terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Percurso de João Antônio até mim

É dezembro, estou agora olhando para a capa da 7a. edição da Record do livro de contos de João Antônio Malagueta, Perus e Bacanaço. Esse exemplar eu recebi de uma escola que fechou as portas quando eu lá trabalhei. Ela pagou o que pôde aos funcionários e professores da forma que pôde.

A mim couberam livros que os donos arruinados do estabelecimento comercial da área da educação consideravam de algum valor, entre os quais este, do qual comento aqui a capa. Não estavam de todo enganados, pois boa parte do que me deram como paga aos meus serviços de professor era de boa qualidade. Pena que a imobiliária não os aceitasse para quitação do aluguel.

Um exemplar dessa mesma edição eu já tivera em mãos quando adolescente. Meu irmão, que já se encontra no andar de cima, trabalhava na Folha de S. Paulo e de vez em quando aparecia com um lançamento que enviavam ao jornal para divulgação.

Na época eu me importava mais com o jogo de futebol do que com a literatura. Em princípio, não dei a menor para esse livro maior, mas como depois da pelada na rua a gente ia ver os marmanjos, entre os quais um outro irmão meu, este versado nas artes na malandragem, afiar o taco no bilhar, a capa me convidou e eu passei as férias relendo e relendo  esse clássico do submundo.  Era era também dezembro, mas era 1979, quase em outra vida.

Mudei tanto de endereço na juventude que fui me desfazendo de muita coisa a cada destino novo, sempre menor. Miseravelmente esse livro ficou pelo caminho. Porém, quis o destino que ele me retornasse às mãos, anos depois, por vias transversas. Melhor dizendo, adversas.

O fundo da imagem da capa dessa edição é o buraco do Adhemar à noite, com as lanternas traseiras dos automóveis esticando aquelas linhas vermelhas de antigos cartões postais, em meio à paisagem escura enfeitada pelas placas luminosas, pelos imensos out-doors de néon e pelas poucas janelas dos edifícios com suas luzes acesas a denunciar o adiantado da hora.

Só quem conheceu a cidade de São Paulo quando ainda havia buraco do Adhemar, placas luminosas psicodélicas e out-doors gigantes de néon saberá o quanto essa linda imagem, fotografada sem dúvida do viaduto Santa Ifigênia, tem de nostálgico e melancólico.

Na parte baixa da capa, aplicada sobre essa fotografia evanescente, ocupando toda sua largura, há uma ilustração em desenho colorido. Nela, uma mesa de bilhar com apenas três bolas, uma azul, uma branca e uma amarela.

À mesa, no taco, um jogador de face branca, bigode, mãos curadas, camisa de punho branca e colete preto. Atrás dele, apoiando-se na mesa, um observador, de paletó azul claro, chapéu de malandro. Atrás deste, um último personagem de paletó branco, cabelos e bigode pretos. Com certeza, na ordem, ilustrações de Malagueta, Perus e Bacanço. Os três concentrados pela tensão da tacada, enquanto a cidade escura ao fundo escorre em listras sanguíneas pela obra de engenharia urbana de apelido pouco respeitoso.

O taco de bilhar está prestes a cutucar a bola branca na direção da azul. Tudo indica que ela será encaçapada no buraco de quina do fundo, na parte direita da mesa que ficou de fora da capa. Não deixa de ser intrigante que na mesa de pano verde falte o buraco, a caçapa, enquanto que na foto escura que serve de fundo à capa o ilustrador tenha escolhido fazer constar justamente a então caçapa mais famosa da cidade.

Aplicados em primeiro plano, no alto, o nome  do autor, em maiúsculas, em branco e bordas vermelhas: JOÃO ANTÔNIO. Logo abaixo, uma breve chamada em letras menores: Autor de Leão de Chácara. Imediatamente abaixo, o título do livro, em vermelho com sombreado amarelo: MALAGUETA, PERUS E BACANAÇO. Em letras menores, ao centro da imagem, outra chamada, esta para o livro: “Um mergulho no submundo. É o clássico velhaco. Um dos livros mais premiados do país. Histórias já traduzidas em oito idiomas".

