Mostrando postagens com marcador Preconceito. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Preconceito. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Desde a queda do Império Romano, a periferia devora o centro

Aula comunitária a estudantes da Faculdade Sumaré - III Semana Acadêmica de História - Zona Leste

Literatura na periferia ou literatura da periferia?

A propósito da onda de manifestações literárias, das mais variadas dimensões e formas, nas periferias de São Paulo, conversei na noite de ontem (07/10/15) com os estudantes da Faculdade Sumaré, no evento da III Semana Acadêmica de História.

Como há mais de trinta anos bato cabeça pela cidade, coletando depoimentos, realizando reportagens fotográficas, registrando histórias para escrever meus romances e poemas, quis ouvir dos estudantes o que eles consideravam "periferia" e que elementos caracterizariam, para eles, a realidade representada por essa palavra-conceito.

Num primeiro momento, a palavra foi associada a aspectos negativos da geografia da cidade: distância do centro, falta de saneamento básico, atendimento de saúde precário, problemas de moradia, transporte e segurança, limitadíssimas opções de lazer etc. etc. etc.

No entanto, quando combinamos de elencar elementos positivos relacionados à periferia à qual nos referíamos, particularmente a Zona Leste, onde o curso de História da Faculdade se situa e onde os e as estudantes moram, uma contradição se estabeleceu: se havia aspectos positivos em quantidade, por que assumir uma postura depreciativa em relação a "nossa" condição periférica.

Nesse momento, fizemos uma reflexão sobre a dialética centro-periferia, e refletimos sobre as múltiplas dimensões dessa dialética. Periferias só existem em face de seus polos opostos, os centros: se há centros políticos, econômicos, ideológicos, sociais, culturais, científicos, há suas respectivas periferias.

Do ponto de vista do poder, sempre os centros se instalaram como polos de exploração de periferias, dividas e mergulhadas na pobreza, na penúria e na injustiça. O Ocidente é pródigo em exemplos dessa natureza.

O Império Romano expandiu-se até onde pode, promovendo guerras e submetendo povos mais fracos, postos à margem de seu esplendor, mas abastecendo-o de mão de obra escrava, riquezas minerais e alimentos. Quanto mais guerreassem entre si (o Império estimulava isso com a legenda "dividir para governar"), mais frágeis se tornavam essas periferias e, por conseguinte, mais eram exploradas a níveis humanamente insuportáveis.

Muitos pensam, tendo nos filmes de Hollywood a única referência, que a queda do Império Romano (no Ocidente, em 476 d. C; no Oriente em 1453) se deveu a uma batalha sangrenta com heróis da civilização sendo derrotados por vikings brutais e ignorantes.

Porém, a derrocada do mais longo Império da história foi menos glamoroso. No Ocidente, foram quase quinhentos anos de imigração de populações miseráveis para Roma - miséria promovida pela mesma Roma, que ao saquear as periferias do Império, não deixava outra alternativa aos povos vitimados a não ser buscar vida melhor onde diziam que ela havia.

Os impérios europeus que se erigiram a partir das Grandes Navegações a partir do séc. 16, trilharam o mesmo caminho de Roma. Portugueses, espanhóis, ingleses, franceses, alemães, belgas, holandeses, lançaram-se sobre outras partes do mundo submetendo-as pela força dos canhões e da escravidão. Para eles, não havia dúvidas sobre quem era o centro e quem era a periferia, quem tinha alma (e por isso estava autorizado a dominar) e quem estava desprovido dela (portanto, estava obrigado, por sua própria condição "sub-humana", a curvar-se e levar seu senhor nas costas). Africanos, chineses, indianos, povos ameríndios compreenderam bem cedo o peso da expressão "não civilizados", empregado por europeus para definir o papel desses povos em seu sistema colonial e neocolonial.

Porém, durou bem menos tempo para esses Impérios se desfazerem e, ao final do séc. 20, praticamente todos eles já tinham sido enviados de volta para casa pelas guerras e processos de independência o Oriente, na África e na América. Tanto quanto Roma, em menos tempo, esses centros, essas metrópoles, foram devoradas por suas periferias. E continuam a sê-lo.

As ondas de imigrantes que atravessam  o Mediterrâneo rumo à Grécia e à Itália (muitos na verdade morrem na travessia, mais de 3500 no só no primeiro semestre deste ano), ou que agora buscam a pé os Bálcãs para atingir a Alemanha, são uma nova invasão bárbara, que seguramente devorará a Europa que hoje conhecemos.

As grandes capitais europeias já são hoje polos cosmopolitas, em que religiões as mais diversas, vindas das mais distantes periferias, se misturam. Com a destruição do Oriente Médio e da África, promovida por norte-americanos e europeus, não resta outra alternativa aos povos dessas regiões que tiveram seus parques industriais aniquilados, suas infraestruturas urbanas implodidas por seguidos bombardeios, sua área rural de plantio e pecuária arrasada por combates sangrentos, a não ser imigrar - e para onde? para o centro econômico mais próspero, mesmo que ele fique a milhares de quilômetros de distância, mesmo que ele fique além do mar.

Esse processo se dá em escala macro, global, mas também se dá em escala micro, local. Hoje, os próprios centros econômicos, políticos, socais têm suas periferias internalizadas: suas próprias cracolândias, suas próprias faixas de gaza, suas próprias áreas de refugiados - e aqui não se trata de figura de linguagem: Londres, Paris, Berlin, Nova Iorque, São Paulo entre outras metrópoles do mundo, são destino de ondas de imigrantes e refugiados que, assim, trazem consigo sua identidade, sua cultura seus sonhos e frustrações.

Daí que assumir como estigma o termo-conceito "periferia" não faz sentido, pois, a rigor, todos hoje somos periferia. Os maiores líderes mundiais do século 20 conquistaram seu espaço a partir de sua voz descentrada: Mandela, na África; Mao Tsetung, na China; Gandhi, na Índia - e se é bem verdade que Luther King e Malcolm X falaram do centro de poder do mundo contemporâneo, os EUA, eles próprios representavam a periferia, a voz do gueto, posto à margem no interior do próprio sistema.

Se há um centro mais próximo do que foi o Império Romano ou inglês, este é hoje os EUA, que porém dormem o sono atormentado dos culpados, pois essa nova diáspora trágica, por mar e terra, rumo à Europa, a que assistimos pela TV e pela internet diariamente, é obra principalmente sua.

A literatura e a cultura dos países não europeus já foi taxada de periférica, incivilizada, fraca e cópia piorada dos "centros" de produção de capitalista - como se Pequim, Moscou, Tóquio, África e povos americanos pré-colombianos não tivessem produzido arquitetura monumental, cidades inteiras, pirâmides, castelos e aquíferos; ou não tivessem desenvolvido ciência e arte, agricultura e mitologia, astronomia e matemática, ciências curativas e religiões em quantidade e variedade estonteantes.

Em São Paulo, a chamada literatura periférica é diversa, abundante e rica. Há desde leitura  de nossos poetas consagrados em saraus realizados em bares de quebrada, até produção abundante de autores que mapeiam a geografia local, com suas ruas tortuosas a terminarem em barrancos e escadões, com seus personagens a cambalearem entre a realidade violenta das chacinas e a fantasia de um baile funk - que pode terminar em pancadaria e enfrentamento com a polícia.

Essa chamada literatura periférica tem captado a temperatura explosiva de nossos bairros largados à própria sorte e à mercê da polícia encapuzada, mas também tem registrado o protesto, a melancolia, o sonho, o abando, a esperança - em formas inusitadas, às vezes fechadas e enigmáticas como uma ostra, às vezes explícitas como um xingamento de cima de uma laje. Nela desfilam rostos serenos ou crispados; riso de galhofa e improviso jazz; desafio de hip hop e convite à participação.

Nisso, há quem veja certo tom de ameaça e trincar de dente. Aí, eu concordo. Até, porque, como disse Malcolm X: "Dobradiça que não range, não leva graxa".




