Quando e escritora Maryse Condé, natural da ilha de Guadalupe e radicada nos EUA, conta a história de Titubá, a feiticeira negra do Salem, entre outras passagens duras e comoventes, uma das mais perturbadoras retrata a protagonista, ainda menina, a observar a mãe, pendurada pelo pescoço no galho de uma árvore, a balançar desengonçada.
Qual o crime de Abená, a infeliz mãe de Titubá? Ferir sem a
menor gravidade seu senhor, ao defender-se de uma tentativa de estupro – ela,
cuja filha Titubá era já fruto do estupro cometido por um marinheiro inglês,
sob o riso cúmplice de escárnio dos companheiros de embarcação.
Criada por uma segunda mãe, também escrava, Titubá, nascida numa ilha de
Barbados mergulhada na escravidão das plantações de cana-de-açúcar, terá de
aprender a duras penas a lição de como dominar seu ódio contra os opressores,
porém, ao longo de sua vida, cuja extensão e fim a história documental ignora,
as humilhações e injustiças que verá e viverá acumularão matéria de combustão
em sua raiva. E nem sempre, embora raramente, Titubá resistirá ao impulso de
revide.
O livro Moi, Tituba, sorcière... noire de Salem (Eu, Titubá,
feiticeira negra de Salem) merece ser lido – e há tradução em português, se bem
que a versão pocket da francesa da Mercure de France, para quem domine o
idioma, seja um espetáculo de palavras. Porém o assunto aqui é Malcolm X, e se
o leitor não se deu conta, trato dele desde o primeiro parágrafo.
Tanto quanto Titubá, a vida de Malcolm X foi uma provação sobre a Terra. Seu
pai Earl Little, militante das lutas do movimento de Marcus Garvey, após migrar
para o norte dos EUA fugindo do massacre contra negros nos estados do sul, no
início do século 20, terminou morto, chacinado por membros de um grupo de ódio
racial. Sua mãe, Lousie Norton, branca de cabelos ruivos, fruto do estupro
cometido por um trabalhador irlandês, deprimida e mergulhada nas dificuldades
financeiras, sozinha a cuidar da prole, enlouquece. Disso resulta que as
crianças da família são distribuídas, pelo serviço social, em vários lares
adotivos.
Tanto quanto Titubá, Malcolm X não conhece sua raiz familiar, pois até mesmo o
frágil laço estabelecido pelo nome foi quebrado pelo apagamento do elo de
ancestralidade, quando da venda seus antepassados nos mercados negreiros da
América.
Empurrada para o cárcere pelos ardis do ódio racial, do preconceito e da
injustiça, Titubá conhecerá por dentro as engrenagens do belo sistema
judiciário e penal da América – e aqui não se fala apenas dos EUA, uma vez que
por todo o continente se reproduzem as estruturas de um sistema que não esconde
sua natureza de escudo dos ricos, e que transborda em sarcasmo contra os pobres
e os mais fracos.
As semelhanças entre a biografia romanceada de Titubá, personagem histórica do
século 17, e o que se sabe da vida de Malcolm X, um dos maiores protagonistas
da luta por igualdade do século 20, não cessam por aí. É mesmo um exercício
irônico comparar o que vai no livro da professora da Columbia University, com o
que as pesquisas revelam da vida do líder norte-americano, patrono de
praticamente todos os grupos de hip hip do mundo. Duas das mais eloquentes são,
com certeza a insistência, o cuidado e a meticulosidade com que o stablishment busque, a todo custo,
eliminá-los da História (com H maiúsculo); a outra é a espetacular capacidade
de resistência e permanência que esses personagens demonstram ao longo do
tempo, no curso do qual vão-se convertendo em verdadeiros mitos contemporâneos,
que, ao que tudo indica, atravessarão os séculos e, no futuro distante, serão
lidos como hoje se lê e conhece Pandora e Prometeu.
Jeosafá é escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria). e em maio deste ano, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora.
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