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segunda-feira, 25 de julho de 2016

Podemos transformar a nós mesmos?

Escrevi este texto para trabalhar com alunos de 8o. e 9o. anos do Ensino Fundamental.

Muitas vezes não nos damos conta, mas certas ações, hábitos, costumes e valores que praticamos diariamente sem pensar podem nos prejudicar mediata ou imediatamente (ao longo do tempo). Como vivemos em sociedade, recebemos dela hábitos e costumes sobre os quais nunca nos ocorreu refletir. Todavia, os objetivos de nossos pais, avós, amigos, colegas de escola, rua ou bairro, não são os nossos, pois cada um tem que ir estabelecendo os seus próprios objetivos, em meio aos objetivos de cada grupo, instituição ou organização de que faz parte.

O problema é que poucas vezes somos alertados para os objetivos desses grupos, instituições e organizações - e menos ainda para a necessidade de estabelecermos claramente os nossos próprios objetivos. O resultado disso é que acabamos praticando ações, desenvolvendo hábitos, assumindo costumes que, se no curto prazo nos dão prazer, no médio e no longo podem liquidar nossos sonhos.

Uma ação praticada com frequência, torna-se hábito e rapidamente em costume. Não prestamos muita atenção a nossas ações, mas elas podem, quando irrefletidas, resultar em conflitos de pequenas, médias ou grandes consequências. Se estamos habituados a falar alto em qualquer circunstância, ou a usar o som alto em nossos celulares, sem perceber podemos fazê-lo em um ambiente, como o ônibus, ou falar em um tom de voz que incomodará os que estiverem ao redor.

Entre os incomodados, haverá aqueles que evitarão conflitos, suportando a contragosto o que se-lhe dá como mera gafe de um usuário distraído. Porém, um dia haverá o que, por razões quaisquer, buscará o conflito, não se preocupando com as consequências, menos ou mais trágicas.

Conflitos nos transportes coletivos ou no trânsito, infelizmente, com certa frequência, terminam em violência e mesmo morte.  Isso ocorre porque um hábito particular, imposto aos outros por quem o pratica, ainda que involuntariamente, detona uma situação que foge ao controle dos que estão nela envolvidos. É assim que muitos sonhos ficam interrompidos definitivamente por ações, hábitos, costumes e valores que, a rigor, são contrários a esses mesmos sonhos.

Refletir sobre nossas ações, hábitos, costumes e valores, em face da coletividade de que fazemos parte, dos objetivos dessa coletividade e dos nossos próprios é uma forma de evitar todo conflito desnecessário. Sim, pois, para conquistarmos nossos sonhos e objetivos, é necessário enfrentar e superar os conflitos a eles inerentes.

No final das contas, ações, hábitos, costumes e conflitos que não nos aproximam, ou nos distanciam de nossos objetivos, ou põem em risco nossos sonhos ou a nós mesmos, é energia e tempo desperdiçados.

— Preciso discutir isso com os alunos.

— Ah, não vai fazer nada disso. Vai trabalhar a apostila que está bom demais — interpelou a diretora.

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Querem saber de uma coisa? Não vou fazer coisa nenhuma.

Hoje tive uma ideia que talvez ponha em prática numa de minhas turmas do Ensino Fundamental. Consiste essa ideia em estimular a fantasia dos alunos por meio de histórias sugestivas, oníricas, fantásticas, ou meramente fantasiosas, plenas de imagens visuais e sonoras, que remetam à memória ou à invenção de futuros imediatos ou remotos.

Feito isso, orientaria os alunos a empregarem estratégias para disfarçar suas letras, de maneira que se tornasse impossível, mesmo para os melhores amigos, reconhecer pela grafia o autor ou a autora da história que viesse a ser escrita - e aqui já estou denunciando o terceiro estágio dessa ideia: alunos e alunas seriam instados a produzir narrativas curtas, a partir dos estímulos oferecidos, e a registrá-las em letras disfarçadas. O penúltimo estágio dessa ideia seria cada aluno, cada aluna, assumir um codinome (que apenas ele ou ela e o professor saberiam). O último estágio corresponderia à circulação e leitura dos textos, livremente.

Fico imaginando o que essa despersonalização da autoria acrescentaria em termos de liberdade de escrita a cada um dos autores e autoras. Naturalmente o jogo de esconde-esconde não sobrevive se a possibilidade de ser descoberto não estiver implícita. Na verdade, o que confere graça ao jogo e exatamente esse risco. Seja por pistas deixadas inadvertidamente em meio à grafia disfarçada, seja pela menção e episódios comuns entre colegas, seja pelo uso de certa expressão, ou mesmo vício de linguagem, nem todos os pierrôs e colombinas permanecerão eternamente indescobertos - e é mesmo possível que nenhum deseje permanecer eternamente nessa condição de anonimato.

Haverá um momento em que as máscaras hão de querer ser retiradas, uma vez que o narcisismo de adolescentes é uma balestra cujo gatilho é de acionamento irrefreável: quanto mais esticada a linha e curvado o arco, mais próximo o momento fatal do disparo.

Querem saber de uma coisa? Não vou fazer coisa nenhuma. Dá muito trabalho.


Jeosafá é escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria) e  em maio deste ano, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora. Leciona para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

CORAÇÃO DE ESTUDANTE: Indivíduo, cidadão, ser humano

Encontro com estudantes do Colégio ECO, na Lapa, em 2013, a propósito de meu livro O diário secreto das Copas.
Notas de uma aula voluntária para os estudantes da 6ª. Semana Acadêmica de Educação Física e da Pedagogia da Faculdade Mário Schenberg (26/08/15) e para a Casa Pia Externato São Vicente de Paulo (24/10/15).

Relações de ensino-aprendizagem: Ética, Valores e Cidadania


Faculdade Mário Schenberg - Aula comunitária
26/08/15
Na conversa que tivemos recentemente, debatemos as sutis diferenças entre indivíduo, cidadão e ser humano.  Procuramos estabelecer os limites aceitáveis entre essas três dimensões de uma mesma realidade (a realidade humana). O tempo foi pouco para um maior aprofundamento, mas a verdade é que nenhum tempo do mundo seria suficiente para esgotarmos o assunto, sobre o qual oceanos de tinta têm sido gastos em compêndios e mais compêndios de filosofia, sociologia, antropologia, história, geografia e demais ciências ditas humanas.

Porém, tivemos sucesso ao pôr em foco o debate sobre as condições mínimas necessárias para existência do indivíduo, para a instauração do cidadão e para o entendimento razoável do que seja o ser humano.

Com contribuição do colega professor José Evaristo Silvério Netto, vimos que indivíduo, cidadão e ser humano são dimensões indissociáveis: não se oprime uma sem se violentar as outras duas; por outro lado, ao se promover uma, as demais também se desenvolvem obrigatoriamente.

Quando nascemos, somos um indivíduo da espécie. Nessa condição básica, somos incapazes de
Casa Pia Externato São Vicente de Paulo
Aula comunitária - 24/10/15.
prover nossa própria existência. Porém, incapazes de decidirmos por nossa conta, ao sermos acolhidos pelos demais membros de nossa espécie, somos introduzidos no âmbito da humanidade, que nos dias de hoje exige o imediato reconhecimento do direito à cidadania. Por isso é hoje (mas em outra épocas não) obrigatório o registro de nascimento, no qual uma humanidade específica (de um país, de um estado ou província, de uma cidade) faz constar o compromisso que ela assume conosco logo ao nascer, identificando pai, mãe, data e local de nascimento, naturalidade e nacionalidade. Ou seja, não se nasce humano: torna-se humano (nos mesmos termos que Simone de Beaovoir afirma: “Não se nasce mulher: torna-se mulher”).

Nossa discussão ficou bastante presa à polêmica de até que ponto a dignidade humana aceita que o indivíduo seja violentado para que permaneça vivo apenas em suas funções puramente fisiológicas. Vimos que essa é uma discussão ética bastante dramática, mas que não se deve resvalar para o terreno da moral, seja ela religiosa, política ou de grupo ideológico – pois se abriria aí a possibilidade de a moral de um grupo, portanto restrita, impor seus valores aos demais grupos que compõe o conjunto da humanidade.

Ora, mas o que é ética? O que é moral?

O assunto é extenso. Para fins absolutamente didáticos, abro aqui espaço para um quadro sinóptico comparativo (e todo conhecimento é um conhecimento comparado, já nos ensinaram os mestres das ciências da educação) menos para explicar, mais para investigar:

Quanto
A Ética
A Moral
Ao alcance
É ampla e busca alcançar a humanidade como um todo.
É restrita e válida apenas no interior de um grupo humano específico.
Busca encontrar nas diversas morais pontos de convergência que tornem possível a convivência humana.
Prescreve regras de conduta obrigatória para a constituição e sobrevivência do grupo.
Ao estabelecimento das normas de convívio social e humano.
Tende à incorporação das descobertas, inovações e revoluções científicas
Tende à manutenção das tradições do grupo e à resistência a mudanças.
À função
É o campo especulativo, da reflexão filosófica, do estudo, da pesquisa, das leis e normas gerais de convívio humano.
É o campo reprodução ideológica e dos costumes, da prescrição de normas de conduta e de controle do indivíduo.
À análise de fatos concretos
Tende à objetividade.
Tende à subjetividade.
Tende à síntese na forma de conceito generalizante a partir de observações de fatos humanos concretos.
Tende ao juízo de valor a partir das normas grupo social, convertidos em “pré”-conceitos e preconceitos.
Busca o possível e aceitável a partir dos pontos convergentes.
Busca o obrigatório e o compulsório a partir da ótica do grupo.
Mobiliza a razão.
Mobiliza a emoção.
Tende à mediação.
Tende à polarização.


O quadro acima poderia ser estendido e, a título de lição de casa, os estudantes poderiam ir opondo linha a linha elementos de ética e moral, de maneira a, organizando o que já sabem, compor um quandro mais completo a partir de suas próprias experiências e intuições. Porém, não me ofenderia se uma estudante dissesse: "Para que essa lição de casa?", ou, "Para que esse quadro?", ou ainda "Para que ética e moral?" - o que me obrigaria a estudar mais e a discorrer mais sobre o assunto (e isso tudo seria muito bom para mim e não só para essa eventual estudante inquieta).

Quando estamos à frente de uma sala de aula, ou de um grupo heterogêneo, precisamos refletir com o máximo cuidado sobre nossas ações e palavras, pois somos a um só tempo indivíduos, cidadãos e seres humanos éticos e morais.

Caso não nos coloquemos na posição de quem busca os pontos convergentes entre todos os indivíduos, cidadãos e seres humanos desse grupo heterogêneo (portanto composto diversas éticas e morais), fatalmente resvalaremos para uma verdadeira guerra de valores, na qual cada um, instigado pela nossa própria parcialidade, se sentirá autorizado a defender a sua própria ética e a sua própria moral, lançando, nesse caso, mão das armas necessárias para fazê-las triunfar sobre as outras a qualquer custo.

Se eu considero o MEU conceito de vida O conceito de vida, o MEU conceito de feio O conceito de feio, o MEU conceito de Deus O conceito de Deus, então eu estou autorizado a punir todos os que não concordam comigo, pois, nesse caso, eu, mais do que estar certo, sou a própria certeza.

Muitas vezes a sala de aula se torna o campo da punição, do medo e da esterilidade. Quando um aluno tem medo de errar, ele passa a repetir sem raciocinar tudo que o professor fala - e o mesmo vale para um líder diante de seus liderados, seja um pastor, um padre, um dirigente sindical ou político.

O erro é a oportunidade de diálogo entre professor e estudante, entre o líder e o liderado,  é o campo fértil da pesquisa, da troca de ideias em que todos dão e recebem. Porém, se eu, professor, líder, estou sentado no trono das certezas, o que faz um aluno ou liderado a não ser assumir um papel secundário, submisso, sem brilho, opaco como o alumínio (que na natureza é fosco – daí vem a palavra “alumno">aluno”), que só brilha com uma bela esfregada do saber do professor (e mesmo nesse caso ele não faz mais que refletir a inteligência e a sabedoria do mestre)?

No entanto, a carreira de professor (e do líder consciente não manipulador) é eminentemente humanista, ou seja, seu papel  é o de contribuir para que a inteligência, as emoções, as habilidades do aluno se desenvolvam para que ele, deixando paulatinamente a condição de aluno (eterno dependente do mestre, do líder), se converta de uma vez para sempre em eterno ESTUDANTE – um indivíduo, um cidadão, um ser humano integral que pensa, age, cria por conta própria e assume os riscos dessa sua liberdade de pensamento e expressão, liberdade que precisa ser ensinada e compartilhada também.

O que queremos em nossa sala de aula, em nossos auditórios e praças públicas? Um eterno aluno (ser humano incompleto, cidadão de segunda categoria, em processo, ainda não de posse da liberdade inerente à sua condição humana) ou um estudante?

Um aluno jamais confrontará a ética e a moral de seu mestre ou líder, mas um estudante questionará o tempo todo a ética e a moral de seu professor, mas de sua família, a sua própria, a de seus pares, a da  sociedade em que está inserido. A ética e a moral hoje vigente correspondem a suas expectativas de indivíduo, cidadão e ser humano?

Penso que a maior tarefa daqueles que se dedicam à educação nos dias de hoje é de auxiliar a que nossas crianças, adolescentes, jovens e adultos sentados (por que eternamente sentados?) nos bancos escolares façam a transição difícil da condição de alunos [(“alumno = a (sem) lumno (luz)” opaco por natureza] à de estudante – que mesmo na mais tenra idade está coberto de razão quando pergunta à professora ou ao professor: Por que isto? Por que aquilo? Por que essa aula? Por que essa lição de casa? Por que essa tarefa tão fácil? Por que essa prova tão difícil? Ou... por que essa greve?

Penso que quem não estiver preparado para essas perguntas, deve refletir profundamente sobre o que faz à frente de uma sala de aula, ou de um auditório, ou de uma praça pública. Se não é para formar indivíduos, cidadãos e seres humanos livres, no mais amplo sentido desse termo, então para que mesmo? Aliás, por que será que a canção de Milton Nascimento se chama Coração de Estudante, não “coração de aluno”?

Os temas bullying", assédio e preconceito serão tratados na segunda parte, que em breve publicarei neste mesmo blog.


Jeosafá é escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou o ano passado O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria). e lança em maio deste ano, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora.

domingo, 29 de julho de 2012

Leitura e Paródia

Este texto, foi publicado na década de 1990 em meu LIVRO DO PROFESSOR, volume sobre práticas de ensino de literatura para os Ensinos Fundamental e Médio, publicado pela Editora Plêiade. Nas próximas postagens, publicarei os demais, com eventuais atualizações.



Rir é o melhor remédio


COTA ZERO
Stop.
A vida parou
ou foi o automóvel? 
Carlos Drummond de Andrade

Fato ocioso para a literatura é o que o autor quis dizer com o que escreveu. No entanto não há dúvida mais presente e insolúvel do que esta. E, porque insolúvel, deve ser descartada?

Que pretenderá Drummond ter dito com o poema com que iniciamos este texto? Ponhamo-nos todos a fazer análises, conjeturas, indagações que vão da filologia à semiótica. E estejamos certos de que nenhuma explicação responderá à nossa questão inicial: nenhuma leitura que fizermos de nenhum texto será a leitura do autor: será sempre a nossa leitura. E, mais importante que nossa, uma nova.

O poema de Drummond é uma realidade textual. Ponhamos o poeta a lê-lo uma, duas, dez vezes. Cada leitura do poeta será uma paráfrase do poema. E por que a leitura do poeta é mais válida do que qualquer outra?  E por que haveria, dentre todas as leituras feitas pelo próprio poeta, uma que fosse a verdadeira, a original, a genética? Eis aqui uma questão a ser explorada.

Objetividade e subjetividade

Nas escolas, a maior parte do ensino de leitura restringe-se à decodificação mecânica dos signos linguísticos, silenciosa ou vocal.  O aspecto decodificador é o mais pobre e inexpressivo da atividade de leitura. Poderíamos chamá-lo até de grau zero da paráfrase, já que a referência ao texto que se lê é direta e a atualização deste na leitura é feita à base da quase não-ação do sujeito-leitor: a atividade do leitor restringe-se ao papel decodificador, não desdobrando-se em atividade interpretadora, portanto subjetiva.

Num outro estágio do ensino de leitura, joga-se com a hipótese de que haveria uma maneira correta de se ler o texto. Com base nessa hipótese, facilmente se encontrará falhas na leitura dos textos feita por alunos e mesmo pelo professor. Porém, falhas à luz de qual leitura correta? A do autor? A do professor, entendido como especialista da área? A dos críticos que contribuíram na formação do professor? A do senso comum?

O fato é que toda leitura é uma paráfrase. E se a leitura do professor é uma paráfrase mais sofisticada, nada impede que ela não tenha nada a ver com o texto parafraseado, posto que a subjetividade é inerente a sua ação.

Então, qual é o problema?

O problema é que, enquanto fica-se à caça do que “teria sido a intenção do autor”, atividade frustrada na origem,  ou de uma verdade única que explique o texto, perde-se a oportunidade de explorar o texto na sua concretude e nas suas infinitas possibilidades de leituras, todas relativas, nunca absolutas, portanto, mais corretas ou menos corretas a depender do ponto de vista, dos critérios adotados e do desempenho tanto de quem lê quanto de quem eventualmente ouve a leitura.

Aliás, cada um lê em um texto o que quiser, inclusive o que está escrito. Ou não? Se não, então a paródia não existe. Sucede que a paródia existe.


Paródia e paráfrase

A realidade de que podemos ler num texto tudo quanto quisermos é exposta pela paródia. Enquanto a paráfrase encerra uma respeitosa reverência ao texto parafraseado - o que é uma excelente máscara para a atividade ostensiva do sujeito parafraseador, a paródia erige-se como peça abertamente desprendida do texto fonte.

A paródia explicita a subjetividade do sujeito que a constrói – contrariamente à paráfrase, que a mascara – e afirma o texto parodiado por constituir-se polo antitético, negativo e destruidor.

De que modo devemos ler  “Cota Zero” de Drummond? Devemos lê-lo rindo? Ou talvez com voz monótona? Devemos lê-lo com expressividade ou com uma voz grave e neutra? Devemos imitar Drummond? Mas, como era mesmo Drummond? Tímido? Como será ler um poema timidamente? Haveria mais de uma forma de leitura tímida? E se Drummond se permitisse, vez por outra, menos sisudez?

E mais, por que deveríamos ler um poema de Drummond à maneira drummondiana, se o que nos atraiu no seu poema foi o que vimos de nós nele, poema?

Questionar é sempre um ótimo passo, se bem que sempre em falso, porém, isso aqui não vem ao caso, e uma vez toda e qualquer leitura implica em risco de maior ou menor grau, então assumamos esses riscos e leiamos o poema à nossa moda. Mas qual mesmo é o nosso modo de ler?

A realidade é que se só temos uma maneira de ler, então somos muito pobres. Pobres como talvez não haja maior pobreza.


Paródia: um caso

A paráfrase é uma paródia amaneirada, que rouba do texto parafraseado a sua autoridade e que mascara a subjetividade do parafraseador. Penso que no ensino de leitura ou de literatura devemos acusar a paráfrase como Cristo acusou aquele beijo. A paráfrase é falsa. E não vai se enforcar nunca.

Numa atividade de leitura, entendida aqui como prática vocal e interpretativa, portanto hermenêutica – a leitura silenciosa não nos interessa aqui –, a paródia permite a destruição dos textos por meio de todas as armas que o sujeito parodiador detém. A leitura paródica permite, por isso, que o sujeito-leitor mobilize toda sua capacidade de leitor-apreendedor e criador, produtor de sentidos.

Todo sujeito possui meios de penetrar os sentidos possíveis de um texto. Se não o faz é porque os seus meios são desmobilizados ou simplesmente censurados, no caso da escola, muitas vezes pelo próprio professor, que considera válidos – dada a sua crença na paráfrase – somente os seus instrumentos de averiguação, sacralizados pela sua formação especializada – e se houvesse somente leitores especializados a própria literatura como a conhecemos hoje inexistiria!

Ao montar uma leitura paródica, o estudante é forçado a inventar os cânones da sua própria teoria literária. Em atividades de leituras paródicas, durante os muitos anos de docência para a Educação Básica e para o Ensino Superior, percebi que cada estudante realizava uma gama de tipos de paródias e não outra. Isto porque construiu em sua mente um instrumental de particular teoria literária que validava certas destruições de textos, mas que evitava outras.

Na leitura de um poema de Ferreira Gullar, “Verão”, uma turma toda de 7ª. série chegou à conclusão de que o poema não se prestava a uma leitura “melada”, lírica, por causa da incidência dos “ãos” e da mensagem de resistência que claramente encerra.

Isso, não seria um grau bastante elaborado de consciência acerca dos problemas técnicos da leitura e da literatura? O cruzamento de explicações de ordem fonológica com explicações de ordem semântica foi mobilizado pelas inúmeras leituras paródicas realizadas – que só eram certas ou erradas à medida em que tudo o é.

Todavia essas paródias não conseguiram desmontar um sentido fortemente construído pelo Gullar-poeta. E exato aquilo que não foi possível desmontar por meio da paródia é que saltou aos olhos dos sujeitos interpretadores que, vencidos, por descobrirem os limites das suas ações interpretativas, venceram, por refugarem conscientemente atribuições de sentido que o poema não admitiria.

Paródia: outro caso

Grande vantagem da leitura paródica é que ela, construída sobre texto parodiado, autoproclama-se autônoma, diferentemente da paráfrase, que depende de comunicação recorrente com o texto fonte. E nisso a paródia põe em evidência as habilidade do leitor-interpretador.

Parafrasear o professor é o que todos fazemos quando não desejamos “complicar” nossas “notas”. Contudo, a paródia não tem essa função referencial e utilitária: é sempre poética.  Um leitor que parodia não apenas apreendeu uma gama dos sentidos possíveis do texto de que se vale, mas  excluiu outros tantos sentidos, e criou sobre o texto parodiado o seu próprio texto.

Sobre este aspecto verificamos, nas centenas – talvez milhares – de leituras realizadas nos cursos que servem a esta nossa reflexão que a paródia mal construída acabava virando uma paráfrase bastante aceitável. No entanto, os próprios estudantes pugnavam por afastar-se da paráfrase, tão evidente ficou tratar-se de um recurso modestíssimo do processo de ensino-aprendizagem.

Outro caso: paródia faz milagre!

Houve o caso particular de dois estudantes com extrema dificuldade de leitura, quer entendida como atividade interpretadora, quer entendida como atividade decodificadora, quer entendida como atividade vocal. Gago um e “envergonhado” o outro, por motivo da sua leitura silábica e de sua auto-atribuída feiura física, ambos excluíam-se das atividades coletivas. Durante leituras “normais”, parafrásicas, não houve o que os demovesse da decisão de auto-isolamento, nem o que os tirasse da situação estéril mas confortável em que se meteram.

Com as atividades de leituras deliberadamente paródicas coletivas a turma sentiu-se mais livre e mais segura em relação às censuras e críticas do professor e dos colegas. O fato de que inicialmente toda a turma teve dificuldades em apreender as técnicas experimentadas igualou todos na situação de iniciantes. Descobriu-se por fim que o estágio de prática de leitura pública da imensa maioria era semelhante: gaguejos, omissão de palavras, os olhos a perderem-se de linha e mesmo de parágrafo, dicção ruim por conta da falta de prática – ao ponto de realizarmos exercícios faciais para melhorar a pronúncia geral de todos.

Nossos amigos venceram a autocensura, que era mais violenta do que a censura dos colegas e do próprio professor. Desandaram a praticar em casa, orientados particularmente pelo professor e perderam o medo da exposição.

Numa atividade que consistia na leitura de um texto em velocidade crescente descobriu-se que o nosso amigo gago lia perfeitamente bem em velocidade crescente. E quanto maior a velocidade, melhor lia. O outro, o tímido, ao perceber que progredia, afundou-se em leituras domiciliares em frente ao espelho. Relatou que tinha mais dificuldades quando ficava ansioso, por isso queria, ao ler diante do espelho, ver a cara que tinha ao errar a pronúncia.

O caso acima ilustra como o próprio estudante foi à luta contra suas limitações, inventando inclusive uma  técnica bastante defensável: a do espelho. Sua leitura saltou de silábica, no curso de pouco tempo, para um estágio mais corrente. Já com a sua feiura, não houve o que fazer – não vou aqui perder a piada, uma vez que ele a deu de bandeja.

Paródia: sem contraindicações

Os estudantes, ao montarem suas leituras paródicas, mobilizaram todos os seus conhecimentos, selecionando entre eles os adequados aos propósitos desejados. Todavia, tinham grande consciência de que aquelas eram suas leituras. Passaram a pugnar pelo direito de que suas leituras fossem aceitas, debatendo questões de ordem literária, filosófica, gramatical e mesmo idiossincráticas. A leitura do professor foi entendida como mais uma, dentre inúmeras possíveis.

De toda essa atividade o que mais importa é que a prática de leitura paródica mobilizou os conhecimentos dos estudantes. O texto em estudo foi mastigado, digerido, destruído, reconstruído sob os ângulos mais surpreendentes e o texto, a obra, foi mantida no centro do estudo o tempo todo. Acreditamos que isto é mais importante do que emitir receitas. E, para não perder também esta piada, vamos a uma receita.


RECEITA

  • Selecionar um trecho de sermão do Padre Vieira. Distribuir cópias desse trecho aos estudantes.  Solicitar aos estudantes que acompanhem a leitura do professor. O professor inicia a leitura de um modo e altera-a paulatinamente.
  • O professor prossegue a leitura – acompanhado pela classe – desviando-a para a imitação de um discurso de tribuna.
  • O professor, acompanhado pela turma, faz uma outra leitura, agora irônica, do texto.
  • O professor escolhe um estudante para realizar uma leitura paródica, a qual todos acompanharão em voz alta.
  • O professor propõe tipos de leituras públicas individuais selecionando estudantes para realizá-las. Os restantes estudantes ouvem as leitura feitas pelos colegas, criticam-na e realizam as suas próprias leituras, que serão também alvo de comentário do professor e dos outros colegas.
  •  O professor separa em grupos os estudantes, que realizarão leituras concorrentes do mesmo texto.
  • O professor organiza um menu  de leituras (romântica, modernista, exaltada, pessimista, irônica, sarcástica etc., de acordo com o item curricular em estudo) e os estudantes propõem-se a realizar esta ou aquela, sendo avaliados pelo público da sua própria turma acerca do grau de eficácia e dos desempenhos alcançados.

Indicações

Aconselhável para todos os casos.

Contraindicações

Não se tem histórico.

Reações adversas

No princípio podem ser observados processos de resistência, que todavia cessam diante da manutenção da terapia.

Advertências 

No estudo das escolas e dos estilos literários, pode-se avaliar até mesmo a profundidade de entendimento do estudante pela leitura pública dos textos literários. A leitura mecânica dos textos literários indica baixíssimo grau de apreensão dos sentidos envolvidos. 

A administração de qualquer nova terapia deve seguir acompanhamento cuidadoso. A associação desta terapia com música pode causar dores-de-cabeça na sala ao lado. Particularmente se pretender-se parodiar um texto usando Carmina Burana ou o Bolero de Ravel como base musical.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Educação e Direitos Humanos

Diversidade e complexidade
 Muitas correntes teóricas e filosóficas no campo da pedagogia, algumas das quais em momentos específicos tornaram-se dominantes, enfatizaram o papel homogeneizador da educação, estabelecendo um sinal de igualdade entre coesão social e harmonia por meio do aplacamento das diversidades sociais.

Não foram nem são poucos, entretanto, os educadores a desconfiar dessa missão “homogeneizadora” e críticos dos mecanismos explícitos ou velados dessa “harmonia”, cujo ingrediente e fermento é a “disciplina”, no mais das vezes entendida como instrumento coercitivo, de mão única e de cima para baixo.

Eleita como objetivo final, a padronização de comportamentos põe a escola na difícil posição de instituição voltada para o esmaecimento das diversidades individuais e de grupos. A lógica por trás desse processo de aniquilamento de diferenças e eleição de igualdades redundantes é a de que as particularidades constituem desvios perniciosos cujo sufocamento contribui para o desenvolvimento cognitivo e moral dos indivíduos.

Estamos aqui no âmbito de um pensamento reducionista e monológico que, embora predomine no conjunto do sistema educacional, é incapaz de responder à realidade complexa dos dias atuais, na qual a escola está mergulhada e à qual não pode dar as costas sem pôr em risco sua própria existência enquanto instituição.

A suposta missão homogeneizadora da escola resvala invariavelmente para a standartização, para a padronização de comportamentos, condutas, processos, objetivos, linguagens, e se o emprego do uniforme escolar é elemento dessa lógica, está longe de ser o vilão de todo esse processo, embora sejamos tentados muitas vezes a elegê-lo como tal (a verdade é que o uniforme não é nem bom nem mau, mas está intimamente ligado à filosofia e ao projeto da instituição escolar, podendo refletir lógicas autoritárias ou democráticas).

De um ponto de vista conservador, que é o predominante hoje, a homogeneização, eleitos objetivos de ensino-aprendizagem de longo prazo, visa estabelecer linhas de exclusão de desempenho e de conduta escolares, para aquém das quais tudo é aceitável, desde que confirme a homogeneização, e para além das quais todo diferente é rejeitado e estigmatizado, desde uma simples nota de prova até um comportamento tido como inaceitável de um ponto de vista tido como absoluto.

A dificuldade de a escola trabalhar com o diferente evidencia-se por toda parte, e chega a ser constrangedora quando esbarra na legislação, que, por modernizar-se nos últimos anos, exige mecanismos de inclusão frente aos quais a instituição escolar mostra-se despreparada, perplexa, insuficiente e supreendentemente resistente.

Exemplo disso é a exigência de acessibilidade para deficientes físicos, em relação à qual sequer as escolas públicas brasileiras se pronunciaram efetivamente – e o prazo para adaptação arquitetônica expirou recentemente. Exemplo disso é também é a lei que institui o ensino de conteúdos de cultura africana e de afrodescendência no Ensino Básico, que no Estado de São Paulo necessitou de ação Ministério Público para chegar ao planejamento escolar – sob a ameça de punição aos gestores das unidades públicas e privadas, que sequer se tinham inteirado da lei – no Brasil, ao que parece, e estranhamente, a lei tem estado na vanguarda das transformações.

A harmonia, numa escola homogeneizadora, avessa à diversidade, precisa a todo custo ser alcançada. Isso porque qualquer desempenho aquém do esperado e qualquer comportamento identificado como desviante, no âmbito escolar, se afigura como ruído indesejado e elo defeituoso da cadeia linear de reprodução do saber.

Numa tal perspectiva, o diferente, seja de que natureza for, é aberração, anomalia e mácula do processo de ensino-aprendizagem a conspurcar, quando, de um ponto de vista mais problematizador é, sem sombra de dúvidas, elemento perturbador de uma paz estéril, a colocar em pânico o “coro dos contentes”, a evidenciar o quanto é estranha a própria existência de um continuum indiferenciado numa realidade altamente heterogênea.

Para legitimar essa missão homogeneizadora, cujo veículo é a harmonia conquistada a golpes de Regimento Interno e de ferramentas de “apoio” educacional reunidas sob o termo “disciplina”, a escola avessa à diversidade fantasia a possibilidade de se estabelecer como locus paradisíaco imune a conflitos e como instituição formadora de inteligência e moral, quando, ao rejeitar o diverso, na realidade, o que faz é reproduzir saberes, que só lhe chegam com anos de atraso, recalcar potencialidades no nascedouro, desperdiçar criatividades latentes e virar as costas com desprezo para o saber e a emoção que cada um traz dentro de si quando cruza o portão de entrada escolar.

As lógicas que regeram instituições, entre as quais a escola, durante os séculos XIX e XX foram invariavelmente hierárquicas e homogeneizadoras. Porém, se já para esses séculos essas lógicas revelaram suas insuficiências, que dizer de um mundo que busca a todo tempo articulações comunitárias em rede?

Em lógicas hierárquicas e homogeneizadoras, o elemento perde sua autonomia ao ingressar no conjunto, bem como sua existência para o – e no – conjunto só está garantida desde que a lógica da subordinação seja rigorosamente aceita e seguida. Noutras palavras, estão consubstanciadas fantasias ideológicas de mimetismos sociais, e abolidos por decreto conflitos incontornáveis, encarados no âmbito dessas lógicas como vícios a serem sanados.

Ora, desde que o conflito é inerente ao próprio sujeito, e sendo impossível que não haja conflitos de todas as naturezas, ordens e grandezas no interior de um grupo social, a negação dos conflitos é a própria negação dos grupos sociais e, em última instância, dos próprios sujeitos.

Se adotar um ponto de vista complexo para tratar da realidade igualmente complexa que a circunda e penetra, não resta outra coisa para a escola a fazer a não ser assumir a natureza conflituosa do processo de ensino-aprendizagem e acolher a diversidade em seu interior como elemento fecundante.

Isso não apenas no que tange a objetivos estritamente cognitivos, pois crianças e jovens não abandonam seu corpo físico em casa para ingressar nas dependências escolares – tampouco é possível que para atravessar o portão da escola se livrem de seu corpo psíquico, em que emoções e pensamentos borbulham e fervem ao menor estímulo, e menos ainda é provável que se demitam de seus grupos sociais a cada toque do sinal para entrada na sala de aula.

Sem dúvidas que, para uma instituição que lida muitas vezes com milhares de indivíduos, torna-se difícil encarar as muitas e complexas realidades que a compõem. Sem dúvidas que um corte reto, para além do qual ficam excluídas ou anuladas todas as diferenças, possibilita um processo de massa, em série, em escala, barato em muitos aspectos e eficaz em outros.
Porém, nesse instante não se está falando de escola, mas de fábrica, nos moldes dos séculos XIX e XX, com a qual a escola foi e ainda hoje majoritariamente é confundida.

No âmbito dessa confusão, diretores e superiores hierárquicos são elementos controladores de um processo baseado na reprodução a partir de modelos, professores são operários condicionados a certas ações (as aulas) propiciadas por ferramentas (as disciplinas ou “matérias”) com o objetivo de modelar a matéria prima (os alunos), que, ao cabo de um certo tempo, estão prontos para abastecer as prateleiras do mercado de trabalho. A metáfora da fábrica de salsichas já foi amplamente empregada para tratar do assunto, e Millôr Fernandes não terá sido o único a se socorrer dela.


Trabalhando com a complexidade e com a diversidade

Sucede que escola não é fábrica, professores não são operários e crianças e jovens não são matéria prima de salsichas simbólicas ou sociais. Afastado do horizonte escolar a busca fanática pela homogeneização de comportamentos e condutas e pela harmonia do silêncio a todo custo, o que se revela é a realidade complexa, conflitiva e, às vezes, aflitiva. E cabe à escola não maquiar a realidade, mas propor-se o desafio de compreendê-la e transformá-la, a partir da articulação de seus agentes e da mobilização de suas energias humanas.

Em busca de seus objetivos, a escola não necessita de anular diferenças e diversidades: bem ao contrário disso, para justificar sua existência no mundo contemporâneo, a escola precisa convocar as diferenças que, articuladas, são a farinha e o pão do processo de ensino-aprendizagem, diferenças que são na realidade expressões de identidades individuais e de grupos, existentes e vivas mesmo que a escola as reprima ou feche os olhos para elas.

O reconhecimento e o acolhimento das diversidades torna possível à escola, que nunca deixou de estar mergulhada nelas, se apresentar aos muitos agentes que a compõem, circundam e interpenetram, como espaço solidário de convergência, no qual os diversos segmentos têm a possibilidade de se articular a partir do debate democrático em torno de valores e com vistas a objetivos eleitos comunitariamente.

É uma ilusão acreditar que conflitos possam ser abolidos ou resolvidos sempre harmonicamente: conflitos precisam ser encarados democraticamente para que os agentes envolvidos se manifestem em busca de soluções efetivamente comunitárias, caso em que a harmonia se estabelece como resultado de um processo contraditório, desarmônico, e como acordo voluntário de convivência, em que há ganhos, mas também perdas, não como condição apriorística isenta de riscos.

A própria ação de reconhecer a existência e de identificar conflitos já é dolorosa – que dizer então da construção de um pacto de ensino-aprendizagem que assuma o conflito como motor de sua razão de ser.

Porém, que atitude melhor tomar: ignorar as diferenças, atribuir ao diferente a “culpa” pela diferença e penalizá-lo em favor de uma homogeneidade que não existe em parte alguma, ou admitir que todos somos diferentes e, de posse dessa constatação, buscar articulações solidárias e comuntárias, não hierárquicas, em busca de objetivos comuns?

Crianças e jovens são diferentes afetiva, biopsíquica, intelectual e socialmente, e, no interior da escola, compõem um grupo complexo, em que identidades e diferenças são igualmente elementos constituitivos, e ainda cujos interesses não coincidem inteiramente nem com os de outros segmentos da instituição, nem com os da instituição escolar tomada em seu conjunto. Por seu turno, o corpo docente é também composto de indivíduos dotados de particularidades e idiossincrasias.

Naturalmente que é mais difícil reconhecer a complexidade do corpo discente do que tomá-lo como um todo homogêneo e indiferenciado. Também é mais fácil tratar o corpo docente como um conjunto fundado na identidade de interesses e nada além disso. Mas então, nos dois casos, seria honesto admitir que se está na superfície das coisas, e que a rejeição das dimensões políticas e individuais dos membros desses dois segmentos escolares é um confisco de seus direitos, uma agressão à cidadania e um desserviço para com a democracia.

Quem é que não sabe que muitas das dificuldades do processo de ensino-aprendizagem residem em situações que pouco têm a ver com técnicas ou com práticas pedagógicas? Aliás, que prática de ensino restrita que dá conta conflitos cuja origem reside além dos muros da escola?

O estabelecimento de um verdadeiro pacto de ensino-aprendizagem só é possível encarados os indivíduos em sua complexidade de conflitos, que envolve cognição, afetividade, corpo biopsíquico e relações sociais.

Estabelecer objetivos bem como estratégias de ensino-aprendizagem ignorando-se a complexidade das diversidades constitui, além de lamentável desperdício de energias humanas, de subjetividade e de talentos, uma fantasia autoritária que, para se concretizar, sacrifica a humanidade verdadeira, diversa, plural, imperfeita, que sente dor e prazer, que se emociona e que despreza, que dá o melhor de si e que às vezes molhas as calças.

Em uma de suas conferências, um já idoso Sarte, acometido de incontinência urinária, teria solicitado licença à platéia, que o assistia interessada, para trocar as calças, se dirigindo a ela mais ou menos nos seguintes termos: “Desculpem o incômodo, mas, quando se é humano, é preciso ser humilde”. A diferença pode ser encarada como menosvalia, porém, pode ser encarada como particularidade. Pode ser tratada discriminatoriamente, ou pode ser celebrada como contribuição do indivíduo para com o todo.

Ao referir-se com dignidade ao incidente que expôs sua condição particular durante uma situação pública, Sartre chamou a atenção para o fato de que ele em nada ficara diminuído com o imprevisto, afinal a velhice tem suas próprias desvantagens, que bastam por si e não necessitam de outras além daquelas propiciadas pela natureza.

Os movimento gerais do mundo contemporâneo apontam para o acolhimento das diferenças como prática desejável de aprofundamento da democracia. Lembremos que crianças, idosos e mulheres já foram considerados seres humanos de segunda categoria, mercê de suas particularidades tidas como imperfeições. No Ocidente, negros e índios já foram considerados sem alma e judeus foram por muito tempo tratados como não-pessoas, pelas mesmas razões ou por razões presididas pelas mesmas lógicas.

A história é pródiga em relatos resultantes dessas formas de encarar outro, e não por acaso imediatamente após a Segunda Guerra a ONU é organizada e a Declaração Universal dos Direitos Humanos é redigida e assinada, como reconhecimento de que a diversidade deve ser respeitada. Se não for uma extrapolação impertinente, poder-se-ia mesmo dizer que a DUDH reflete a busca por um pensamento mais complexo aberto ao diverso e que, com as limitações do pós-Guerra, o acolhe com solidariedade.


Democracia, escola, complexidade e diversidade
 Assumir uma atitude democrática no campo das relações de ensino-aprendizagem exige que se ultrapassem os limites estritamente políticos implicados nessa postura, afinal, respeitar a opinião divergente de um adversário político é muito menos difícil do que se expor a uma manifestação inusitada de raiva de um indivíduo, cujas conseqüências podem transitar toda a escala de comportamentos, da indiferença ao homicídio ou ao suicídio.

A escola pode fazer de conta que é imune às particularidades, todavia o recalque dessas particularidades não as anula: apenas faz com que elas, reprimidas, se expressem de outras formas, em outros lugares e em tempos imprevisíveis. Ao dar de ombros para as particularidades, a escola perde uma excelente oportunidade de, acolhendo o diverso de cada um, pôr em movimento energias criativas imensas. Acolher o indivíduo, com todos as suas potencialidades e limites, é reconhecê-lo inteiro.

No pacto de ensino-aprendizagem estão implicados todos os seus agentes, com todas suas respectivas bagagens de esperanças e frustrações. Compartilhar essas bagagens permite o estabelecimento de relações sujeito-sujeito, relações que, quando recalcadas, redundam em embotamento da criatividade, frustração de energias emocionais, intelectuais e físicas de educadores e de educandos, sem maiores proveitos, com muito desgaste e com ainda mais perdas simbólicas e de horizontes individuais e coletivos.

Facilitar o processo de ensino-aprendizagem, numa perspectiva democrática e aberta à complexidade do mundo significa optar por um caminho trabalhoso de diálogo, de esforço de mútua compreensão, mas que tem como ganho inestimável a instauração de momentos e espaços de convivência solidária, cuja premissa é a sincera incorporação dos conflitos, assumidos como parte legítima desse mesmo processo contraditório, complexo, arriscado (para Clarice Lispector a vida não vale sem risco) mas fecundo e verdadeiro

Ao invés de aplacar os conflitos, entendidos como obstáculos a serem removidos para que sejam atingidos objetivos educacionais, o processo de ensino-aprendizagem voltado para a verdadeira constituição de valores democráticos deseja a manifestação deles, pois isso dá condições a que sejam desobstruídos mecanismos individuais e coletivos essenciais à produção do saber.

Encarar a realidade por meio de um pensamento complexo é, assim, ajustar as expectativas à própria natureza complexa da realidade, que é dinâmica, imprevisível e sem roteiro previamente estabelecido. E se, por um lado, o reconhecimento disso acrescenta um forte elemento de insegurança em todas as ações humanas, que podem ou não dar certo, por outro lado, permite uma grande liberdade no tratamento das coisas do mundo e uma ampla possibilidade de articulações de energias psíquicas e sociais criativas que, de outro modo, ou são desperdiçadas, na melhor das hipóteses, ou eclodem caoticamente, sem controle e com diversos graus de violência, de que temos notícia todos os dias pelos jornais impressos e televisivos, e pelas resvistas e internet, isso quando não estamos diretamente implicados nela como causadores ou como vítimas.


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