Jeosafá é escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria) e  em maio deste ano, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora.








domingo, 13 de setembro de 2015

Os negreiros que chegaram aos EUA deixaram seus rastros nas Antilhas

Quando e escritora Maryse Condé, natural da ilha de Guadalupe e radicada nos EUA, conta a história de Titubá, a feiticeira negra do Salem, entre outras passagens duras e comoventes, uma das mais perturbadoras retrata a protagonista, ainda menina, a observar a mãe, pendurada pelo pescoço no galho de uma árvore, a balançar desengonçada.  

Qual o crime de Abená, a infeliz mãe de Titubá? Ferir sem a menor gravidade seu senhor, ao defender-se de uma tentativa de estupro – ela, cuja filha Titubá era já fruto do estupro cometido por um marinheiro inglês, sob o riso cúmplice de escárnio dos companheiros de embarcação.


Criada por uma segunda mãe, também escrava, Titubá, nascida numa ilha de Barbados mergulhada na escravidão das plantações de cana-de-açúcar, terá de aprender a duras penas a lição de como dominar seu ódio contra os opressores, porém, ao longo de sua vida, cuja extensão e fim a história documental ignora, as humilhações e injustiças que verá e viverá acumularão matéria de combustão em sua raiva. E nem sempre, embora raramente, Titubá resistirá ao impulso de revide.

O livro Moi, Tituba, sorcière... noire de Salem (Eu, Titubá, feiticeira negra de Salem) merece ser lido – e há tradução em português, se bem que a versão pocket da francesa da Mercure de France, para quem domine o idioma, seja um espetáculo de palavras. Porém o assunto aqui é Malcolm X, e se o leitor não se deu conta, trato dele desde o primeiro parágrafo.

Tanto quanto Titubá, a vida de Malcolm X foi uma provação sobre a Terra. Seu pai Earl Little, militante das lutas do movimento de Marcus Garvey, após migrar para o norte dos EUA fugindo do massacre contra negros nos estados do sul, no início do século 20, terminou morto, chacinado por membros de um grupo de ódio racial. Sua mãe, Lousie Norton, branca de cabelos ruivos, fruto do estupro cometido por um trabalhador irlandês, deprimida e mergulhada nas dificuldades financeiras, sozinha a cuidar da prole, enlouquece. Disso resulta que as crianças da família são distribuídas, pelo serviço social, em vários lares adotivos.

Tanto quanto Titubá, Malcolm X não conhece sua raiz familiar, pois até mesmo o frágil laço estabelecido pelo nome foi quebrado pelo apagamento do elo de ancestralidade, quando da venda seus antepassados nos mercados negreiros da América.

Empurrada para o cárcere pelos ardis do ódio racial, do preconceito e da injustiça, Titubá conhecerá por dentro as engrenagens do belo sistema judiciário e penal da América – e aqui não se fala apenas dos EUA, uma vez que por todo o continente se reproduzem as estruturas de um sistema que não esconde sua natureza de escudo dos ricos, e que transborda em sarcasmo contra os pobres e os mais fracos.

As semelhanças entre a biografia romanceada de Titubá, personagem histórica do século 17, e o que se sabe da vida de Malcolm X, um dos maiores protagonistas da luta por igualdade do século 20, não cessam por aí. É mesmo um exercício irônico comparar o que vai no livro da professora da Columbia University, com o que as pesquisas revelam da vida do líder norte-americano, patrono de praticamente todos os grupos de hip hip do mundo. Duas das mais eloquentes são, com certeza a insistência, o cuidado e a meticulosidade com que o stablishment busque, a todo custo, eliminá-los da História (com H maiúsculo); a outra é a espetacular capacidade de resistência e permanência que esses personagens demonstram ao longo do tempo, no curso do qual vão-se convertendo em verdadeiros mitos contemporâneos, que, ao que tudo indica, atravessarão os séculos e, no futuro distante, serão lidos como hoje se lê e conhece Pandora e Prometeu.



Jeosafá é escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria). e em maio deste ano, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora.