terça-feira, 22 de janeiro de 2013

SEARA VERMELHA: Uma seara que resiste ao tempo – Parte 1


Este artigo, capítulo de minha tese de doutorado na Universidade de São Paulo, foi publicado na íntegra no encarte da revista Princípios, quando da comemoração dos 100 anos de nascimento de Jorge Amado. Neste blog, será publicado em partes, a partir de hoje.

Em Seara vermelha, de 1946, segundo livro de Jorge Amado mais lido no estrangeiro, simultaneamente dedicado a Luís Carlos Prestes e João Amazonas, entre outros,coerente com seu projeto literário, o autor optou por uma narrativa organizada de modo bastante convencional sem maiores subversões de linguagem. 

Nela o tempo respeita a ordem cronológica e os planos narrativos, assim como as personagem, são estruturados hierarquicamente, como numa metáfora das relações sociais em seu desenvolvimento histórico.
Nessa hierarquia rígida, é do narrador de terceira pessoa que emanam todos os enunciados através dos quais o enredo se desenvolve e as personagens, em discurso direto, falam, e à posição privilegiada e onipresente desse narrador se associa ainda um tom sentencioso que confere a seu discurso uma significativa ilusão de onipotência e objetividade.

O narrador de Seara vermelha ocupa posição central nesse romance: tudo ouve, tudo vê e prevê, tudo sabe e tudo explica. Dado ao leitor pelo autor como metáfora da consciência revolucionária da época, seu partidarismo, estrito senso, faz com que as personagens funcionem como caixa de ressonância de sua voz intensamente ideologizada.

Foco que mobiliza toda a engrenagem narrativa de Seara vermelha, a voz do narrador se oferece ao leitor como registro de uma supra-consciência no interior da qual os fatos, as experiências e as outras consciências representadas pelas personagens se refletem e ganham sentido.

Situada hipoteticamente num momento posterior àquele relatado, essa “supra-consciência”, sob o disfarce de um raciocínio aparentemente dedutivo, conduz unidirecionalmente a narrativa a soluções confirmadoras de seu ponto de vista.

Disso resulta que o leitor, crente de estar “pensando junto” com o narrador, na realidade está sendo induzido inapelavelmente a aderir a um ponto de vista, a uma percepção do mundo, a um partido.

A aparência de verdade que todas as coisas assumem na voz desse narrador é, assim,  mais que busca de representação da realidade, estratégia de convencimento bem urdida, na qual personagens e fatos, sob o manto diáfano da narração, se constituem em elementos de apoio à sustentação argumentativa – motivo pelo qual esse e outros romances de Jorge Amado de igual feitio têm sido apontados como romances de tese.

Os efeitos de integridade, coesão e coerência de Seara vermelha se devem em grande medida ao tipo de narrador criado por Jorge Amado, que articula categorias da dialética, sem dúvida, porém, de forma um tanto mecânica, por mais contraditório que isso pareça.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Jorge Amado, o nosso capitão de areia


Artigo para a revista PRINCÍPIOS, Outubro de 2012, escrito a partir de dois outros, já publicados neste blog e na obra Entre Livros (São Paulo, Plêiade, 2012.)

No centenário do nascimento de Jorge Amado, um romance significativo de sua obra, Capitães de Areia, cuja primeira edição foi incinerada pela ditadura do Estado Novo, em 1937, continua a assombrar mentalidades reacionárias, atormentadas por um fantasma que ameaça seu mundo: a justiça social.





No ano de 2009 tive a honra de defender Jorge Amado junto ao Ministério Público do Estado de São Paulo. Este, como Carlos Gardel –  que depois de morto canta cada vez melhor –, continua atazanando as consciências culpadas das elites paulistas egressas da revolução de 32.

Setores empedernidamente reacionários da sociedade paulista, que plantam conservadorismo nas consciências desavisadas para colher votos nas eleições, continuam enxergando no grande escritor baiano inúmeras vezes cotado para o prêmio Nobel um subversivo instigador da juventude e, agora, a esta altura do século XXI, um aliciador de menores.

Esse setor, acérrimo adversário do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), por entender que esse mecanismo de preservação de direitos “protege bandidos”, recorreu ao próprio ECA para sustentar suas argumentações inquisitoriais e falso-moralistas. Segundo essa parcela de mentalidade medieval da sociedade brasileira, o livro Capitães de Areia contém trechos pornográficos que ferem o Estatuto da Criança e do Adolescente, o que justificaria sua cassação do currículo escolar - o mesmo livro que, queimado pela ditadura do Estado Novo, foi aceito no currículo escolar por uma outra ditadura igualmente ou talvez mais feroz, qual seja a militar.

Milton Hatoum, no prefácio da edição mais recente dessa obra (São Paulo, Cia. Das Letras, 2008) em circulação há décadas na rede pública estadual, discorre sobre o impacto que em sua formação, toda ela ocorrida nos anos de chumbo, exerceu esse livro contundente, multipremiado, objeto de um sem número de dissertações de mestrado e teses de doutorado pelo Brasil e pelo mundo afora, e traduzido para mais de 20 diferentes idiomas da Terra.

A defesa técnico-pedagógico-literária que fui convidado a realizar na oportunidade, na condição de Doutor em Letras especializado na obra do escritor soteropolitano, foi contundente e convincente, o que sustentou a permanência dessa obra essencial de nossa literatura na sala de aula de nossas escolas públicas e nas mãos e nos corações de nossos estudantes.

Porém, no ano de 2010, em agosto, sempre esse mês aziago, um promotor público, movido por estranhos e impulsos, mandou recolher Capitães de Areia das escolas de uma cidade do interior de São Paulo, o que foi  feito sob o silêncio sorridente do então governo Serra.


Capitães de areia, convertido para o cinema e cuja estreia ocorreu em outubro de 2011 (Dir. Cecília Amado, neta do escritor, e Guy Gonçalves), é uma obra significativamente representativa da fase da obra de Jorge Amado que o projetou no cenário literário brasileiro e dele para o mundo.  A seguir, reproduzo o texto de um documento histórico, bastante esclarecedor da relevância desse livro para a literatura brasileira e para a consciência democrática:

ATA DE INCINERAÇÃO
Aos dezenove dias do mês de novembro de 1937, em frente à Escola de Aprendizes Marinheiros, nesta cidade do Salvador e em presença dos senhores membros da comissão de buscas e apreensões de livros, nomeada por ofício número seis, da então Comissão Executora do Estado de Guerra, composta dos senhores capitão do Exército Luís Liguori Teixeira, segundo-tenente intendente naval Hélcio Auler e Carlos Leal de Sá Pereira, da Polícia do Estado, foram incinerados, por determinação verbal do sr. coronel Antônio Fernandes Dantas, comandante da Sexta Região Militar, os livros apreendidos e julgados como simpatizantes do credo comunista, a saber: 808 exemplares de Capitães da areia, 223 exemplares de Mar morto, 89 exemplares de Cacau, 93 exemplares de Suor, 267 exemplares de Jubiabá, 214 exemplares de País do carnaval, 15 exemplares de Doidinho, 26 exemplares de Pureza, 13 exemplares de Bangüê, 4 exemplares de Moleque Ricardo, 14 exemplares de Menino de Engenho, 23 exemplares de Educação para a democracia, 6 exemplares de Ídolos tombados, 2 exemplares de Ideias, homens e fatos, 25 exemplares de Dr. Geraldo, 4 exemplares de Nacional socialismo germano, 1 exemplar de Miséria através da polícia.
Tendo a referida ordem verbal sido transmitida a esta Comissão pelo sr. Capitão de Corveta Garcia D'Ávila Pires de Carvalho e Albuquerque e a incineração sido assistida pelo referido oficial, assim se declara para os devidos fins.
Os livros incinerados foram apreendidos nas livrarias Editora Baiana, Catilina e Souza e se achavam em perfeito estado.
Por nada mais haver, lavra-se o presente termo, que vai por todos os membros da Comissão assinado, e, por mim segundo-tenente intendente naval Hélcio Auler, que, servindo de escrivão, datilografei. (assinados)
Luís Liguori Teixeira, Cap. Presidente
Hélcio Auler, Segundo-Tenente Int. N.
Carlos Leal de Souza Pereira

(Transcrito do jornal Estado da Bahia, de 17-12-37).
FONTE: Duarte, Eduardo Assis. “Literatura e Cidadania”. Campinas, UNICAMP Disponível em http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/leitura%20e%20cidadania.htm. Acesso em 22 agosto 2012.

A queima dessa obra em 1937, em sua primeira edição pela Livraria José Olympio Editora, marca um dos períodos mais obscurantistas da vida brasileira. Porém, não deixa de ser curioso que, se essa ditadura condenou Capitães de Areia, a que veio depois não viu nesse livro qualquer grande risco, uma vez que em 1966 ele fazia parte do currículo oficial e era lido por adolescentes do país.

Sobre esse particular, é esclarecedor o Posfácio de Milton Hatoum à edição de Capitães de Areia realizada pela Cia. Das Letras. Diz o insigne ficcionista brasileiro à pagina 273:

"Em 1937 Capitães de Areia foi censurado e depois queimado em Salvador", disse minha professora de português, quando eu estudava no Ginásio Amazonense Pedro II, em Manaus. A frase da professora aumentou a curiosidade dos estudantes por esse romance, um dos livros obrigatórios do curso de literatura brasileira. Por sorte, a leitura deu prazer aos jovens leitores. Agora, ao reler a história dos meninos do trapiche, encontrei o mesmo deleite, mas com outro olhar: o leitor de 1966 não é o mesmo de 2008.

Milton Hatoum nasceu em 1952, portanto em 1966, em plena ditadura militar, aos 14 anos de idade, ele era “obrigado” a ler – com prazer, confessa – o mesmo livro que a muitos partidários da censura ainda hoje, em plena vigência do regime democrático, causa comichões e apoplexia, como a atitude desse agente do ministério público obscurantista bem serve de exemplo e alerta. 

Não deixa de ser espantoso que uma ditadura tenha queimado a obra, junto com outras do mesmo autor e de outros, enquanto outra ditadura, por muitos considerada mais feroz, a tenha acolhido para leitura de adolescentes em início de puberdade.

Ray Brabury, em seu Fahrenheit 451, trata exatamente desse triste assunto: o da censura e queima de livros por mentalidades e regimes obscurantistas.

Nesse excelente romance, que já nasceu clássico e que foi adaptado para o cinema por François Truffaut, Ray Bradbury discorre sobre um futuro não muito distante, quando os livros, proibidos, serão incendiados junto com seus possuidores, convertidos, por um modo de vida e um regime totalitários, em horda de leitores clandestinos e potencialmente perigosos . O livro é uma contundente alegoria contra regimes autoritários, para os quais nada pode haver de mais perigoso do que certos tipos de livros.
No posfácio da edição de 2003 (São Paulo, Editora Globo, 2003) o autor norte-americano diz:

Esfole, desosse, desmonte, escarifique, derreta, encurte, destrua. Todo adjetivo de quantidade, todo verbo de movimento, toda metáfora que pesasse mais que um mosquito – eliminados! Todo símile que teria feito a boca de um submentacapto se contorcer – desaparecido! Qualquer paralelo que explicasse a filosofia barata de um escritor de primeiro nível – perdido!

(...)

Existe mais de uma maneira de queimar um livro. E o mundo está cheio de pessoas carregando fósforos acesos.

Algumas leituras apressadas de Capitães de Areia, ao acusarem o livro de “libidinoso”, “imoral”, e mesmo “pornográfico”, fazem eco a práticas da censura e da queima de livros, quando o que está em jogo nesse romance é o abandono de crianças largadas à sua própria sorte e obrigadas a realizarem sua aprendizagem nas ruas, onde são exploradas e violentadas todos os dias.

Nesse caso, pornográfico não é o livro, mas, a miséria que ele tem a coragem de denunciar na forma de romance.  Porém, quanto a isso, a mesma mentalidade que caça livros para incineração no interior de São Paulo, silencia, e ri, indecentemente.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Vidas Secas


Resumo de aula
Prezados Alunos do curso de Metologia II da História-USP:

Em primeiro lugar, devo agradecer ao Professor Marcos Silva e a vocês a oportunidade de voltar a ministrar uma aula para o Ensino Superior. Desde que pus o pé na estrada da vida de escritor profissional exclusivamente, há seis anos, não enfrentava uma turma de alunos. Fiquei emocionado e me senti  um tanto enferrujado – tomara não os tenha decepcionado, nem ao amigo que me convidou. Em segundo lugar, vamos ao que interessa:

Os métodos de uma ciência ou de uma atividade intelectual específica podem ser extrapolados  para outras, todavia, com os devidos cuidados e ajustes. Os métodos da história (mas também os da Sociologia, Antropologia, da Geografia e das ciências ditas da natureza) foram amplamente empregados pela literatura, particularmente a partir do século XIX, seja na produção de obras literárias estrito senso, tais como romances, contos, poesia e teatro, seja na produção teórica tais como história literária, crítica ensaística, literatura comparada etc.

O chamado naturalismo explorou descobertas do evolucionismo darwinista, do positivismo comteano, do pessimismo sterneano à larga para representar literariamente a vida das sociedades ou para criticar e estudar textos. Aluísio Azevedo, no Brasil desse mesmo século, enquanto artista das palavras, não foi o único, nem o último, tampouco Silvio Romero enquanto historiador e crítico.

A busca de representar por meio da literatura a realidade climática, social, intelectual, emocional de uma época foi experimentada por vários autores brasileiros, entre os quais, a nossa joia da coroa, Machado de Assis.

Porém, tanto o desenvolvimento incipiente das ciências sociais, quanto o império das ciências biológicas sobre as demais resultou, num momento em que essa ciências resvalavam para explicações rácicas e mesmo racistas do homem, numa hipervalorização de aspectos relativos ao meio e à genética para explicar as relações sociais.

Assim, a aplicação mecânica de métodos originários principalmente no campo da biologia e da botânica evolucionistas levaram a literatura a depositar muitas vezes na conta da natureza as injustiças sociais resultantes da exploração do homem pelo próprio homem, no âmbito do império do capital.

Euclides da Cunha, citado em nossa aula, buscou explicação na genética e na natureza para a resistência do homem nordestino, que para ele seria antes de tudo “um forte”, mas por razões de adaptação do indivíduo, ao longo do tempo, ao meio inóspito, responsável por selecionar os mais aptos e mais fortes - assim, ele encontrou séria dificuldade para explicar como Canudos, um ajuntamento de esfarrapados e fanáticos, derrotou por várias vezes um exército bem armado e treinado.

Para Graciliano Ramos de Vidas Secas, objeto de nossa aula, o sertanejo é também um forte, mas não apenas por gozar de boa compleição física: ele é forte porque tem um sonho: alcançar as terras do sul, que também são suas para ver seus filhos bem tratados e na escola. O sul também é seu, uma vez que é brasileiro, e todo o Brasil lhe diz respeito e lhe pertence.

Muito se tem enfatizado nesse clássico de nossa literatura o aspecto bruto de Fabiano, sua linguagem feita de ruídos guturais, sua resistência aparentemente animalesca. Porém, dói nele ter de matarem o papagaio para comerem, tanto quanto o tortura pôr fim à amiga baleia, tratada como membro da família até que o drama se impusesse de forma violenta e incontornável.

A apropriação da realidade feita por Graciliano Ramos em Vidas Secas, como de resto em todos seus demais romances e biografia (Memórias do Cárcere), apoia-se não numa aplicação mecânica de teorias, métodos analíticos e interpretativos oriundos de campos das ciências da natureza, mas da reflexão sobre conquistas teóricas já no campo das ciências humanas, entre as quais a História, a Geografia human e a Sociologia, que na chamada Escola do Recife desenvolve um pensamento autócone, voltado para nossa realidade, para o bem e para o mal, haja vista o luso-tropicalismo freyreano. Porém, Graciliano se apoia igualmente, e com crescente ênfase, no marxismo teórico e militante, de que tomará partido franca e definitivamente.

Vidas secas, diferentemente de Os sertões situa os problemas cruciais da literatura não nas relações entre homem e meio, mas nas relações injustas, desniveladas e de exploração do homem pelo próprio homem.

O drama que afeta a família de retirantes - representativa das milhares e mesmo milhões envolvidas no mesmo drama - é mais social do que climático , uma vez que a exploração rural aproveita o flagelo da seca para lançar seus tentáculos sobre as terras abandonadas pelo agricultores arruinados.

Estes vão-se embora, enquanto os donos do latifúndio, tão logo as terras sejam abandonadas, avançam suas cercas por sobre elas, de maneira que, superada a seca, seu império territorial se veja acrescido substantivamente, para uma nova fase de exploração concentrada da terra ainda mais aguda.

Subjacente ao drama de Fabiano, Sinhá Vitória, dos filhos mais velho e mais novo, Baleia e papagaio, está a luta de classes, que na nova etapa de acumulação de capital aberta pela revolução de 30, necessita de mão de obra para as lavoura de São Paulo e para a indústria nascente, com seus capitalistas ávidos por lucro fácil a partir de força de trabalho mal remunerada em escala industrial.

É por essa razão que Graciliano Ramos amargará futuramente o cárcere em Ilha Grande, e é também por essa razão que se filiará ao Partido Comunista: seu projeto literário, solidário da luta pelo fim da exploração do homem pelo próprio homem, não se contenta em pôr nas intempéries climáticas a culpa de injustiças decorrentes da ganância capitalista: os pobres sofrem na exata proporção em que os ricos concentram riqueza.

Agradeço a oportunidade de lhes ter ministrado aula na simbólica sala Edgard Carone, da Faculdade de História da USP.  E sendo o patrono dessa sala um guerreiro da liberdade e da justiça social, convido-os a lerem e a postarem comentários no Manifesto em defesa das bibliotecas públicas e escolares de São Paulo e por um política do livro e de incentivo à leitura em nosso município, clicando aqui:

Fórum de Cultura e Educação

Amplexos a todos do
Jeosa