Esta edição é de 1980, mas a capa é toda ela segunda metade da década de 1970. Nessa época, os bares com bilhares em São Paulo já estavam indo para o brejo. No lugar das mesas, foram sendo instaladas máquinas de fliperama e de jogos da Taito. Eu, então office-boy fora da escola por razões que a luta de classes e a luta pela democracia me explicou depois, dava nesses bares com meus iguais, depois do expediente e às vezes no meio dele, por causa das máquinas. Porém, ainda dividimos espaço neles com personagens como as retratados na ilustração de capa do livro de João Antônio - e, como nela, eles não conversavam.

Ou antes, conversavam por gestos e olhares. No barulho das pancadas que dávamos nas máquinas para impedir que elas engolissem nossas bolinhas antes do tilt, víamos suas bocas se mexerem de raro em raro, em comentário a uma ou outra jogada, entre baforadas de cigarro mata-ratos, vendidos a granel, meio úmidos, amassados e sem filtros.

Os mal educados éramos nós. Eles, com seus tacos engizados e seus olhares concentrados eram uns finos. Íamos embora e eles continuavam noite adentro e madrugada afora. Nunca reclamaram de nosso barulho de passarinhos pousados em galho talvez errado.

Novas edições dessa obra de João Antônio se esmeraram em manter vivo esse texto significativo de nossa literatura. Porém, mataram a capa.

Por isso guardo com tanto amor o exemplar dessa edição, que me chegou em primeira vez pelas mãos curadas de meu irmão, um fino, um boêmio, com quem tantas vezes frequentei esses mesmos bares, e em segunda pelas mãos de comerciantes da educação arruinados.

Tratando do assunto de que trata, e do modo como trata, não poderia imaginar percurso mais legítimo desse livro de João Antônio até mim. Nem melhor capa, cujo autor não mereceu da parte da editora sequer menção na página interna de créditos.

Talvez tomado pela melancolia do espírito natalino, talvez pela saudade de meu irmão, todo final de ano me vejo folheando esse volume. Pela janela da ilustração de capa, recuo no tempo para o distante dezembro de 1979, e  vou saltando  os olhos do pano da mesa de bilhar para a avenida  Prestes Maia, que some na noite rumo a uma Zona Norte que não existe mais.

JEOSAFÁ, professor, foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo. É escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria);   O jovem Malcolm X A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela editora Mercuryo Jovem. Leciona atualmente para a Educação Básica, em projetos para jovens em situação de risco social, entre os quais o Vira Vida, parceria Senac-Sesi-Senai.

sábado, 20 de janeiro de 2018

CAMINHOS QUE LEVAM À FÉ

Num momento em que a intolerância, o ódio e o racismo vicejam nas redes sociais – a bem da verdade cada vez mais combatidos e em franca defensiva – um samba enredo de São Paulo responde aos iracundos não na mesma moeda, mas com a moeda de ouro da beleza. Assim, a escola de samba Colorado do Brás, vermelha até no nome, vem para o Carnaval de 2018 com um belíssimo samba enredo que encaixa em todos os sentidos.

O ritmo e a cadência de CAMINHOS DA FÉ vai num crescendo contagiante que torna impossível a quem o ouve ficar parado um só instante. A força dos tambores africanos atravessam a pele, a musculatura, os nervos, os ossos e atintem diretamente o coração, que passa então a pulsar na frequência portentosa da bateria. Quem participa dos ensaios da Colorado do Brás sai dizendo que sentiu o sangue fluir quente pelo corpo:

Mãe África derrame seu Axé
Semeando a cultura
Em teu sangue a bravura
Aos ventos de Orum Ori Aláfia
Eparrey Oyá

Não só o ritmo encaixa: a harmonia encaixa perfeita na letra, que articula línguas, culturas e religiões de Brasil e África. É um verdadeiro poema hibrido em que Brasil e África se abraçam numa comunhão de idiomas, mas também de almas. A saudação a Oxóssi, ligado às forças da floresta, fauna e flora, abre uma segunda estrofe do samba que é uma saudação ao orixá caçador, mas é também um chamado contagiante à cultura e à religiosidade de matriz afro:

Okê Arô Ora Yêyêo
Odoya Kawo Kabecilê
Salubá Nãnã Atotô Obaluaê
Ogunhê Arroboboy Oxumarê

O refrão mescla apelo ao ecumenismo, súplica humilde de filho e exaltação das raízes, tem uma força de atração e de sentido que por si só age como antídoto poderoso contra a intolerância.

Bahia de todos os santos
Acolhe teus filhos herdeiros da força
De seus ancestrais

O samba enredo é coroado com versos que convidam à retomada de seu próprio início, numa metáfora de abre alas de rara beleza: o ciclo da vida, das águas, da festa precisa ser sempre retomado, eternamente:

Hoje vai ter Xirê. Hoje vai ter Xirê.
Roda baiana. Salve todos orixás.
Axé! Colorado vai passar.

Dessa forma a Colorado do Brás dá seu recado a esse tempo confuso em que vivemos: com um samba cuja beleza em todos os sentidos deixa racistas, perseguidores da cultura afro, intolerantes e “donos da verdade” simplesmente mudos, catatônicos, sem chão debaixo dos pés para sambar.


Compositores: Marcio Pessi, Edson Dafféh, Gilson Caffé, Magrão da Caprichosos e Hermes Sobral.

JEOSAFÁ, professor, foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo. É escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria);   O jovem Malcolm X A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela editora Mercuryo Jovem. Leciona atualmente para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

DIÁRIO DE CLASSE: Professor confundido com cesto de lixo

Durante um ano, que não digo quando, fui guardando num saquinho plástico as bolinhas de papel que alunos de algumas turmas atiravam em minhas costas enquanto eu estava anotando no quadro negro. Professor recém-contratado, me esforcei por interpretar essa prática não como uma atitude consciente de humilhação do professor, mas como uma grande desorientação e carência e mecanismos de expressão. Não digo que obtive sucesso na indagação psicofilosófica. É lógico que foi impossível não ficar chocado e profundamente triste, de uma tristeza de não ter vontade de ir trabalhar. Mas eu tinha que admitir, eles não tinham a exata dimensão simbólica do que faziam.

Prova disso  é que outros objetos voavam pela sala de forma aparentemente  caótica - mas só aparentemente. Se alguém precisava de um lápis, voava um lápis na direção do solicitante. Eventualmente a ponta do lápis atingia um rosto, e a briga verbal começava, envolvendo todos. Como revide do lápis pontudo na cara, voava um caderno em direção contrária.

Que ano duro foi aquele que não conto qual foi.

Leia esta Zona crua.
O problema não era falta de respeito para com o professor ou para com os colegas, mas uma cultura de vozes alteradas, contatos físicos voluntários, involuntários e não consentidos substituindo a palavra cordial; de reações físicas desproporcionais e de linguagem extremante agressiva, chula mesmo, a todo momento e a qualquer propósito. Uma cultura do choque, do confronto e da afronta.

Porém notei que a quantidade de bolinhas de papel em minhas costas se reduziu quando desloquei a lixeira da posição em que se encontrava, ao lado da mesa do professor, para perto da porta. Se minha raiva inicial não me tivesse cegado, teria observado que eles brincavam, quando o professor estava de costas, de atirar bolinhas não no professor, mas na cesta. Talvez alguns errando de propósito, meu ressentimento me permite supor.

Como fui idiota por um bom tempo... Meio que tacitamente combinei que haveria hora para o arremesso ao cesto, não precisavam me esperar virar as costas. E procurei com taxa pequena de sucesso aparente conversar com cada aluno, buscando que expressassem em suas redações suas "neuras".

É lamentável admitir, mas no final do ano, em casa, olhei com vergonha para meu saquinho de plástico cheio de inocentes bolinhas de papel - vergonha porque havia em mim uma certa maldade  em colecioná-las. Não sei se até assimilar o gesto e compreendê-lo intimamente não acalentei o impulso vingativo de devolver cada uma daquelas bolotas a cada um de direito num momento apoteótico, tipo "grand finale".

No ano seguinte não só bolinhas, mas objetos pararam de voar pelas salas em que lecionei. Mas ainda me acorre por vezes a sensação desconfortável e o instinto não sei se perverso de achar que algumas daquelas bolinhas não tinham como endereço o cesto de lixo.

JEOSAFÁ, professor, foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo. É escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria);  em maio de 2015, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora; no mesmo ano publicou A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela editora Mercuryo Jovem. Leciona atualmente para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados.