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sábado, 16 de dezembro de 2023

Ouvir e falar: a fronteira final para o aprendiz de um novo idioma


Para quem busca adquirir um segundo idioma, sem se estar em terras em que ele vigora, ler e escrever não chega a ser um grande problema, desde que se domine bem a própria língua materna e, de meu estrito ponto de vista, esse segundo idioma seja uma das línguas neolatinas ou o inglês. Pena-se para se compreender a morfologia, o vocabulário e a sintaxe, porém sente-se o progresso ao longo do estudo e, ao cabo de um ano de empenho, alguma segurança e independência na leitura e na escrita já se observa.

Porém, no que tange à audição e à conversação, o cenário muda substancialmente. O progresso aí é lento e as conquistas, mínimas. A articulação audição-fala, no mais das vezes, se mostra escorregadia e, nesse binômio, a audição é que se mostra mais desafiadora. Identificar no continuum sonoro os signos linguísticos encadeados num fluxo e cadência típicos do idioma enche o coração do aprendiz da mais profunda sensação de fracasso.

Se o registro escrito permite o acesso ao dicionário para compor o sentido de um discurso ou texto em língua estrangeira, a natureza imediata da fala ergue-se como obstáculo intransponível para o iniciante — e mesmo para estudantes de nível intermediário , que se perdem ao ouvir uma ou outra palavra familiar em meio a um fluxo avassalador de sons incompreensíveis.

Por essa razão, tenho comigo que, em se tratando de aquisição de um novo idioma, ouvir clara e falar fluentemente é a fronteira final.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).


sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

O trabalhador faz o trabalho e o trabalho faz o trabalhador


Diante de um trabalho coletivo bem realizado, a primeira impressão que se tem é de que se tratou de uma atividade fácil — e que, por isso, teria obrigatoriamente resultar em solução satisfatória. A segunda impressão é a de que os indivíduos envolvidos estariam à altura do desafio.

A realidade porém é que nenhum trabalho coletivo é simples, pois sua consecução envolve a ação de muitos e variados agentes, que só alcançam articulação satisfatória após a superação continuada de conflitos inerentes à própria natureza do trabalho coletivo   e essa superação ora é realizada por consensos, ora por acordos e ora por disputas cujas regras precisam ser debatidas e decididas pelos envolvidos.

Por outro lado, nenhum agente de atividade coletiva está aprioristicamente capacitado ou habilitado para a consecução de um objetivo comum   antes pelo contrário, os agentes se vão capacitando no próprio processo, à medida que vão aprendendo e buscando soluções adequadas a cada um dos muitos desafios que se erguem na trajetória de cada um e de todos.

Há, assim, uma relação dialética entre o trabalho coletivo e os agentes nele envolvidos: os trabalhadores fazem o trabalho, e o trabalho faz os trabalhadores.

A natureza social do trabalho coletivo impõe aos envolvidos a necessidade do desenvolvimento de formas organizativas e administrativas vivas, dinâmicas, flexíveis, que permitam a liberação das energias de cada indivíduo, com como de sua criatividade, mas também que estimulem seu engajamento voluntário nas tarefas e metas decididas conscientemente pelo coletivo de que faz parte   coisas que não acontecem nem de uma vez, nem para sempre.

Dessa maneira, por mais singelo que pareça um objetivo coletivo alcançado, ele é apenas a face visível de um imenso iceberg, de cuja parte maior somente os diretamente envolvidos têm a exata dimensão   e também só eles têm a mais clara consciência acerca do quanto aprenderam durante o processo para atingir o resultado final, que o observador externo só conhece pela aparência e parcialmente.

Empregando a alegoria do reino animal, somente as abelhas envolvidas na fabricação sabem quantas viagens foram realizadas e quantos riscos foram enfrentados e superados para fabricar uma mísera colher de chá de mel, mais ou menos a quantidade que uma abelha alcança em toda sua vida.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).



quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Literatura enquanto fonte

 O estudo da literatura se justifica por si só, uma vez que ela tem relevância e prestígio em todas as sociedades que desenvolveram a escrita, porém seu estudo se justifica também por muitas outras razões exteriores a ela. Trato aqui apenas de uma dessas razões exteriores, qual seja: a literatura enquanto fonte de outras ciências.

As narrativas literárias nos permitem aferir o clima cultural de uma época, suas características dominantes e contra-hegemônicas, suas temáticas mais frequentes, sua sensibilidade, sua religiosidade, suas relações sociais, políticas, econômicas e de poder, suas classes e ideologias em conflito etc. Isso também poderia, e é, alcançado por outras ciências, porém de forma sempre parcial, porque cada qual realiza seu recorte específico da realidade, segmentando-a e enfocando-a a partir de seu exclusivo e estrito ponto de vista. 

A literatura, diferentemente, reconstitui simbolicamente a vida e as experiências humanas de forma mais integral, e oferece a oportunidade de imersão  no coração de simulações as mais amplas, complexas, ricas e profundas possíveis, a depender do engenho do artista.

Karl Marx, considerado hoje um dos pais da sociologia,  afirmava que A Comédia Humana, conjunto da obra de Honoré de Balzac (1799-1950) fora para ele mais importante em sua análise da sociedade francesa do que os muitos estudos de economia, história e filosofia por ele visitados. Seu companheiro de jornada, Friedrich Engels, afirmou em carta a Margareth Harkness (1888) ter aprendido com Balzac "mais do com todos os historiadores, economistas e estatísticos profissionais do período". Noutras palavras, dois dos mais importantes estudiosos das relações sociais, econômicas e de poder do século XIX encontraram na literatura fonte legítima para suas pesquisas, reflexões e formulações, que repercutiriam ao longo do século XX na forma de revoluções socialistas pelo mundo todo.

Razões externas ao estudo da literatura são abundantes, porque não há campo da atividade humana que não tenha sido visitado por escritores, dramaturgos e poetas. História, geografia, sociologia, filosofia, religião, mas também matemática, física, química, astronomia, entre outras, têm lugar na escrita ficcional, na poesia e no teatro desde que o código escrito foi inventado, seja porque os autores houveram por bem tratar dessas dimensões da vida, seja porque os próprios autores muitas vezes eram matemáticos, físicos, médicos, astrônomos etc., evento bastante comum tanto na história da literatura quanto na história das ciências.

Fiquemos no exemplo de Galileu Galilei, que, para expor seu ponto de vista científico, em Diálogo sobre os dois principais sistemas do mundo (1632), empregou o artifício da narrativa ficcional. Nesse livro, o diálogo acontece entre três personagens: Salviati, defensor do modelo de Copérnico; Simplício, defensor do modelo geocêntrico adotado pela Igreja, e Sagredo, no papel de mediador imparcial. O livro foi divido em jornadas (quatro) , como o Decamerão (1348-53), de Giovanni Boccaccio , e o Pentamerão (1778), de Giambattista Basile.

Sobre Freud, deixo que fale Luiz Zanin Oricchio: 

Ao longo de sua carreira, Freud escreve múltiplos artigos que tomam obras literárias como pontos de partida para reflexões psicanalíticas. Basta lembrar do famoso Complexo de Édipo, inspirado na tragédia de Sófocles. Ou do tema do parricídio, que toma como ponto de partida a leitura de Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski. Há textos sobre autores hoje menos famosos, como Delírios de Sonhos na Gradiva de Jensen. E ensaios até hoje estimulantes sobre a arte, em diversos aspectos, como O Estranho (Das Unheimliche) e O Poeta e a Fantasia.

 Por que Freud cita mais autores literários que autoridades científicas em sua vasta obra (reunida em 24 volumes)? Bem, há motivos para afirmar que ele não procurava nas literatura a confirmação de suas teorias, mas, pelo contrário, eram as obras literárias que lhe davam "dicas" preciosas de como prosseguir por caminhos obscuros.

Em algumas ocasiões, chegou a escrever que os artistas chegavam antes, e de maneira mais profunda, à realidade psíquica a que ele, trabalhosamente, tentava aceder por seu trabalho clínico e de reflexão. Era como se o artista "antecipasse" realidades que apenas depois, e de outra maneira, o cientista iria alcançar. (In "Análise: Literatura era a arte que mais tocava Sigmund Freud") .

As justificativas para o estudo da literatura exteriores a ela são certamente infinitas, porém não me causa espanto o desinteresse pela leitura ficcional, pela poesia e pelo teatro que observo em profissionais especializados, do nível mais modesto ao mais elevado. A visão integral e humanista que a literatura oferece choca-se com o projeto de ser humano vigente, cuja essência é a fragmentação social ao extremo, a alienação total e o ultra-individualismo narcísico.

Fico por aqui. Se convenci — o que não era a intenção —, muito bem. Se não convenci: amém.

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Professor tem que ter nervos de aço e coração de pedra - só que não

Acordar às quatro e meia da matina, tomar um café rápido, dar vistas no material didático e no planejamento do dia, fazer o check list na bolsa (apostilas ok, lapiseira ok, borracha ok, canetões de lousa branca ok, canetas ok, etc. ok), pôr o lixo na rua, ir para o ponto de ônibus ainda noite escura, encarar a linha Morro Doce - Praça Ramos sempre superlotada, mesmo às 5 a manhã, obrigado prefeito, depois a do trem da CPTM nas mesmas condições, obrigado governador, depois o Metrô, percurso Barra Funda - Tatuapé nas mesmas condições, obrigado novamente governador, mais vinte minutos a pé subindo a rua Tuiuti, ufa!

No caso de hoje - que dormi mal, depois de ter dormido mal ontem -, mal me equilibrei no ônibus, fui praticamente de quatro dele à estação de trem Domingos de Moraes, me arrastei dela pela conexão à estação do Metrô e estava em tal estado de sonambulismo que me cederam o lugar dos idosos para que eu desabasse sobre o assento azul da composição.

E nunca a estação Tatuapé do Metrô ficara tão distante da portaria da escola.

Sete e meia em sala de aula é a lei para o que desse e viesse, às vezes numa boa, às vezes no maior stress. No caso de hoje, o pior estava por vir, palpitava meu coração. Acho que você não chega ao fim do dia, cochichava meu pessimismo nos meus tímpanos sensíveis pela noite de insônia.

Eis que uma turma do Ensino Fundamental, que tinha tudo para me moer feito carne de segunda, resolve patrocinar sua melhor aula do ano. Que estranho, pensava meus neurônios esbugalhados, enquanto os grupos discutiam objetividade e subjetividade na linguagem, ansiosos por saber o que são pulsões, impulsos e compulsões, e como eles se manifestam nos sonhos e quando estamos acordados, na fala como na escrita, no poema como na canção.

Eis que depois, no meio da manhã, do nada, um aluno, este do Ensino Médio, abre a porta da classe em que a aula corria às maravilhas e me põe nas mãos um catatau de páginas e páginas manuscritas com seus poemas raivosos contra a injustiça, cheios de vontade de viver, de paixões e das coisas mais verdadeiras que um coração de jovem pode inventar.

A manhã se encerra com a última aula encontrando alunos de um sexto ano Fundamental curtindo com surpresa cheia de curiosidade as origens históricas da palavra paixão, entre fósseis do latim incrustados nas palavras pateta, apático, simpático, antipático, patologia - e ecos deles nas palavras psicopataapaixonar, passional, entre outras.

O dia estava salvo, pensei ao cruzar o portão de saída da escola.

Porém, rumo ao Metrô, com uma leve dor de cabeça por causa do sono persistente, dois alunos do Ensino Médio me encontram pelo caminho e me acompanham pela rua abaixo. Ela, contente com as notas de redação do bimestre, pura simpatia, ele, com quem já troquei conversas sobre seus ótimos textos, interessado em saber o que eu achara de sua narrativa sobre uma utopia por ele inventada, aliás, excelente, o que não me desobrigou de corrigir um erros de coesão e outros de uso dos tempos verbais.

Quando a moça se despediu e seguiu seu caminho, continuamos conversando até a estação Tatuapé do Metrô sobre nada menos do que... Scott Fitzgerald, de O grande Gatsby, J. D. Salinger, de O apanhador no campo de centeio, e Marcel Proust, de No caminho de Swann (Um dos sete livros de Em busca do tempo perdido), que ele lera durante as férias.

Enquanto ele falava sobre Fitzgerald, Salinger e Proust, com a empolgação de que só um coração de estudante é capaz, eu o ouvia atento, chocado mesmo com a fraqueza em que me via flagrado, de coração batendo nos tímpanos, e pensava comigo: "Deus, piedade, como é dura a vida do professor, quando a gente acha que vai ter o direito de desabar e ser esmagado, vem socorro de todo lado".
Tem que se ter nervos de aço e coração de pedra, não é mesmo?

Quando me despedi do aluno, que atravessou a passarela enquanto eu me dirigia aos bloqueios, um maldito verso do Drummond atacou minhas coronárias (que segundo meus cardiologistas deveriam bater pum-pum, pum-pum; mas batem puf-pum, puf-pum):

Meu coração cresce dez metros e explode.

Se eu não me lembrasse do verso seguinte, último do poema Mundo Grande, era agora que meu coração explodiria, mesmo - porque eu estava num daqueles dias piegas, autocomiserativos, bom de entregar os pontos. Mas... eu me lembrei:

- Ó vida futura! Nós te criaremos.

Me lembrei e me salvei. Melhor, fui salvo. E um dia que não ia valer de nada, acabei desejando que não terminasse.


Jeosafá é escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria),  em maio de 2015, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora, e no mesmo ano A lenda do belo Pecopin da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela Mercuryo Jovem. Leciona para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados de São Paulo.