O estudo da literatura se justifica por si só, uma vez que ela tem relevância e prestígio em todas as sociedades que desenvolveram a escrita, porém seu estudo se justifica também por muitas outras razões exteriores a ela. Trato aqui apenas de uma dessas razões exteriores, qual seja: a literatura enquanto fonte de outras ciências.
As narrativas literárias nos permitem aferir o clima cultural de uma época, suas características dominantes e contra-hegemônicas, suas temáticas mais frequentes, sua sensibilidade, sua religiosidade, suas relações sociais, políticas, econômicas e de poder, suas classes e ideologias em conflito etc. Isso também poderia, e é, alcançado por outras ciências, porém de forma sempre parcial, porque cada qual realiza seu recorte específico da realidade, segmentando-a e enfocando-a a partir de seu exclusivo e estrito ponto de vista.
A literatura, diferentemente, reconstitui simbolicamente a vida e as experiências humanas de forma mais integral, e oferece a oportunidade de imersão no coração de simulações as mais amplas, complexas, ricas e profundas possíveis, a depender do engenho do artista.
Karl Marx, considerado hoje um dos pais da sociologia,
afirmava que A Comédia Humana, conjunto da obra de Honoré de Balzac
(1799-1950) fora para ele mais importante em sua análise da sociedade
francesa do que os muitos estudos de economia, história e filosofia por ele
visitados. Seu companheiro de jornada, Friedrich Engels, afirmou em carta a
Margareth Harkness (1888) ter aprendido com Balzac "mais do com todos os
historiadores, economistas e estatísticos profissionais do período".
Noutras palavras, dois dos mais importantes estudiosos das relações sociais,
econômicas e de poder do século XIX encontraram na literatura fonte legítima
para suas pesquisas, reflexões e formulações, que repercutiriam ao longo do
século XX na forma de revoluções socialistas pelo mundo todo.
Razões externas ao estudo da literatura são abundantes,
porque não há campo da atividade humana que não tenha sido visitado por
escritores, dramaturgos e poetas. História, geografia, sociologia, filosofia,
religião, mas também matemática, física, química, astronomia, entre outras, têm
lugar na escrita ficcional, na poesia e no teatro desde que o código escrito
foi inventado, seja porque os autores houveram por bem tratar dessas dimensões
da vida, seja porque os próprios autores muitas vezes eram matemáticos,
físicos, médicos, astrônomos etc., evento bastante comum tanto na história da
literatura quanto na história das ciências.
Fiquemos no exemplo de Galileu Galilei, que, para expor seu
ponto de vista científico, em Diálogo sobre os dois principais sistemas do mundo (1632),
empregou o artifício da narrativa ficcional. Nesse livro, o diálogo
acontece entre três personagens: Salviati, defensor do modelo de Copérnico;
Simplício, defensor do modelo geocêntrico adotado pela Igreja, e Sagredo, no
papel de mediador imparcial. O livro foi divido em jornadas (quatro) , como o
Decamerão (1348-53), de Giovanni Boccaccio , e o Pentamerão (1778), de
Giambattista Basile.
Sobre Freud, deixo que fale Luiz Zanin Oricchio:
Ao longo de sua carreira, Freud escreve múltiplos artigos
que tomam obras literárias como pontos de partida para reflexões
psicanalíticas. Basta lembrar do famoso Complexo de Édipo, inspirado na
tragédia de Sófocles. Ou do tema do parricídio, que toma como ponto de partida
a leitura de Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski. Há textos sobre autores hoje
menos famosos, como Delírios de Sonhos na Gradiva de Jensen. E ensaios até hoje
estimulantes sobre a arte, em diversos aspectos, como O Estranho (Das Unheimliche)
e O Poeta e a Fantasia.
Por que Freud cita mais autores literários que autoridades
científicas em sua vasta obra (reunida em 24 volumes)? Bem, há motivos para
afirmar que ele não procurava nas literatura a confirmação de suas teorias,
mas, pelo contrário, eram as obras literárias que lhe davam "dicas"
preciosas de como prosseguir por caminhos obscuros.
Em algumas ocasiões, chegou a escrever que os artistas chegavam antes, e de maneira mais profunda, à realidade psíquica a que ele, trabalhosamente, tentava aceder por seu trabalho clínico e de reflexão. Era como se o artista "antecipasse" realidades que apenas depois, e de outra maneira, o cientista iria alcançar. (In "Análise: Literatura era a arte que mais tocava Sigmund Freud") .
As justificativas para o estudo da literatura exteriores a ela são certamente infinitas, porém não me causa espanto o desinteresse pela leitura ficcional, pela poesia e pelo teatro que observo em profissionais especializados, do nível mais modesto ao mais elevado. A visão integral e humanista que a literatura oferece choca-se com o projeto de ser humano vigente, cuja essência é a fragmentação social ao extremo, a alienação total e o ultra-individualismo narcísico.
Fico por aqui. Se convenci — o que não era a intenção —, muito bem. Se não convenci: amém.