quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Literatura enquanto fonte

 O estudo da literatura se justifica por si só, uma vez que ela tem relevância e prestígio em todas as sociedades que desenvolveram a escrita, porém seu estudo se justifica também por muitas outras razões exteriores a ela. Trato aqui apenas de uma dessas razões exteriores, qual seja: a literatura enquanto fonte de outras ciências.

As narrativas literárias nos permitem aferir o clima cultural de uma época, suas características dominantes e contra-hegemônicas, suas temáticas mais frequentes, sua sensibilidade, sua religiosidade, suas relações sociais, políticas, econômicas e de poder, suas classes e ideologias em conflito etc. Isso também poderia, e é, alcançado por outras ciências, porém de forma sempre parcial, porque cada qual realiza seu recorte específico da realidade, segmentando-a e enfocando-a a partir de seu exclusivo e estrito ponto de vista. 

A literatura, diferentemente, reconstitui simbolicamente a vida e as experiências humanas de forma mais integral, e oferece a oportunidade de imersão  no coração de simulações as mais amplas, complexas, ricas e profundas possíveis, a depender do engenho do artista.

Karl Marx, considerado hoje um dos pais da sociologia,  afirmava que A Comédia Humana, conjunto da obra de Honoré de Balzac (1799-1950) fora para ele mais importante em sua análise da sociedade francesa do que os muitos estudos de economia, história e filosofia por ele visitados. Seu companheiro de jornada, Friedrich Engels, afirmou em carta a Margareth Harkness (1888) ter aprendido com Balzac "mais do com todos os historiadores, economistas e estatísticos profissionais do período". Noutras palavras, dois dos mais importantes estudiosos das relações sociais, econômicas e de poder do século XIX encontraram na literatura fonte legítima para suas pesquisas, reflexões e formulações, que repercutiriam ao longo do século XX na forma de revoluções socialistas pelo mundo todo.

Razões externas ao estudo da literatura são abundantes, porque não há campo da atividade humana que não tenha sido visitado por escritores, dramaturgos e poetas. História, geografia, sociologia, filosofia, religião, mas também matemática, física, química, astronomia, entre outras, têm lugar na escrita ficcional, na poesia e no teatro desde que o código escrito foi inventado, seja porque os autores houveram por bem tratar dessas dimensões da vida, seja porque os próprios autores muitas vezes eram matemáticos, físicos, médicos, astrônomos etc., evento bastante comum tanto na história da literatura quanto na história das ciências.

Fiquemos no exemplo de Galileu Galilei, que, para expor seu ponto de vista científico, em Diálogo sobre os dois principais sistemas do mundo (1632), empregou o artifício da narrativa ficcional. Nesse livro, o diálogo acontece entre três personagens: Salviati, defensor do modelo de Copérnico; Simplício, defensor do modelo geocêntrico adotado pela Igreja, e Sagredo, no papel de mediador imparcial. O livro foi divido em jornadas (quatro) , como o Decamerão (1348-53), de Giovanni Boccaccio , e o Pentamerão (1778), de Giambattista Basile.

Sobre Freud, deixo que fale Luiz Zanin Oricchio: 

Ao longo de sua carreira, Freud escreve múltiplos artigos que tomam obras literárias como pontos de partida para reflexões psicanalíticas. Basta lembrar do famoso Complexo de Édipo, inspirado na tragédia de Sófocles. Ou do tema do parricídio, que toma como ponto de partida a leitura de Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski. Há textos sobre autores hoje menos famosos, como Delírios de Sonhos na Gradiva de Jensen. E ensaios até hoje estimulantes sobre a arte, em diversos aspectos, como O Estranho (Das Unheimliche) e O Poeta e a Fantasia.

 Por que Freud cita mais autores literários que autoridades científicas em sua vasta obra (reunida em 24 volumes)? Bem, há motivos para afirmar que ele não procurava nas literatura a confirmação de suas teorias, mas, pelo contrário, eram as obras literárias que lhe davam "dicas" preciosas de como prosseguir por caminhos obscuros.

Em algumas ocasiões, chegou a escrever que os artistas chegavam antes, e de maneira mais profunda, à realidade psíquica a que ele, trabalhosamente, tentava aceder por seu trabalho clínico e de reflexão. Era como se o artista "antecipasse" realidades que apenas depois, e de outra maneira, o cientista iria alcançar. (In "Análise: Literatura era a arte que mais tocava Sigmund Freud") .

As justificativas para o estudo da literatura exteriores a ela são certamente infinitas, porém não me causa espanto o desinteresse pela leitura ficcional, pela poesia e pelo teatro que observo em profissionais especializados, do nível mais modesto ao mais elevado. A visão integral e humanista que a literatura oferece choca-se com o projeto de ser humano vigente, cuja essência é a fragmentação social ao extremo, a alienação total e o ultra-individualismo narcísico.

Fico por aqui. Se convenci — o que não era a intenção —, muito bem. Se não convenci: amém.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); O jovem Malcolm X, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).


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