Durante um ano, que não digo quando, fui guardando num
saquinho plástico as bolinhas de papel que alunos de algumas turmas atiravam em
minhas costas enquanto eu estava anotando no quadro negro. Professor
recém-contratado, me esforcei por interpretar essa prática não como uma atitude
consciente de humilhação do professor, mas como uma grande desorientação e
carência e mecanismos de expressão. Não digo que obtive sucesso na indagação
psicofilosófica. É lógico que foi impossível não ficar chocado e profundamente
triste, de uma tristeza de não ter vontade de ir trabalhar. Mas eu tinha que
admitir, eles não tinham a exata dimensão simbólica do que faziam.
Prova disso é que outros objetos voavam pela sala de forma aparentemente caótica - mas só aparentemente. Se alguém precisava de um lápis, voava um lápis na direção do solicitante. Eventualmente a ponta do lápis atingia um rosto, e a briga verbal começava, envolvendo todos. Como revide do lápis pontudo na cara, voava um caderno em direção contrária.
O problema não era falta de respeito para com o professor ou para com os colegas, mas uma cultura de vozes alteradas, contatos físicos voluntários, involuntários e não consentidos substituindo a palavra cordial; de reações físicas desproporcionais e de linguagem extremante agressiva, chula mesmo, a todo momento e a qualquer propósito. Uma cultura do choque, do confronto e da afronta.
Porém notei que a quantidade de bolinhas de papel em minhas costas se reduziu quando desloquei a lixeira da posição em que se encontrava, ao lado da mesa do professor, para perto da porta. Se minha raiva inicial não me tivesse cegado, teria observado que eles brincavam, quando o professor estava de costas, de atirar bolinhas não no professor, mas na cesta. Talvez alguns errando de propósito, meu ressentimento me permite supor.
Como fui idiota por um bom tempo... Meio que tacitamente combinei que haveria hora para o arremesso ao cesto, não precisavam me esperar virar as costas. E procurei com taxa pequena de sucesso aparente conversar com cada aluno, buscando que expressassem em suas redações suas "neuras".
É lamentável admitir, mas no final do ano, em casa, olhei com vergonha para meu saquinho de plástico cheio de inocentes bolinhas de papel - vergonha porque havia em mim uma certa maldade em colecioná-las. Não sei se até assimilar o gesto e compreendê-lo intimamente não acalentei o impulso vingativo de devolver cada uma daquelas bolotas a cada um de direito num momento apoteótico, tipo "grand finale".
No ano seguinte não só bolinhas, mas objetos pararam de voar pelas salas em que lecionei. Mas ainda me acorre por vezes a sensação desconfortável e o instinto não sei se perverso de achar que algumas daquelas bolinhas não tinham como endereço o cesto de lixo.
JEOSAFÁ, professor, foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo. É escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quaisO jovem Mandela(Editora Nova Alexandria); em maio de 2015, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora; no mesmo ano publicou A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela editora Mercuryo Jovem. Leciona atualmente para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados.
Pé de Ferro & Outros Poemas, de Adalberto Monteiro, é um país de múltiplas fronteiras, no sentido simbólico, mas também no geográfico. Faz fronteira com o amor-carne, mas também com o amor-sonho, o amor-irmão, o amor-intimidade, o amor-distância, o amor-desamor. Na poesia de Pé de Ferro há uma fronteira com o trabalho, outra com a diversão; uma com a dor, outra com o prazer; uma com a experiência, outra com a linguagem; com a surpresa, outra com o susto; uma com o olho, outra com a saliva. Mas há também miríades de fronteiras geográficas: gente com gente, rua com rua, bairro com bairro... E as que cada qual, vindo de diversas partes do Brasil e do mundo, traz dentro de si, fronteiras íntimas, ambulantes, acalentadas ou rejeitadas, acolhidas com inexplicável fraternidade ou cuspidas com sarcasmo por uma metrópole a um tempo sedutora e crua.
Há carioca, baiano, belo-horizontino, teresinense e até
goianiense da gema, mas não há paulistano da gema. Isso porque que o nativo da
cidade de São Paulo é apenas um entre as milhares e diversas identidades que
compõem a metrópole.
Amálgama de sonhos e frustrações locais e de todas as partes
do Brasil e do mundo, São Paulo não solda essas miríades de identidades sem
antes triturá-las em suas relações sociais truculentas, em suas ruas de
trânsito caótico, em sua atmosfera carregada de poluição e ruídos perturbadores.
Noutras palavras, quem nasce em São Paulo ou vem para São Paulo nasce e vem
para ser moído – e só depois colado, em fragmentos, se possível.
Adalberto Monteiro, poeta que no caco solto antevê o mosaico
de identidades truncadas, recolhe neste Pé
de ferro & outros poemas os fragmentos mal soldados que, ao se
despregarem da colcha de retalhos algo rota da metrópole e do mundo, caíram-lhe
às mãos como migalhas crocantes de pão fresco.
O pombo, que integrado à cidade, anda e, só depois de
chutado, se lembra de que é ave e volta a voar – é uma dessas migalhas. Dois
meninos, na falta de bola, chutando garrafa pet, enxotados da porta de um bar
na rua Aurora – são mais duas migalhas. Do comerciante que dá seu bom dia com
sua amabilidade de caixa registradora – caem mais algumas migalhas, estas,
sórdidas. O sorvete a escorrer da boca da moça no verão derretente; o amor que
se reconheceu multiplicado no perdão; a bala de hortelã trocada no beijo são outras
tantas, estas, santas.
Porém há as migalhas do mundo: as que se desprendem do pão
das Minas Gerais e do Araguaia, da Venezuela e de Cuba. A todas Adalberto apara
com suas mãos de poeta e oferece ao leitor com a verdade e a potência dos
versos escritos em guardanapos. Aliás, como registrou Milton Nascimento, a propósito
dos poetas de sua cidade – esses catadores de migalhas, que não querem
medalhas, nem tambores nem trombetas.
JEOSAFÁ, professor, foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo. É escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); em maio de 2015, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora; no mesmo ano publicou A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela editora Mercuryo Jovem. Leciona atualmente para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados.
O segundo dia do ENEM 2017, que já perdeu 3 milhões de inscrições em relação ao último do governo Dilma, confirmou uma tendência que já se revelara no primeiro dia, quando foram avaliadas as áreas de Linguagens e Humanas: o aprofundamento do conteudismo nas questões de Exatas e Ciências da Natureza favoreceu os alunos egressos de escolas privadas.
Seja, por exemplos, em Filosofia (avaliada no primeiro dia), seja em Matemática, a própria imprensa registrou a dificuldade que mesmo professores enfrentaram em resolver certas questões. Isso aponta não para a elevação do nível da prova, mas para a eleição de certos conteúdos que certas escolas trabalharam e outras não.
Ora, o ENEM foi elaborado para avalizar competências e habilidades, não se o aluno se recorda de conteúdos específicos ministrados ao longo de sua formação na Educação Básica. Muitas questões, tanto de Linguagens, Humanas e Redação, quanto de Ciências da Natureza e Matemática privilegiaram a memória de conteúdos tratados anteriormente. As questões interpretativas, marca desse Exame, perderam peso claramente.
Ao invés de se avaliar aquilo que é comum a todos os alunos do Ensino Médio brasileiro, pôs-se em foco aquilo que escolas "top" do sistema privado têm trabalhado - muito além do que é comum a todas as escolas desse nível de ensino.
A insuspeita revista Veja elogiou esta edição do ENEM como a que "valorizou o bom aluno" em prejuízo do "paraquedista". O que ela chama de "bom aluno" é, na verdade, o aluno da escola privada de elite, que deseja uma vaga gratuita na universidade pública; e o que ela chama de "paraquedista" é na verdade o aluno da escola pública, que vinha sendo incentivado a buscar uma vaga (que sempre lhe fora negada) numa universidade paga com o suor do trabalho de seus pais. O MEC do golpe já nem disfarça: o ENEM do golpe é também um golpe contra os filhos dos trabalhadores.
JEOSAFÁ, professor, foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo. É escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); em maio de 2015, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora; no mesmo ano publicou A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela editora Mercuryo Jovem. Leciona atualmente para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados.
O segundo dia do ENEM 2017 confirmou uma tendência que já se revelara no primeiro dia, quando foram avaliadas as áreas de Linguagens e Humanas: o aprofundamento do conteudismo nas questões de Exatas e Ciências da Natureza favoreceu os alunos egressos de escolas privadas.
Seja, por exemplos, em Filosofia (avaliada no primeiro dia), seja em Matemática, a própria imprensa registrou a dificuldade que mesmo professores enfrentaram em resolver certas questões. Isso aponta não para a elevação do nível da prova, mas para a eleição de certos conteúdos que certas escolas trabalharam e outras não.
Ora, o ENEM foi elaborado para avalizar competências e habilidades, não se o aluno se recorda de conteúdos específicos ministrados ao longo de sua formação na Educação Básica. Muitas questões, tanto de Linguagens, Humanas e Redação, quanto de Ciências da Natureza e Matemática privilegiaram a memória de conteúdos tratados anteriormente. As questões interpretativas, marca desse Exame, perderam peso claramente.
Ao invés de se avaliar aquilo que é comum a todos os alunos do Ensino Médio brasileiro, pôs-se em foco aquilo que escolas "top" do sistema privado têm trabalhado - muito além do que é comum a todas as escolas desse nível de ensino.
A insuspeita revista Veja elogiou esta edição do ENEM como a que "valorizou o bom aluno" em prejuízo do "paraquedista". O que ela chama de "bom aluno" é, na verdade, o aluno da escola privada de elite, que deseja uma vaga gratuita na universidade pública; e o que ela chama de "paraquedista", é na verdade o aluno da escola pública, que vinha sendo incentivado a buscar uma vaga (que sempre lhe fora negada) numa universidade paga com o suor do trabalho de seus pais. O MEC tenta disfarçar, mas o ENEM do golpe, é também um golpe contra os filhos do trabalhadores.
JEOSAFÁ, professor, foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo. É escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); em maio de 2015, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora; no mesmo ano publicou A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela editora Mercuryo Jovem. Leciona atualmente para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados.
A redação do tema, tal como divulgada pelo INEP, volta-se claramente não ao público do Ensino Médio, mas para os profissionais responsáveis pela formulação de políticas, teorias e práticas relacionadas à educação de pessoas surdas ou com déficits auditivos severos - noutras palavras, volta-se para os agentes públicos e para pedagogos.
Em que pese a pertinência da escolha, o tema da redação do ENEM 2017 ofereceu aos jovens candidatos egressos do Ensino Médio dificuldades que não lhes dizem respeito. Isso porque o tema não é a inclusão de surdos ou do portador de deficiência auditiva severa , nem a necessidade de respeito à pessoa humana com limitações seja de que ordem for. O tema, explicitamente, é "Desafios para a formação educacional de surdos no Brasil."
Os textos de estímulos oferecidos, que envolveram legislação e informações do INEP, não resolvem o problema de equívoco de público-alvo cometido na redação da temática divulgada ainda durante a aplicação do Exame (insisto, o tema volta-se a educadores, pedagogos, professores, profissionais da educação com nível Superior e gestores do sistema, não a estudantes do Ensino Médio entre 16 e 18 anos em sua maioria).
Forçado a propor intervenções para um tema voltado a um público específico (gestores e pedagogos), a tendência do candidato não especialista será, em relação ao tema tal como proposto, tangenciá-lo - e quando o fizer estará correto, pois não cabe a um estudante de Ensino Médio dominar teorias pedagógicas que lhe proporcionem condições de apresentar propostas de intervenção concretas, que sequer estão no horizonte de pedagogos e agentes governamentais atuais. Aliás, quantos estudantes de pedagogia de nossas melhores universidades estariam em condições tratar desse tema tão específico? Aliás, desafio o ministro da educação a redigir esta redação, sem consulta, neste exato momento. Veremos como ele se sai - qual seria sua nota? Aliás, pergunta meu amigo Plínio de Mesquita: "Teriam sido os alunos das escolas privadas amigas da atual gestão do MEC pegos de surpresa"? Noutras palavras, o direcionamento (proibido em concursos públicos) do tema favoreceu quem?
Sem saber o que fazer com a educação brasileira e menos ainda com a educação para surdos, com medo do MBL e da famigerada Escola Sem Partido, o INEP e o MEC atiram os jovens candidatos do ENEM aos leões, para ver se dessa massa de 6,7 milhões de jovens candidatos extraem luzes que iluminem as cabeças conservadoras que dirigem os mesmos INEP, MEC e governo Temer. Obrigado a realizar esta edição do ENEM também em LIBRAS, INEP, MEC e Governo Temer tiram o corpo de sua responsabilidade e a delegam para jovens, que não têm nada a ver com a péssima qualidade da atual gestão do MEC que, fruto de um golpe de Estado, não consegue dar uma dentro, mesmo quando tenta fazer média com a sociedade.
O que ocorrerá na banca de correção da redação do ENEM, em face do tema técnico de nível superior da área de educação mal redigido, é que o critério de pertinência temática terá de ser relativizado, melhor seria dizer afrouxado, caso contrário uma massa imensa de redações terá pontuação, nesse quesito, muito abaixo da média, puxando a média histórica do Exame, com certeza, para seu pior índice desde que o ENEM foi instituído em 1998. A expressão "formação educacional", em particular, terá de ser considerada com extrema largueza, pois estudantes de Ensino Médio simplesmente não tem a menor obrigação de dominar as especificidades relativas à pedagogia voltada para surdos, principalmente quando a própria gestão atual do MEC tem tão pouco a dizer sobre esse assunto.
JEOSAFÁ, professor, foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo. É escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); em maio de 2015, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora; no mesmo ano publicou A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela editora Mercuryo Jovem. Leciona atualmente para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados.
A presidenta do STF Carmen Lucia entra para a história como uma das figuras mais asquerosas da República. Ao atender a solicitação da organização fascista Escola Sem Partido, ela permite que sejam praticados nas redações do ENEM (que que caiu de mais de 9 milhões de inscritos para pouco mais de 6,5 milhões) crimes contra a pessoa humana fortemente penalizados pela nossa legislação. Agora a prática da tortura, a injúria racial, o preconceito contra deficientes, idosos, migrantes e imigrantes, a violência contra mulher, a pedofilia entre outros crimes serão pontuados.
Assim, aquilo que não se admite sequer em pichações de muros, e que é objeto de vasta legislação punitiva no Brasil e no mundo, no ENEM será validado. Nossa corte suprema, em seu pior momento, nos oferece um raio X de sua própria estrutura imoral e antiética.
Tudo o que se conquistou em termos de civilização, consagrado em lei, desde o fim da II Guerra Mundial, foi vilipendiado pela mais alta corte do país, que, assim, se associa e dá vitória a uma organização criminosa (Escola Sem Partido), para esfregar na cara dos brasileiros além de sua covardia, o esgoto ideológico, com o qual concorda e o qual legitima.
Os corretores das redações do ENEM deste ano terão de revolver esse esgoto ideológico para pontuar textos que fazem abertamente apologia dos crimes mais abjetos a que mentes perturbadas pelo ódio podem chegar. Não zerada, a redação terá de ser considerada em todos os critérios de correção: tema, estrutura, linguagem, proposta de intervenção, envolvidos nas competências avaliadas. Não contendo erro de português, por exemplo, poderá receber até pontuação máxima em linguagem, embora a linguagem esteja sendo usada para destruir e desmoralizar o próprio Exame.
Diante de um Congresso Nacional roído pela corrupção, de um Executivo fugitivo da polícia e de um Judiciário sócio do crime, vão restando poucas alternativas para a democracia, que não sejam a vias de fato.
JEOSAFÁ, professor, foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo. É escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); em maio de 2015, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora; no mesmo ano publicou A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela editora Mercuryo Jovem. Leciona atualmente para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados.
O coração generoso de Belchior parou na madrugada de hoje (30/4/17), mas o poeta-filósofo está mais vido do que nunca. Do meu arquivo pessoal, reproduzo reportagem de 1976, de Vitu do Carmo, para a revista Música,quando Belchior emplava CORAÇÃO SELVAGEM, depois de estourar no LP e Show Falso bilhante de Elis Regina os clássicos "Como nossos pais" e "Velha roupa colorida". Fiz a transição da adolescência para a juventude
ouvindo cantando Belchior. Ele me ensinou e àqueles de minha geração que
tiveram a sorte de compreendê-lo que a "voz ativa, ela é que é uma
boa". E que o grito de sede de justiça e liberdade não vem da boca, mas do
fundo mais fundo do coração.
BELCHIOR: A BUSCA INSANSÁVEL DO SUCESSO.
Revista Música, n. 13, ano II, 1976.
Por Vitu do Carmo
Seu talento como um dos letristas mais inovadores da música
popular brasileira foi que lhe assegurou prestígio junto à crítica e à boa
parte do público. Mas ao lado da criatividade, Belchior também deve seu sucesso
a uma infatigável disposição para perseguir tudo o que lhe interessa. Com a
mesma determinação, ele interpela a Censura Federal, que está retardando a
liberação de seu disco, ou percorre emissoras de rádio para que os
disquejóqueis o incluam na programação.
Tal determinação é compreensível em alguém que um dia
decidiu que iria “viver ou morrer de música”. E que durante um bom tempo
enfrentou a adversidade de um mundo novo e desconhecido, com a única certeza de
que precisaria lutar muito par se impor.
Nem os fidalgos leitores da revista Vogue, nem as simplórias fãs do programa do Chacrinha constituem, à
primeira vista, o público mais sensível da postura artística de Belchior,
considerado por muitos o mais importante renovador da música popular brasileira
na atualidade. Mas, numa clara demonstração de que não se subestima nenhum
veículo, Belchior faz questão de aparecer tanto numa revista que se esmera em
mostrar a última moda em roupa masculina, como num programa que se tornou
célebre pela distribuição de bacalhau ao auditório.
Justificando-se, ele alega que Chico Buarque e Caetano
Veloso, no início de suas carreiras, também frequentaram programas populares,
“desses que dão eletrodomésticos de presente”, e que isso apenas os fez mais
conhecidos, sem comprometer seus trabalhos. Não há dúvida, no entanto, de que
na convicção de que todo público merece o esforço do artista para conquistá-lo,
Belchior supera Caetano, Chico e quaisquer outros nomes de seu time – uma
constelação de autores com profundidade crítica em suas obras.
Em abriu, quando ainda se preparava o lançamento de seu mais
recente elepê, Coração Selvagem,
Belchior contabilizava os resultados do disco anterior, Alucinação, que já atingira a marca pouco comum de 150 mil
exemplares vendidos. Ele fazia outro tipo de balanço: para promover o disco, no
último semestre do ano passado, percorrera cerca de 60 cidades. O próprio
cantor e compositor ficou surpreso com as reações colhidas nessas andanças.
Julgava-se dono de um repertório “difícil” e acabou convencendo-se de que, ao
contrário, sua música é uma “arte popular”. Ele encontra a explicação para isso
no fato de seu trabalho “estar voltado para a realidade do povo”.
Belchior, um iconoclasta dos valores consolidados – chega a
dizer que “eles são todos péssimos” – demonstra, na verdade, um claro realismo
ao admitir sua dependência, como artista, de mecanismos estabelecidos. “Se os
artistas não fizerem mudanças”, costuma dizer, “os comerciantes é que irão
fazê-las. Mas não podemos esquecer que
também dependemos dos comerciantes. Nós fazemos as músicas e eles as vendem”.
Uma tal ponderação, para alguns, chega a ser estranha nos lábios de quem usa
palavras tão duras para explicar o esvaziamento da grande explosão cultural
provocada pela rebeldia dos anos 60, na qual sua obra colheu vigoroso empuxo.
“Toda experiência daquele período foi transformada pelo sistema em mercadoria,
em dinheiro, em lixo”, ele diz, com indisfarçável amargura.
Sua peregrinação pelas emissoras de rádio, com disco debaixo
do braço, e a humildade de procurar os disquejóqueis mais comprometidos com
auditórios inconsequentes, foi decisiva para consolidar sua situação atual. Não
faz muito tempo que seu prestígio era, no máximo, o de um bom compositor, mas
apenas com uma ou outra canção inserida em elepês alheios. Hoje seu contrato com a WEA
assegura-lhe até o privilégio de que cada novo disco que lançar terá como
suporte a montagem de um show, se necessário com ajuda financeira da gravadora.
Mas isso não diminuiu o disposição do autor de “Sujeito de
sorte” para continuar visitando programas de rádio e televisão. Recentemente,
ele teve que responder a perguntas do nível de “Você se lembra dos nomes de
todos os seus 22 irmãos?”, num programa da Rádio Mulher, em São Paulo,
apresentado pela também jurada de televisão Gilmara Sanches. E, por coincidência,
outra questão formulada pela entrevistadora, em que ouvintes que estavam
telefonando – se Belchior costuma ouvir muitos discos – deixou transparecer,
mais uma vez, o notável senso de disciplina profissional do autor, que já se
apresentou numa canção como “apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no
bolso”: “Ouvir música faz parte do meu trabalho”, afirmou. E destacou Bob Dylan
e Joan Baez como vozes mais assíduas em seu equipamento de som.
Para André Midani, diretor da WEA no Brasil, e responsável
pelo convite a Belchior para ser o primeiro contratado nacional da companhia –
que até há pouco se limitava a distribuir discos gravados pela matriz nos
Estados Unidos – seu escolhido é “uma pessoa com uma ambição incrível”.
Ávido também de seus direitos, o compositor de “Como o diabo
gosta” tomou a iniciativa de interpelar a Censura Federal, que se demorava na
liberação das músicas do elepê mais recente, Coração selvagem. Fez questão de ler o parecer dos censores;
descobriu que havia divergência entre eles quanto à conveniência ou não do veto
a determinadas composições. No fim, de dez músicas apresentadas, uma com o
título profético “Como se fosse pecado” foi proibida e outra – “Caso comum de
trânsito” – censurada em duas palavras. Belchior, de qualquer maneira, não se
sentiu menos “ferido e humilhado do que se os censores tivessem interditado o
disco inteiro.
Foi
muita sorte dele: descobriu uma banda de jazz em pleno sertão.
Coração selvagem é
o terceiro elepê que ele grava profissionalmente, depois de A palo seco, em janeiro de 1974, e Alucinação, em abril do ano passado.
Antes, em 1968, Belchior e alguns companheiros, que formavam o grupo de
viria ser depois conhecido como Pessoal
do Ceará, gravaram no estúdio Orgacim, em Fortaleza, um elepê de tiragem
restrita e distribuição praticamente limitada aos próprios intérpretes. Com
esse arremedo de realização, eles apenas aplacaram a ansiedade que sentiam por
uma verdadeira carreira, a se concretizar um dia, longe de Fortaleza, é claro,
pois, como Belchior diria na semi-autobiografia Fortaleza 3x4, “o que passa no Norte, pela leia da gravidade –
disso Newton já sabia – cai no Sul, na grande cidade.
Belchior desembarcou no Rio em abriu de 1971, trazido por um
avião da Força Aérea Brasileira, pois não tinha dinheiro para pagar a passagem.
O preço foi ter que cortar o cabelo para poder entrar no avião. Na bagagem
vinham algumas composições e muitos livros. “Em cada esquina que eu passava”,
diria depois a canção inspirada na dureza desses dias, “um guarda me parava,
pedia os meus documentos e depois sorria, examinando o 3x4 da fotografia e
estranhando o nome do lugar de onde eu vinha”.
Sobral, a cidade do Ceará onde ele nasceu a 26 de outubro de
1946, deu a Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes mais do que um
nome capaz de chamar a atenção na carteira de identidade. Foi lá que o futuro
compositor colheu as primeiras influências musicais, que começaram em casa,
pois a mãe era integrante do coro da igreja, o avô tirava sons na flauta, sax e
rabeca, e a avó dedilhava o violão. O pai, não. Era comerciante, mas com a
vantagem de que sua bodega vivia cheia de violeiros que improvisavam rodas de
cantoria. E, do lado de fora, havia serviço de alto-falante, onde desembocavam
os sucessos do Sul, de Ângela Maria e Edith Piaf, de Cauby Peixoto e Billie
Holiday. Receber essa variedade de ritmos já devia ser muita sorte para aquele
embrião de artista, isolado no sertão nordestino. Mas a vizinhança
reservava-lhe ainda um outro achado: uma família de negros protestantes, cujos
ascendentes tinham vindo dos Estados Unidos na época da Segunda Guerra. Era uma
verdadeira banda de jazz, que se reuniam todos os dias, no fim da tarde,
tocando um repertório pouco apropriado ao gosto local, mas que o menino
Belchior já espreitava intrigado.
Não era aquela música, no entanto, que ele começaria a
cantar em público pouco depois, aos 12 anos, quando passou a se apresentar em
feiras. Então, seu modelo era Luiz Gonzaga, cujos baiões repetia.
Mas logo depois Belchior vai para um colégio de padres, o
que introduz um novo ingrediente em sua formação musical: o canto gregoriano.
Este deixaria uma inconfundível marca na futura obra do compositor: as longas
letras, a notória discursividade, bem ao estilo dos cânticos que o menino era
obrigado a entoar em louvor a Deus.
No início, da década de 60, a seca tornou-se inclemente em
Sobral e Belchior acompanhou a família, na esperança de encontrar uma vida
melhor em Fortaleza. Na capital, fez o curso científico ao mesmo tempo que
ganhava algum dinheiro como carpinteiro ou fazendo máscaras para vender no
carnaval.
Findo o curso, procurou um mosteiro franciscano, pois queria
aprender filosofia. Nos dois anos e pouco que lá permaneceu, foi além do
currículo: descobriu que havia uma “biblioteca maldita”, onde apanhava livros à
noite, com alguns colegas, para durante o dia, escondido, se deliciar com T. S.
Eliot, Edgar Alan Poe, Brecht, os beatniks. E só foi posto para fora quando
teve a impertinência de mostrar aos seus superiores o produto de suas leituras
– uma tese segundo a qual sexo e prazer físico são fontes de inteligência e de
intuição criadora.
Em 1967, Belchior começou a estudar medicina, em Fortaleza.
Custeava os estudos com o que obtinha dando aulas particulares de biologia e
conseguiu chegar até o terceiro ano. Mas então sentiu-se “enlouquecido” com os Beatles e o tropicalismo
brasileiro e concluiu que tinha descoberto o verdadeiro caminho. Foi quando
cunhou a frase, uma espécie de lema que deve ter sido útil para manter o moral
nas muitas dificuldades que a decisão lhe acarretaria: “Vou viver ou morrer de
música”.
Comprou um violão e começou a estudar música de verdade. Ele
já se sentia plenamente apto a fazer as letras, mas queria um melhor suporte
melódico. Na verdade, a carreira de compositor não era uma escolha antiga.
Belchior deixa isso claro no folheto preparado em maio do ano passado pela
Phonogram para acompanhar o lançamento do elepê Alucinação. “O que eu sempre queria era escrever”, confessa. “Mas
num certo momento senti que era mais quente fazer música. Porque, não só em
termos de divulgação, mas ao nível do próprio receptor, o trabalho musical era
mais eficiente. Eu poderia cantar as mesmas coisas que estava querendo escrever
– só que com muito mais contato vivo, mais combatividade humana, muito mais
juventude”.
No final da década passada, o clarão dos festivais de música
popular irradiando-se do Sul atingiu Fortaleza, embora meio palidamente. Toda
aquela inquietação reforçou o sentimento de que havia algo a chamá-lo. Era hora
de fazer a lei da gravidade, cair par ao Sul.
Já em agosto de 1971, apenas quatro meses depois de chegar
ao Rio, Belchior ganhava o IV Festival Universitário, com “Hora do almoço” (“No
centro da sala/ diante da mesa/ no fundo do prato/ comida e tristeza). A música
deveria ser cantada pelo velho ídolo, Luiz Gonzaga, que no entanto não pôde
comparecer. Então Belchior mais dois
cantores – Jorginho Teles e Jorge Nery – todos vestidos de túnica e sandálias, “para
dar impacto”, entraram no palco e arrebataram o prêmio.
Mas as dificuldade do jovem autor não estavam terminadas –
antes, nem tinham começado. O esforço de Jorginho Teles conseguiu que a
Copacabana gravasse “Hora do almoço” com os três – mas assim eles só ocuparam a
face A de um compacto simples.
O disco seguinte só viria anos depois, também um compacto
simples, e já noutra gravadora, a Chantecler. Desta vez, com arranjo de Rogério
Duprat e cantando sozinho. Belchior mostrava uma música de cada lado, ambas de
sua autoria: “A palo seco” e “Sorry, baby”. Mas não era ainda o sucesso como
intérprete.
Belchior só pôde gravar seu primerio elepê – foi em 1974 –
depois de fazer sucesso como compositor, com músicas gravadas por Elis Regina e
Leny Andrade. A primeira canção de Belchior – em pareceria com Fagner – incluída
num elepê de Elis Regina foi “Mucuripe”, em 1972. A grande contribuição da
cantora para a consolidação do prestígio ao autor cearense, porém, ocorreu no
ano passado, com a inclusão de “Como nossos pais” e “Velha roupa colorida” no
elepê e no show Falso brilhante.
As coisas ficariam mais fáceis para ele, que, depois do
elepê Belchior, em 1974, na
Chantecler, gravaria Alucinação em
1976, na Phonogram e agora, em abril deste ano, Coração selvagem, na WEA.
Restou, da vida na grande cidade, antes do sucesso, a marca
da dura luta pela sobrevivência como cantor de boate, ou menos que isso.
Belchior morou no subúrbio carioca e chegou a trabalhar num hospital em troca
de comida. Em São Paulo, por uns tempos, viveu numa casa que estava sendo
demolida, de modo que ia mudando de um quarto para outro, à medida que as
paredes iam caindo. Só saiu de uma vez quando o último cômodo veio abaixo.
Jeosafá, professor, foi da equipe do 1o, ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo. É escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); em maio de 2015, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora; no mesmo ano publicou A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela editora Mercuryo Jovem. Leciona atualmente para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados.
A linguagem, ou a língua, aqui tomadas como sinônimos, pode assumir, a grosso modo, duas dimensões: a pragmática (prática) e a simbólica, sendo que nem a primeira nem a segunda são puras: tanto a dimensão predominantemente pragmática está mesclada com expressões de natureza simbólica, quanto a dimensão simbólica está contaminada pela dimensão pragmática da linguagem.
A dimensão pragmática da linguagem diz respeito ao uso cotidiano e prático da língua. Nela, os sentidos das palavras estão próximos e relacionados diretamente com os significados delas no dicionário linguístico: a palavra "caneta" representa um objeto empregado na escrita que se diferencia do lápis, feito com grafite, pelo emprego de tinta. Podemos, ao ouvir ou escrever "caneta", imaginar uma infinidade de formas, tamanhos e cores de caneta, porém a palavra está associada diretamente aos objetos possíveis de comporem um conjunto formado pelos diversos modelos de caneta. Ao chegarmos ao balcão de uma papelaria e pedirmos uma caneta esferográfica azul, o funcionário rapidamente exporá a nossa frente as que tiver para vender: escrita fina, escrita grossa, com cilindro colorido ou transparente etc. Todas, canetas.
Do mesmo modo, no uso didático, as palavras assumem por função esclarecer ideias, tirar dúvidas, exemplificar, refletir sobre aspectos da aprendizagem entre outros significados. As palavras aqui tendem a evitar duplos sentidos, buscam expressar ideias, conceitos, fórmulas, pensamentos com a maior exatidão possível, eliminando tanto quanto possível ambiguidades que induzam ao erro.
O mesmo se dá nas linguagens científica (sejam elas no campo das ciências exatas, no das humanas ou ainda no das linguagens) e informativa (ou jornalística), que também tendem à exatidão para comunicar conceitos, modelos científicos, fórmulas, fatos, sistematizar experiências ou experimentos etc.
Na dimensão pragmática o peso interpretativo é mínimo e o descritivo, máximo. Tanto que para os cientistas a partir do século XIX a ciência é antes de tudo uma descrição da realidade.
Em muitos sentidos, a dimensão simbólica é oposta à pragmática. Nela, ao contrário do que se disse até aqui, a linguagem se distancia da exatidão, as palavras se afastam de seus significados no dicionário linguístico e assumem francamente caráter ambíguo (de múltiplos sentidos).
Num romance, conto ou poema em que uma personagem está o tempo todo com uma caneta na mão a rabiscar, rascunhar, escrever, a palavra "caneta" é mais que um objeto destinado à escrita: ela simboliza todas tensões vividas pela personagem, seus sonhos, ansiedades, fantasmas, expectativas, traumas, desejos etc. etc. etc. Quando em posse dessa caneta em movimento, a personagem pode estar se sentido realizada ou torturada, em êxtase ou em sofrimento profundo, próxima do gozo ou à beira do suicídio.
Aqui o uso pragmático da linguagem cedeu espaço ao uso simbólico, que carece não apenas do dicionário linguístico, se bem que também aqui ele tenha lugar, mas de dois outros tipos de "dicionários" desordenados que estão depositados na mente e no coração do leitor: seu repertório de imagens (visuais, auditivas, olfativas, palatais e táteis) e seu repertório próprio linguístico.
Para se penetrar na dimensão simbólica da linguagem, ambos esses repertórios precisam ser ativados - e não basta isso: enquanto essa ativação não for automática e rápida, os sentidos relacionados às palavras não se constituirão no espirito do leitor (é como um computador que entrou em looping, que gira, gira, gira, mas não abre a página desejada e acaba por travar).
Embora os significados das palavras no dicionário sejam a base do sentido simbólico (afinal a palavra "caneta" significa caneta mesmo, e remete à imagem da caneta), para alcançar os infinitos sentidos simbólicos de uma palavra ou expressão (conjunto organizado delas), é preciso interpretar a palavra enquanto representação de símbolos e imagens, que remetem a sensações, sentimentos, pensamentos, ideias, conceitos, lembranças, experiências alegres ou dolorosas de vida repousadas em nosso inconsciente.
O símbolo "caneta" precisa suscitar em nossa lembrança o prazer de se ter usado pela primeira vez esse objeto. Quando nossa professora falou "Agora vocês podem usar a caneta", foi como se tivéssemos "ficado maiores", mais responsáveis, como se tivéssemos "crescido". Mas também o símbolo "caneta" remete seguramente a experiências que nos fizeram sofrer, por exemplo, aquela prova em que confundimos as alternativas na hora de fazer o X e marcamos por engano as erradas, embora soubéssemos as corretas.
Quanto mais imagens lembrarmos, quanto mais mobilizarmos nosso repertório de imagens, sensações, impressões visuais, auditivas, olfativas, palatais, táteis, conceituais (ideias e pensamento), maiores nossas chances de compreendermos as palavras-símbolo, que são o alfabeto da literatura.
Se a personagem inventada logo acima, presente em um texto de ficção, o tempo todo a rabiscar, escrever, anotar, num dado momento atira a caneta contra a parede e, não contente, a destrói com pisões, não é apenas uma caneta que está sendo destruída, mas talvez um sonho de escritor, poeta e de toda uma vida. Na caneta-símbolo destruída está selado o próprio destino de quem nela depositou tanta esperança subitamente frustrada.
Se essa personagem, arrependida, recolheu a caneta, guardou-a com carinho e a substituiu por outra para ressuscitar seu sonho no papel em branco, impulsos de vida triunfaram sobre os impulsos de morte. Porém se a personagem com a destruição da caneta pôs fim a seu sonho, enterrando-o definitivamente, podemos supor e mesmo deduzir, e mesmo apostar que o caminho de sua autodestruição se abriu como a boca de um dragão infernal. Daí para frente assistiremos à degradação de alguém que tinha tudo para dar certo, mas que perdeu-se definitivamente ao perder seu sonho.
A literatura depende dessa habilidade imaginativa do leitor, que pode e deve ser desenvolvida por meio de jogos simbólicos e práticas criativas de conversão da palavra-símbolo em imagens e da associação delas com situações, sensações, sentimentos, ideias, pensamentos já vividos por nós realmente (na forma de lembranças de experiências boas ou ruins) ou simbolicamente (filmes, músicas, peças de teatro a que assistimos, ou ainda jogos, brincadeiras, diversões prazerosas em que nos envolvemos durante a vida).
Quem não consegue imaginar, não acha graça em uma personagem ou situação hilária, porque simplesmente não a viu em sua mente, por conseguinte não a sentiu em seu espírito. Como rir do que, por não conseguirmos associar a nada, sequer visualizamos ou sentimos?
A cena da personagem pisoteando a caneta pode assumir um caráter trágico. Para captar essa tragédia, precisamos visualizá-la em detalhes. Porém, o autor pode introduzir um elemento de humor para "avisar o leitor" de que, afinal, o drama da personagem não é assim tão grave, e que seus exageros um tanto ridículos representam o ridículo a que todos nós estamos sujeitos quando perdemos o controle sobre nossas emoções.
No cinema, Chaplin foi campeão em extrair o riso dessas situações constrangedoras em que nos envolvemos sem querer, que parecem o fim do mundo, quando na verdade são apenas raiva momentânea e humanamente aceitável, digna de tudo, não de lágrimas.
A interpretação envolve assim a mobilização de dois repertórios interiores, o imagético e o linguístico, numa conversão (quanto mais automática possível, melhor) de palavras em imagens e símbolos, e destes novamente em palavras, que trazem para a consciência os segredos e mistérios embutidos nas imagens e nos símbolos.
Se não captamos a piada implícita, perdemos a oportunidade de rir e de extrair do riso a possibilidade de superação da dor que mora atrás ou no fundo de cada piada. Porém para captar a ironia do riso, é preciso imaginar a cena toda e deduzir dela o ridículo, o engraçado, o vexame, o humor.
Assim, quem "não gosta" de literatura tem antes de tudo uma questão a resolver com sua própria imaginação. Sem imaginar, não dá para sentir, gozar, ter prazer - aliás, nem com literatura, nem com coisa nenhuma.
Jeosafá, professor, foi da equipe do 1o, ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo. É escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); em maio de 2015, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora; no mesmo ano publicou A lenda do belo Pecopin da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela editora Mercuryo Jovem. Leciona atualmente para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados.
Quando foi expulsa do útero de sua mãe, Nina sentiu-se completamente desprotegida, solta num mundo que se lhe apresentou hostil e no qual não teria chance alguma de sobreviver sozinha. Até aquele momento guardada no ninho morno e aconchegante, protegida dos ruídos doloridos, da luz ofensiva e do ar frio, agora ela teria, além de enfrentar esses desconfortos, que respirar e se alimentar por conta própria, pois, cortado o cordão umbilical, sua mãe não lhe deixou outra alternativa. Essas foram as primeiras impressões que se gravaram no corpo e no inconsciente de Nina tão logo ela se separou da mãe.
Tomado o primeiro banho, Nina foi levada à mãe, que a conchegou no colo nu e a fez sentir o calor morno dos seios inchados de colostro - e depois de leite. Nina sentiu-se confortável, olhou para cima e viu de maneira embaçada uma imagem. Essa imagem lhe falava em voz doce. Em seu corpo, Nina sentiu o toque agradável das mãos e dos braços maternos. A imagem embaçada do rosto, aquela voz, aquele calor, aquele toque foram das primeiras imagens visuais, sonoras e táteis impressas no corpo e na psique de Nina - e eram imagens boas, afinal, o mundo do lado de fora se tornava menos hostil em face desse acolhimento amoroso e confortável.
Alojada no colo, agora a mãe a leva ao seio. Porém Nina não sabe o que fazer, pois até a pouco se alimentava pelo cordão umbilical. A mãe insiste, besuntando os lábios da filha com o líquido espeço que vaza da mama. Ainda não sabe o que é sabor (imagem gustativa), mas Nina sente um cheiro que, ao se associar com as imagens agradáveis anteriores (o rosto a inspirar segurança, a voz doce, o calor e o toque prazerosos), ganha um sinal de positivo em suas impressões iniciais do mundo.
Espera! Esse cheiro vem desse líquido espesso... Será que é bom?
Depois de várias tentativas, Nina descobre o que fazer: sugar. O líquido entrando pela boca, descendo pelo aparelho digestivo dá um grande prazer. A dor na barriga desaparece, a irritação vai embora e, enquanto suga o colostro, Nina olha para cima e, em pouco tempo, não no mesmo dia, talvez nem nos próximos, vai enxergando mais nitidamente aquele rosto amoroso, aquele olhos doces e associando-os ao imenso prazer de mamar e... cochilar deliciosamente.
Ao longo de sua vida, bilhões de imagens visuais, sonoras, táteis, palatais, olfativas (agradáveis e desagradáveis; prazerosas ou profundamente traumáticas) se imprimirão no corpo e na psique de Nina. Muitas dessas "impressões" físicas e psíquicas ficarão, modo de dizer, à flor da pele, outras serão esquecidas e ficarão depositadas, em estado latente, em seu inconsciente. Às vezes aparecerão em sonhos ou pesadelos, às vezes voltarão à tona ao acaso na forma de lembrança: um cheiro que remete a uma situação perdida no tempo; um pôr-de-sol que a fará recuar anos no passado e experimentar com a mesma intensidade de criança uma sensação associada a uma pessoa amada e, miséria das misérias, perdida para sempre.
A verdade é que Nina enlouqueceria caso se lembrasse de tudo que viveu, ou caso sentisse tudo a que seu corpo e sua emoção foram expostos, sem o amortecimento do tempo. Noutras palavras, sem o recalque de um mundo de sensações e impressões físicas e psicológicas, Nina não se teria convertido em menina, moça e mulher.
Sem entrar em muitos meandros que cabem mais aos psicólogos do que a escritores ou professores de língua e literatura, meu caso, o que importa aqui saber é que Nina, como todos nós, é uma parte consciência, outra parte mistério (inconsciência). Com certeza, a parte maior de nós e dela é a que fica encoberta, recalcada, trancada nos porões ou sótãos da nossa psicologia - e dela .
Gosto de empregar a alegoria do poço: nosso inconsciente é um poço cego, profundíssimo, escuro, mas cheio de água - doce ou podre, potável ou infecciosa, clara ou cheia de lodo, plácida ou tormentosa.
Ao longo da vida, nossas experiências convertidas de imagens em sensações (de dor ou prazer, gozo ou frustração, euforia ou medo, entre milhões de outras) escorrem pelas fendas do chão duro da nossa consciência e vão se depositar nos "lençóis freáticos" do nosso inconsciente, de que desconhecemos a profundidade e extensão.
Ao abrir um poço para trazer de volta à tona um pouco dessa água, fizemos uma parte do que é possível para resgatar uma mísera fração de tudo que vivemos e que ficou impresso em nossa própria profundeza.
Porém abrir esse poço é só metade do trabalho: é preciso ter às mãos ao menos uma corda e um balde, para, com a frequência necessária à nossa sanidade, atirá-lo ao fundo e com ele puxar um tanto dessa água clara ou turva, límpida ou poluída, potável ou venenosa.
Esse poço, essa corda e esse balde, são a linguagem verbal.
É por meio dela que temos a possibilidade de tornar consciente, por meio da conversão de imagens e símbolos em palavras, aquilo que, escorrendo pelas fendas de nossa consciência ao longo dos anos, foi se depositando no fundo desse poço cego que é o nosso inconsciente.
Se não desenvolvemos essa habilidade de ir ao poço do nosso inconsciente munidos ao menos dessa corda e desse balde, manifestações desse inconsciente um belo dia saltarão acidentalmente pelas mesmas fendas de nossa psicologia pelas quais desceram na forma de pesadelos - quando dormimos - ou na forma de sintomas (mal-estar aparentemente sem origem, angústia, depressão - ou mesmos sintomas físicos ou psíquicos compulsivos, que requererão auxílio de profissional especializado).
E onde é que a literatura entre nessa conversa?
A literatura (ficção ou poesia), linguagem em potência máxima, é por excelência o kit perfeito para furar poços, com corda, balde e sarilho junto. Não é à toa que o pai da psicanálise, Sigmund Freud, foi buscar na literatura clássica grega os modelos para o desenvolvimento de sua ciência.
A literatura é um grande laboratório da vida. Todas as possibilidade individuas e coletivas, psicológicas e sociais, íntimas e históricas têm nela livre curso. Nossos medos e fantasmas, nossa coragem e covardia, nossa capacidade para a generosidade ou para a monstruosidade, para o amor e o ódio, a lealdade ou a traição, nossa feiura e nossa beleza, nossos sonhos e nossos pesadelos estão nela esperando por nós ou esperando que soltemos ou projetemos nela nossos anjos e demônios.
Não é preciso se expor à violência para se experimentar todo seu potencial de destruição: há poemas, peças teatrais, romances, contos que nos fornecem farto material para sentirmos e refletirmos sobre ela.
Ainda que por uma razão absolutamente prática, a literatura permite que o indivíduo antecipe consequências de situações na vida real similares àquelas representadas literariamente. Não é preciso se envolver com pessoas cruéis para se saber do que elas são capazes: a literatura universal está repleta de personagens cujas características foram extraídas de pessoas existidas, existentes e possíveis de virem a existir no futuro.
A literatura está repleta de maníacos, de gente sórdida, repulsiva, interesseira, abjeta, capaz de tudo, inclusive de impor os piores sofrimentos a outras pessoas, para atingirem seus objetivos ou simplesmente para obter prazer. Seria ótimo se essas representações não tivessem referência na vida real. Mas já que têm, sempre é bom conhecê-las por meio dos experimentos que a literatura oferece - até porque o monstro pode ser a gente mesmo.
Do mesmo modo, a literatura universal transborda de personagens os mais generosos, corajosos, lutadores, solidários, éticos, bonitos moralmente (e o Corcunda de Notre Dame não é exemplo solitário de feio-lindo) - e também os conflituosos, meio médicos, meio monstros.
Ao nos habilitar em converter imagens e símbolos em palavras e vice-versa, a literatura nos entrega de bandeja os instrumentos para que penetremos nos estágios mais profundos de nossa condição humana e de nossos próprios inconscientes de indivíduos.
Assim fica explicado por que tantos dizem não gostar de literatura: não conseguem converter imagens e símbolos em palavras, e muito menos o processo inverso: converter palavras em imagens e símbolos, que por sua vez se relacionam complexamente com sensações, sentimentos, lembranças, ideias e conceitos. Ou seja, não conseguem mobilizar seu infinito repertório de imagens simbólicas (visuais, auditivas, táteis, palatais, olfativas) acumulado em si mesmos ao longo dos anos. Estão sem poço, sem corda e sem balde para puxar a água de suas próprias profundezas.
Como ninguém gosta de sofrer, ao não se extrair das palavras nada que dê prazer, é comum a rejeição à literatura sob o argumento: "não gosto", que na verdade quer dizer "não consigo": não consigo converter palavras em imagens visuais, auditivas, palatais, olfativas, táteis, conceituais... - e, por conseguinte, "não consigo sentir nada".
Porém, ao rejeitar a literatura, ainda que por uma culpa que só não lhe cabe em parte, o indivíduo estará a léguas da humanidade e de si mesmo - e a compreensão que terá dela e de si será sempre, na melhor das hipóteses, infantil e rasa.
Nina é nome que eu inventei para simbolizar todas as pessoas que, por meio da leitura literária, descobriram o prazer em jogar o balde bem fundo dentro de si e puxar desse fundo sem fundo um tanto de mundo e outro tanto de si. A literatura é sua terapeuta, seu laboratório de vida e sonhos. Por meio dela elas podem viajar a mundos passados, contemporâneos e futuros, e também imaginar e sentir o delicioso conforto do seio, do leite e mesmo do útero materno per omnia saeculum seculorum.
Jeosafá, professor, pesquisador colaborador do Depto. de História da USP, foi da equipe do 1o, ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo. É escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); em maio de 2015, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora; no mesmo ano publicou A lenda do belo Pecopin da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela editora Mercuryo Jovem. Leciona atualmente para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados.