líder e o liderado,  é o campo fértil da pesquisa, da troca de ideias em que todos dão e recebem. Porém, se eu, professor, líder, estou sentado no trono das certezas, o que faz um aluno ou liderado a não ser assumir um papel secundário, submisso, sem brilho, opaco como o alumínio (que na natureza é fosco – daí vem a palavra “alumno">aluno”), que só brilha com uma bela esfregada do saber do professor (e mesmo nesse caso ele não faz mais que refletir a inteligência e a sabedoria do mestre)?

No entanto, a carreira de professor (e do líder consciente não manipulador) é eminentemente humanista, ou seja, seu papel  é o de contribuir para que a inteligência, as emoções, as habilidades do aluno se desenvolvam para que ele, deixando paulatinamente a condição de aluno (eterno dependente do mestre, do líder), se converta de uma vez para sempre em eterno ESTUDANTE – um indivíduo, um cidadão, um ser humano integral que pensa, age, cria por conta própria e assume os riscos dessa sua liberdade de pensamento e expressão, liberdade que precisa ser ensinada e compartilhada também.

O que queremos em nossa sala de aula, em nossos auditórios e praças públicas? Um eterno aluno (ser humano incompleto, cidadão de segunda categoria, em processo, ainda não de posse da liberdade inerente à sua condição humana) ou um estudante?

Um aluno jamais confrontará a ética e a moral de seu mestre ou líder, mas um estudante questionará o tempo todo a ética e a moral de seu professor, mas de sua família, a sua própria, a de seus pares, a da  sociedade em que está inserido. A ética e a moral hoje vigente correspondem a suas expectativas de indivíduo, cidadão e ser humano?

Penso que a maior tarefa daqueles que se dedicam à educação nos dias de hoje é de auxiliar a que nossas crianças, adolescentes, jovens e adultos sentados (por que eternamente sentados?) nos bancos escolares façam a transição difícil da condição de alunos [(“alumno = a (sem) lumno (luz)” opaco por natureza] à de estudante – que mesmo na mais tenra idade está coberto de razão quando pergunta à professora ou ao professor: Por que isto? Por que aquilo? Por que essa aula? Por que essa lição de casa? Por que essa tarefa tão fácil? Por que essa prova tão difícil? Ou... por que essa greve?

Penso que quem não estiver preparado para essas perguntas, deve refletir profundamente sobre o que faz à frente de uma sala de aula, ou de um auditório, ou de uma praça pública. Se não é para formar indivíduos, cidadãos e seres humanos livres, no mais amplo sentido desse termo, então para que mesmo? Aliás, por que será que a canção de Milton Nascimento se chama Coração de Estudante, não “coração de aluno”?

Os temas bullying", assédio e preconceito serão tratados na segunda parte, que em breve publicarei neste mesmo blog.


Jeosafá é escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou o ano passado O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria). e lança em maio deste ano, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora.

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Malcolm X: Ainda não sei nada sobre esse cara

Durante todo o período em que empreendi a pesquisa que deu origem ao livro O jovem Malcolm X uma sensação muito agradável foi crescendo em meu espírito e não parou de crescer até agora, mesmo o romance-biografia já tendo sido publicado. Essa sensação acomete com frequência o pesquisador quando o assunto pesquisado é instigante - e quando ela persevera no tempo soma-se a ela a de que é preciso prosseguir na investigação.

Embora tenha buscado fontes relevantes de pesquisa, inclusive primárias, ao pôr o ponto final no livro uma frase veio a minha mente sem que eu a tivesse elaborado conscientemente, e a frase é esta: "Ainda não sei nada sobre esse cara".

Como o objetivo d'O jovem Malcolm X é iniciar o leitor ao conhecimento desse significativo líder afro-americano, contextualizando tanto quanto o possível essa viagem iniciática, procurei apresentar um aspecto da personalidade de Malcolm X pouco explorada: seu humor, sua jovialidade, seu lado cativante não pelas ideias, mas pela afetividade.

Porém, à medida que fui aprofundando a pesquisa, muitos aspectos relevantes de sua contribuição para a luta contra o racismo, pela justiça social e para as organizações de base dos trabalhadores ficaram de fora - senão o livro teria mais de 500 páginas, o que seria demais para conquistar jovens e novos leitores (o número de páginas assustaria).

Assim, O jovem Malcolm X é uma espécie de anzol para pescar o leitor (essa metáfora era usada por Malcolm X para conquistar novos adeptos a sua causa - ele literalmente saía pelas ruas do Harlem a pescar entre "trombadinhas", drogados, traficantes, prostituas, mas também entre operários e trabalhadores de baixa remuneração, aqueles e aquelas dispostos a trocar seu cotidiano de oprimidos por um cotidiano de luta contra a opressão).

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Porém, a sensação de que é preciso pescar mais fundo não parou de crescer, tanto mais quando a participação em diversos eventos deste Semestre Malcolm X tem me obrigado a ler e reler textos sobre ele, a assistir, reprisar e anotar trechos de suas entrevistas em TV e rádio, para extrair delas seus argumentos, nos quais repousam às vezes tranquila, às vezes conflituosamente os conceitos que ele foi elaborando e refinando ao longo de sua meteórica ascensão ao olimpo da luta do povo negro - que pode ser estendida legitimamente a todos os que lutam contra todo tipo de preconceito, por liberdade, por justiça social e por um mundo livre da opressão do homem sobre o próprio homem.

Continuo estudando o legado de Malcolm X, e as chaves que ele nos pôs em mãos abrem segredos que nos levam a outras chaves - que por sua vez nos levam à origem da opressão, afastada no tempo, mas também à portas abertas para o futuro.

Porém, uma convicção se construiu fortemente em meu espírito a partir dessa pesquisa que ainda não terminou: não há nenhuma possibilidade de se conhecer os prodígios do capitalismo sem se conhecer a fundo e no tempo as raízes e as consequências da escravidão negra, sobre a qual foi construído esse império de pouquíssimos bilionários e uma imensidão de pobres oprimidos - uma quantidade inumerável dos quais abaixo dos mais básicos níveis da condição humana, à deriva no mar Mediterrâneo, pelas favelas e pelos cortiços do mundo.

Noutras palavras, a pesquisa sobre Malcolm X confirmou as opções que fiz ainda na adolescência e impôs, àquilo que já vinha fazendo, um trabalho colossal para toda a vida - do tamanho da escravidão que gerou tanta riqueza e tanta dor (e gera ainda nos dias de hoje).


Jeosafá é escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou o ano passado O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria). e lança em maio deste ano, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora.