terça-feira, 29 de janeiro de 2013

SEARA VERMELHA: Uma seara que resiste ao tempo – Parte 6



Este artigo, capítulo de minha tese de doutorado na Universidade de São Paulo, foi publicado na íntegra no encarte da revista Princípios, quando da comemoração dos 100 anos de nascimento de Jorge Amado.  Hoje, a sexta parte.


A cruzar o enredo linear e os planos narrativos de Seara vermelha, as repetições vão ecoando nas diversas vozes e nos planos narrativos: o narrador denuncia a associação entre alienação-messianismo-cangaço-latifúndio e essa denúncia vai se repetindo nas vozes das personagens e se concretizando na forma de cenas. O mesmo ocorre em relação a inúmeros outros enunciados, desde os relativos às premonições de Zefa até as enfáticas descrições sensuais de Marta e de Gertrudes.

Aqui, as repetições e redundâncias cumprem funções estruturais: estabelecem vínculos e identidades entre personagens, movem a máquina do enredo, com a ressalva de que têm também funções pedagógico-literárias e pedagógico-políticas,  que tem valido a esse romance uma dupla acusação: a de populismo literário e a de populismo político.

Sobre esse particular, Alfredo Bosi, em seu História concisa da literatura brasileira, assim discorre:

Cronista de tensão mínima, soube expressar largos painéis coloridos e facilmente comunicáveis que lhe franqueariam um grande e nunca desmentido êxito junto ao público. Ao leitor curioso e glutão a sua obra tem dado de tudo um pouco: pieguice e volúpia em vez de paixão, estereótipos em vez de trato orgânico dos conflitos sociais, pitoresco em vez de captação estética do meio, tipos “folclóricos” em vês de pessoas, descuido formal a pretexto da oralidade... Além do uso às vezes imotivado do calão: o que é, na cabeça do intelectual burguês, a imagem do eros do povo. O populismo literário deu uma mistura de equívocos, e o maior deles será por certo o de passar por arte revolucionária. No caso de Jorge Amado, porém, bastou a passagem do tempo para desfazer o engano”. (Bosi, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo, Cultrix, 1975, p. 456-457)

Aqui, em que pese o grande intelectual que é Alfredo Bosi e o peso de suas palavras nos meios acadêmicos, tudo indica que seu juízo crítico, afetado seguramente por indisposições subjetivas, periclitou, uma vez que a obra do escritor soteropolitano não cessa de ser reafirmada junto ao público e a consideráveis setores da crítica.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

SEARA VERMELHA: Uma seara que resiste ao tempo – Parte 5

Este artigo, capítulo de minha tese de doutorado na Universidade de São Paulo, foi publicado na íntegra no encarte da revista Princípios (out/nov 2012), quando da comemoração dos 100 anos de nascimento de Jorge Amado.  Hoje, a quinta parte.

Não por acaso cangaço, messianismo e loucura são associados tão diretamente: as personagens que os representam são identificadas com a alienação, nível mais baixo da pirâmide simbólica criada pelo autor para representar os estágios de consciência de classe.

E também não é casual a ordem cronológica adotada para representar os eventos. À medida que a leitura avança pelas páginas, o leitor vai sendo conduzido sem tropeços pelo narrador pela rede de eventos até entregá-lo, são e salvo, à porta do comitê do PCB ao final do volume.

Durante essa aventura simbólica o leitor assiste às injustiças contra os inocentes, à penúria dos retirantes, aos insucessos e trapaças dos inimigos de classe, aos desvarios do cangaço e do messianismo, à violência contra os revolucionários etc.

E toda essa via crucis a que o leitorassiste tem a função de ensiná-lo que o acúmulo de quantidade resulta em salto de qualidade, noutras palavras, que quantidades dessas experiências dolorosas levam irremediavelmente à luta de emancipação (o salto de qualidade), nos moldes dos versos de Castro Alves que servem de epígrafe inicial do livro:

Cai, orvalho do sangue do escravo,
Cai, orvalho na face do algoz.
Cresce, cresce, seara vermelha,
Cresce, cresce, vingança feroz...
(Amado, Jorge. Seara vermelha. 46 ed. Rio de Janeiro, Record,  p. 274).


Assim,tanto a estrutura hierarquizada dos planos narrativos– e no interior de cada um deles as personagens  – quanto a ordem cronológica linear contam em favor dos revolucionários: de baixo para cima da pirâmide de entes narrativos vai-se em direção à consciência revolucionária, cujo representante máximo é o próprio narrador; e do início ao fim do romance, em avanços cronológicos, vai-se em direção da revolução democrático-burguesa, cujo representante concreto no enredo é Neném, elo entre o enredo e uma da epígrafes iniciais do livro, assinada por Luís Carlos Prestes:

... está no latifúndio, na má distribuição da propriedade territorial, no monopólio da terra, a causa fundamental do atraso, da miséria e da ignorância do nosso povo.
Seara vermelha centra seu enredo numa família de flagelados da seca, expulsa da terra e forçada a cruzar a caatinga a pé . A família sofre baixas na travessia, se desmembra, mas não se extingue e atinge seu objetivo:
O trem resfolegava. A máquina começou a andar, vagarosa ainda. Aumentou a velocidade, Gregório saltara. Jucundina levantou-se então, afastou a mão de Jerônimo que a segurava, jogou-se para a janela. Jerônimo levantou-se também para obrigá-la a sentar-se. Mas em vez de fazê-lo debruçou-se sobre ela a tempo de ver ainda, no canto da estação, de vestido vermelho, a figura de Marta acenando com a mão. O trem apitava na curva. (Idem. O trem-14, p. 190).

Embora linear , o enredo assume forma de espiral quando Neném, ao final do romance, num tempo ficcional posterior, retorna à caatinga para realizar sua pregação revolucionária e para dar início a uma nova história, situada além do desfecho do romance.

*     *     *
Seara Vermelha, o filme (1964), por Rubens Ewald Filho:

Adaptação de um livro um pouco esquecido, sobre família que tem que se mudar para cidade grande e sua destruição. Embora este filme não seja reprisado, nem esteja disponível, nunca consegue esquecer desta adaptação do italiano Alberto D´Aversa (1920-69), importante professor e diretor de teatro. Nem da cena final nunca vista: quando a heroína enojada (Esther Mellinger) jogava uma cusparada bem na lente da câmera. Com Sadi Cabral, Fregolente, Margarida Cardoso.




sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

SEARA VERMELHA: Uma seara que resiste ao tempo – Parte 4


Este artigo, capítulo de minha tese de doutorado na Universidade de São Paulo, foi publicado na íntegra no encarte da revista Princípios, quando dacomemoração dos 100 anos de nascimento de Jorge Amado.  Hoje, a quarta parte.

O camponês banido da terra e tornado retirante, o militar que se torna revolucionário, a prostituta, o cangaceiro, o fanático religioso, o capataz a serviço do latifúndio, o fazendeiro, o político corrupto etc. são agentes sociais entendidos pelo autor como participantes da luta de classes e concretizados no enunciado na forma de personagens.

O distanciamento progressivo entre Artur e os trabalhadores da fazenda não é apenas um evento a mover o enredo, mas uma metáfora da traição de classe, do mesmo modo que a adesão de Juvêncio ao comunismo é não apenas mais uma solução narrativa, mas convocação para que o leitor, levado a assumir posição no esquema traçado pelo narrador, proceda de igual modo.

O sentido das associações e divórcios entre narrador e personagens é tão declaradamente assumido que até mesmo vísceras das disputas intestinas do movimento comunista são expostas um tanto gratuita, simplória e memso sectariamente:

– Trotskista e policial é a mesma coisa... – resumia o sapateiro, rasgando as últimas páginas do livro condenado./ Na cadeia, muito depois, Juvêncio teria tempo para ler e ter sua opinião sobre os trotskistas – tão arraigada nele devido à paixão com que o sapateiro falara – iria se reforçar diante das provas e dos fatos (Amado, Jorge. Seara vermelha. 46 ed. Rio de Janeiro, Record,  p. 274).

E o são para que o leitor, levado pelo narrador a associar-se ao ponto de vista de Juvêncio, posicione-se na vida real tal como a personagem se posicionou na cadeia, ante a rixa entre stalinistas e trotskistas.
Em Seara vermelha, tanto quanto a posição ocupada pelo narrador onipotente e onipresente, todo o projeto literário subjacente reflete esse comunismo de época de que Jorge Amado foi tão partidário.

O personalismo dos grandes retratos do dirigente partidário máximo pendurados nas paredes dos comitês tem sua contrapartida, nesse romance, no destaque dado ao narrador sabe-tudo e nas alusões elogiosas a militantes de destaque, em cujos registros de fala o paternalismo é percebido indisfarçavelmente.

Em tudo a estrutura de Seara vermelha alude à maneira particular pela qual o PCB procurava se organizar segundo o princípio do centralismo democrático, entendido de modo bastante particular: no plano narrativo superior está o narrador, assim como no Comitê Central estava o Secretário Geral do Partido.

O dirigismo bastante criticado no comunismo de então é irmão gêmeo dos procedimentos da efabulação desse romance, que é como aquele dedo do dirigente a apontar o rumo certo das ações.

A confirmar essa hierarquização rígida dos planos narrativos, reflexo mais de pensamento cartesiano e hieraquizador do que dialético, os entes ficcionais funcionam como uma pirâmide de pavimentos, no topo da qual vai o narrador, seguido logo abaixo pelas personagens representativas dos revolucionários, sob os quais vão, por sua vez, outros tantos empilhados, representações dos variados graus de consciência de classe, do inferior ao superior.