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quinta-feira, 2 de março de 2017

A literatura está ao alcance de todos, mas nem todos a alcançam

Quando foi expulsa do útero de sua mãe, Nina sentiu-se completamente desprotegida, solta num mundo que se lhe apresentou hostil e no qual não teria chance alguma de sobreviver sozinha. Até aquele momento guardada no ninho morno e aconchegante, protegida dos ruídos doloridos, da luz ofensiva e do ar frio, agora ela teria, além de enfrentar esses desconfortos, que respirar e se alimentar por conta própria, pois, cortado o cordão umbilical, sua mãe não lhe deixou outra alternativa. Essas foram as primeiras impressões que se gravaram no corpo e no inconsciente de Nina tão logo ela se separou da mãe.

Tomado o primeiro banho, Nina foi levada à mãe, que a conchegou no colo nu e a fez sentir o calor morno dos seios inchados de colostro - e depois de leite. Nina sentiu-se confortável, olhou para cima e viu de maneira embaçada uma imagem. Essa imagem lhe falava em voz doce. Em seu corpo, Nina sentiu o toque agradável das mãos e dos braços maternos. A imagem embaçada do rosto, aquela voz, aquele calor, aquele toque foram das primeiras imagens visuais, sonoras e táteis impressas no corpo e na psique de Nina - e eram imagens boas, afinal, o mundo do lado de fora se tornava menos hostil em face desse acolhimento amoroso e confortável.

Alojada no colo, agora a mãe a leva ao seio. Porém Nina não sabe o que fazer, pois até a pouco se alimentava pelo cordão umbilical. A mãe insiste, besuntando os lábios da filha com o líquido espeço que vaza da mama. Ainda não sabe o que é sabor (imagem gustativa), mas Nina sente um cheiro que, ao se associar com as imagens agradáveis anteriores (o rosto a inspirar segurança, a voz doce, o calor e o toque prazerosos), ganha um sinal de positivo em suas impressões iniciais do mundo.

Espera! Esse cheiro vem desse líquido espesso... Será que é bom?

Depois de várias tentativas, Nina descobre o que fazer: sugar. O líquido entrando pela boca, descendo pelo aparelho digestivo dá um grande prazer. A dor na barriga desaparece, a irritação vai embora e, enquanto suga o colostro, Nina olha para cima e, em pouco tempo, não no mesmo dia, talvez nem nos próximos, vai enxergando mais nitidamente aquele rosto amoroso, aquele olhos doces e associando-os ao imenso prazer de mamar e... cochilar deliciosamente.

Ao longo de sua vida, bilhões de imagens visuais, sonoras, táteis, palatais, olfativas (agradáveis e desagradáveis; prazerosas ou profundamente traumáticas) se imprimirão no corpo e na psique de Nina. Muitas dessas "impressões" físicas e psíquicas ficarão, modo de dizer, à flor da pele, outras serão esquecidas e ficarão depositadas, em estado latente, em seu inconsciente. Às vezes aparecerão em sonhos ou pesadelos, às vezes voltarão à tona ao acaso na forma de lembrança: um cheiro que remete a uma situação perdida no tempo; um pôr-de-sol que a fará recuar anos no passado e experimentar com a mesma intensidade de criança uma sensação associada a uma pessoa amada e, miséria das misérias, perdida para sempre.

A verdade é que Nina enlouqueceria caso se lembrasse de tudo que viveu, ou caso sentisse tudo a que seu corpo e sua emoção foram expostos, sem o amortecimento do tempo. Noutras palavras, sem o recalque de um mundo de sensações e impressões físicas e psicológicas, Nina não se teria convertido em menina, moça e mulher.

Sem entrar em muitos meandros que cabem mais aos psicólogos do que a escritores ou professores de língua e literatura, meu caso, o que importa aqui saber é que Nina, como todos nós, é uma parte consciência, outra parte mistério (inconsciência). Com certeza, a parte maior de nós e dela é a que fica encoberta, recalcada, trancada nos porões ou sótãos da nossa psicologia - e dela .

Gosto de empregar a alegoria do poço: nosso inconsciente é um poço cego, profundíssimo, escuro, mas cheio de água - doce ou podre, potável ou infecciosa, clara ou cheia de lodo, plácida ou tormentosa.

Ao longo da vida, nossas experiências convertidas de imagens em sensações (de dor ou prazer, gozo ou frustração, euforia ou medo, entre milhões de outras) escorrem pelas fendas do chão duro da nossa consciência e vão se depositar nos "lençóis freáticos" do nosso inconsciente, de que desconhecemos a profundidade e extensão.

Ao abrir um poço para trazer de volta à tona um pouco dessa água, fizemos uma parte do que é possível para resgatar uma mísera fração de tudo que vivemos e que ficou impresso em nossa própria profundeza.

Porém abrir esse poço é só metade do trabalho: é preciso ter às mãos ao menos  uma corda e um balde, para, com a frequência necessária à nossa sanidade, atirá-lo ao fundo e com ele puxar um tanto dessa água clara ou turva, límpida ou poluída, potável ou venenosa.

Esse poço, essa corda e esse balde, são a linguagem verbal.

É por meio dela que temos a possibilidade de tornar consciente, por meio da conversão de imagens e símbolos em palavras, aquilo que, escorrendo pelas fendas de nossa consciência ao longo dos anos, foi se depositando no fundo desse poço cego que é o nosso inconsciente.

Se não desenvolvemos essa habilidade de ir ao poço do nosso inconsciente munidos ao menos dessa corda e desse balde, manifestações desse inconsciente um belo dia saltarão acidentalmente pelas mesmas fendas de nossa psicologia pelas quais desceram na forma de pesadelos - quando dormimos - ou na forma de sintomas (mal-estar aparentemente sem origem, angústia, depressão - ou mesmos sintomas físicos ou psíquicos compulsivos, que requererão auxílio de profissional especializado).

E onde é que a literatura entre nessa conversa?

A literatura (ficção ou poesia), linguagem em potência máxima, é por excelência o kit perfeito para furar poços, com corda, balde e sarilho junto. Não é à toa que o pai da psicanálise, Sigmund Freud, foi buscar na literatura clássica grega os modelos para o desenvolvimento de sua ciência.

A literatura é um grande laboratório da vida. Todas as possibilidade individuas e coletivas, psicológicas e sociais, íntimas e históricas têm nela livre curso. Nossos medos e fantasmas, nossa coragem e covardia, nossa capacidade para a generosidade ou para a monstruosidade, para o amor e o ódio, a lealdade ou a traição, nossa feiura e nossa beleza, nossos sonhos e nossos pesadelos estão nela esperando por nós ou esperando que soltemos ou projetemos nela nossos anjos e demônios.

Não é preciso se expor à violência para se experimentar todo seu potencial de destruição: há poemas, peças teatrais, romances, contos que nos fornecem farto material para sentirmos e refletirmos sobre ela.

Ainda que por uma razão absolutamente prática, a literatura permite que o indivíduo antecipe consequências de situações na vida real similares àquelas representadas literariamente. Não é preciso se envolver com pessoas cruéis para se saber do que elas são capazes: a literatura universal está repleta de personagens cujas características foram extraídas de pessoas existidas, existentes e possíveis de virem a existir no futuro.

A literatura está repleta de maníacos, de gente sórdida, repulsiva, interesseira, abjeta, capaz de tudo, inclusive de impor os piores sofrimentos a outras pessoas, para atingirem seus objetivos ou simplesmente para obter prazer. Seria ótimo se essas representações não tivessem referência na vida real. Mas já que têm, sempre é bom conhecê-las por meio dos experimentos que a literatura oferece - até porque o monstro pode ser a gente mesmo.

Do mesmo modo, a literatura universal transborda de personagens os mais generosos, corajosos, lutadores, solidários, éticos, bonitos moralmente (e o Corcunda de Notre Dame não é exemplo solitário de feio-lindo) - e também os conflituosos, meio médicos, meio monstros.

Ao nos habilitar em converter imagens e símbolos em palavras e vice-versa, a literatura nos entrega de bandeja os instrumentos para que penetremos nos estágios mais profundos de nossa condição humana e de nossos próprios inconscientes de indivíduos.

Assim fica explicado por que tantos dizem não gostar de literatura: não conseguem converter imagens e símbolos em palavras, e muito menos o processo inverso: converter palavras em imagens e símbolos, que por sua vez se relacionam complexamente com sensações, sentimentos, lembranças, ideias e conceitos. Ou seja, não conseguem mobilizar seu infinito repertório de imagens simbólicas (visuais, auditivas, táteis, palatais, olfativas) acumulado em si mesmos ao longo dos anos. Estão sem poço, sem corda e sem balde para puxar a água de suas próprias profundezas.

Como ninguém gosta de sofrer, ao não se extrair das palavras nada que dê prazer, é comum a rejeição à literatura sob o argumento: "não gosto", que na verdade quer dizer "não consigo": não consigo converter palavras em imagens visuais, auditivas, palatais, olfativas, táteis, conceituais... - e, por conseguinte, "não consigo sentir  nada".

Porém, ao rejeitar a literatura, ainda que por uma culpa que só não lhe cabe em parte, o indivíduo estará a léguas da humanidade e de si mesmo - e a compreensão que terá dela e de si será sempre, na melhor das hipóteses, infantil e rasa.

Nina é  nome que eu inventei para simbolizar todas as pessoas que, por meio da leitura literária, descobriram o prazer em jogar o balde bem fundo dentro de si e puxar desse fundo sem fundo um tanto de mundo e outro tanto de si. A literatura é sua terapeuta, seu laboratório de vida e sonhos. Por meio dela elas podem viajar a mundos passados, contemporâneos e futuros, e também imaginar e sentir o delicioso conforto do seio, do leite e mesmo do útero materno per omnia saeculum seculorum.

Jeosafá, professor, pesquisador colaborador do Depto. de História da USP, foi da equipe do 1o, ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo. É escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria);  em maio de 2015, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora; no mesmo ano publicou A lenda do belo Pecopin da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela editora Mercuryo Jovem. Leciona atualmente para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados.


segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Poesia na Escola, do Jeosafá




Dia 1o. de dezembro a Editora Biruta lançará uma coleção minha sobre a presença da poesia na escola (três volumes). Vai ser na Livraria da Vila, em São Paulo, na r. Fradique Coutinho, 915, a partir da 19,30h. Haverá debate sobre os assassinatos contra a poesia na escola e sobre as possibilidades de nessa mesma escola a poesia brotar, crescer dar flores e frutos. Depois do debate, o tradicional vinho, a tradicional conversa fiada da boa e autógrafos. A seguir, um trecho do texto que introduz um dos volumes.

Vamos iniciar nossa jornada pelas terras arrasadas da poesia com uma pergunta: por que ela, ao menos no Brasil, ocupa espaços cada vez mais reduzidos nas estantes das livrarias? Essa pergunta simples e direta só pode ter uma resposta igualmente simples e direta: porque a poesia tem cada vez menos leitores, obviamente. A pergunta é descabida? Não. A resposta é descabelada? Igualmente não.

A pergunta parte de uma constatação tão óbvia que a mais ligeira passada de olhos pelas estantes de qualquer livraria do Brasil basta para confirmar. Quer ver? Então vamos lá: direto à livraria do seu bairro. Bem, é quase certo que seu bairro não tem uma única livraria sequer. Então, está bem, então direto ao centro comercial mais próximo. Porém é quase certo que uma livraria, livraria mesmo, não exista. Talvez uma papelaria que venda livros, eventualmente uma banca de jornal... Então vamos fazer o seguinte: direto ao shopping center mais próximo, ainda que ele fique longe do bairro e mesmo fora do município, ou direto a uma rodoviária ou aeroporto... Satisfeita a curiosidade?

Se não é fácil encontrar sequer uma livraria, que dizer então da situação da poesia, cuja situação, exposta pela pergunta logo acima, é tão desalentadora quanto verdadeira?

Por que tão pouca gente se interessa por ela? A coitada está num miserê tal que, se morresse, seu enterro seria exatamente igual ao daqueles pobres andarilhos que tombam exangues pelas ruas das grandes cidades ou pelas beiradas das rodovias deste país imenso: uma viatura, sem maiores alardes, para não chamar a atenção dos transeuntes, apanharia o corpo serenado e mal coberto pelos andrajos úmidos da noite, e o levaria para o lugar nenhum. Ninguém para olhar a cena. Ninguém para ficar com os olhos úmidos e um ponto de exclamação, ou de interrogação, espetado no alto da cabeça, a observar o carro sumir na distância, com sua carga frágil, na poeira ou no mormaço deformante do asfalto.

Exagero? Quantos livros de poemas você tem em sua biblioteca? Aliás, você tem uma biblioteca em sua casa? Ao menos umas poucas estantes de livros?

Sejam quais forem as respostas a essas inquietantes perguntas, a pertinência delas é já um problemão não acha? E essa pertinência se deve a outra constatação óbvia: as pessoas, no Brasil, cultivam exiguamente o hábito da leitura, do que decorre o pouco interesse em ajeitar os livros no espaço muitas vezes apertado da residência. Daí, esses incômodos objetos acabam sendo deslocados de um canto a outro até encontrarem uma caixa de papelão perfeita, no interior da qual serão depositados e esquecidos até criarem bolor e não prestarem para mais nada.

Então é melhor deixar as coisas do jeito que estão, senão podem piorar, não é mesmo? Não, não é. Assim como as histórias não morrem nos livros que mofaram por descuido, as pessoas podem ser mobilizadas para que atribuam valor ao que muitas vezes, por falta de alerta, de insistência ou de jeito, ficou latente, mas não extinto: o prazer de ler.

Então vamos recapitular: livros de poesia faltam nas livrarias porque faltam leitores para elas. Esses leitores são os mesmos que reservam pouco espaço em suas casas, e em suas vidas, para a leitura. Nesse caso, a carência de leitores de poesia só pode ser entendida como uma, no âmbito de um conjunto de carências ainda mais amplas.

Porém, o assunto aqui não é o das carências mais amplas. O assunto aqui é o da carência talvez mais aguda da literatura. Há a penúria do teatro... Mas a penúria do teatro não é nada perto da penúria da poesia. Não é preciso nem estabelecer concorrência entre os dois para saber quem é mais pobre, mais sem posses, mais jogado à beira do caminho. Então, não vamos perder tempo com comparações equívocas entres irmãos deserdados, um a dormir sob pontes e outro a dormir sob marquises de prédios arruinados.

O conto e a crônica, quem não sabe que as editoras publicam muitíssimo mais do que a poesia? O romance então... esse é barão, perto dos outros, muito embora seja assassinado todos os dias nas escolas do país por "leituras" obrigatórias que, a pretexto de educar por meio de provas atávicas e de trabalhos desprovidos de bom senso, só não causam mais danos ao prazer de ler porque simplesmente o extinguem no nascedouro – o coração do estudante.

Mas uma coisa tem de se admitir: não há uma única pessoa no país que não fique com pena da situação da coitada poesia.

A situação da poesia é mesmo de comover um coração de pedra, de congelar o sangue nas veias, de arrasar nervos de aço e outras metáforas e hipérboles descabeladas mais.

E se Júlio Verne achou ter feito uma alegoria definitiva da situação da poesia, em seu Paris no Século XX, ao enviar seu personagem-poeta ao final do romance a um passeio desolador no cemitério, é porque sequer imaginou os efeitos que poderia ter extraído do romance caso situasse suas lúgubres previsões no Brasil de inícios do século XXI.

Com o que disse até aqui com a necessária dose de exagero de linguagem, espero ter convencido essa decisiva pessoa chamada "você" da necessidade de irmos todos para o front em defesa das barricadas da poesia. Então, como bárbaros, como um exército de brancaleones, vamos tomar de assalto as estantes de livrarias e bibliotecas, empurrando para fora de nossas fronteiras os livros de outros gêneros. Não se pode ter piedade neste momento.

Livros de auto-ajuda, vocês têm suas razões ou desrazões de ser, mas, com o perdão do mau jeito, cheguem para lá; livros de culinária, vocês são deliciosos, mas as hordas da poesia vão invadir estas prateleiras: se mandem para o andar debaixo ou de cima; obras de economia-política, de física nuclear, de vida e obra de grandes artistas do cinema, vocês são totalmente demais, porém: batam em retirada, que os volumes de Manuel Bandeira, Carlos Drummond, Cecília Meireles, Florbela Espanca, Haroldo de Campos, Leminski e novos poetas, entre outros, enlouqueceram e, como vikings, partem em desabalada correria para retomar o espaço perdido.

Como já disseram outros, noutros termos, a propósito de outras causas consideradas justas, queimando atrás de si as pontes de retirada, lancemos nosso grito de guerra: Avante, companheiros:

 

Hasta la victoria siempre!















segunda-feira, 30 de março de 2009

Leitura literária na escola


No mundo atual, os parâmetros da globalização têm a pretensão de moldar as normas do viver e do conviver das sociedades, com propósito de uma “interação mundial” bastante particular e cujos efeitos vamos conhecendo mais ampla e profundamente nestes anos 2000. Parte essencial dessa mundialização, as novas tecnologias da comunicação, propiciadoras de acesso imediato às informações e ao entretenimento numa abundância nunca suspeitada, exercem papel predominante nessa instantânea interação, ao mesmo tempo fascinante e desafiadora.

Todavia, essa interação tem sido feita no mais das vezes em detrimento e em substituição de experiências essenciais ao espírito humano em âmbitos locais, comunitários, nacionais e mesmo globais, do que tem resultado, para estes lados do Ocidente, uma padronização cultural empobrecedora, orientada para o consumismo desenfreado, alienado e anulador de identidades legítimas, de diversidades sociais, culturais e simbólicas e, no limite, de direitos fundamentais da cidadania.


No caso brasileiro em específico, é notória a insuficiência de situações e espaços que propiciem saber e cultura, entendidos não como artigos passíveis de descarte, mas como elementos inerentes à instituição da própria natureza humana, nos termos da Declaração Universal dos Direitos Humano:

Artigo 27:
I) Todo o homem tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de fruir de seus benefícios.
II) Todo o homem tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor.

Todavia, não há razão de ser para se temer ou aceitar que práticas sociais e simbólicas sejam abolidas pelo surgimento de novas tecnologias, embora haja quem tema e igualmente quem defenda esses pontos de vista.

Em Confissões de Minas (Andrade, Carlos Drummond de. Confissões de Minas. Col. Joaquim Nabuco. Dir. Álvaro Lins. 1 ed. Rio de Janeiro. Ed. América, 1944.) um Drummond ainda moço, algo irônico e ressentido, acusa o surgimento do cinema como razão do desaparecimento de grupos amadores de teatro de Itabira, não sem antes sugerir seu amor de fã por Greta Garbo – em seu último livro, o poeta retorna a esse amor sem qualquer complexo de culpa.

Mas o cinema não extinguiu o teatro e se este último enfrenta crises permanentes no Brasil, tanto quanto, a bem da verdade, também o primeiro, isso tem mais a ver com a dinâmica do próprio setor e suas relações com a sociedade e com o Estado do que com qualquer suposta concorrência predatória entre artes, sistemas de produção simbólica ou mídias.

O mesmo se disse do cinema em relação à TV. Porém, passado um período de acomodação entre um e outro, a própria TV se abasteceu e consolidou a partir da veiculação de conteúdos gerados pela indústria cinematográfica. O desacerto desses setores deve-se, assim, não a uma concorrência de vida e morte entre ambos, mas a injunções políticas e econômicas cujos desdobramentos preterem, infelizmente, meios culturais e de produção de saber de extrema relevância.

Ao lado disso, é necessário constatar que as novas tecnologias trouxeram fortes elementos desestabilizadores dos diversos campos de produção simbólica constituídos ao logo de séculos, e não poucos entenderam que esses elementos desestabilizadores teriam potenciais apocalípticos, entre os quais, vale citar alguns:
  • A produção escrita culta, pela proliferação de "vícios" de linguagem aceitos e estimulados pela internet, veria seu prestígio social decrescer acentuadamente;
  • A leitura em geral e a leitura literária em particular, enquanto atividades de apropriação do mundo por meio do texto verbal tornar-se-iam acessórias em face da eficácia e do impacto das novas formas e gêneros disponíveis pela e na WEB;
  • A linguagem iconográfica da internet deslocaria significativamente a literatura de seu eixo verbal-escrito para o icônico;
  • Os meios digitais extinguiriam o livro impresso;
  • A sintaxe simultânea da tela, instituindo uma nova ordem leitora, instauraria a produção em massa de leitores para os quais a linearidade da escrita tradicional, e seus gêneros, seria um arcaísmo de difícil aceitação.
A lista de restrições é tão extensa que não compensaria aqui acrescê-la, ainda que mantida a ordem alfabética.

Fato significativo, porém, é que as novas tecnologias, passados os primeiros anos de impacto e euforia novidadeira, não apenas passaram a exigir uma significativa elevação das habilidades leitoras da sociedade em geral como também têm impulsionado, com ainda maior vigor, o letramento e o mergulho em práticas sociais e simbólicas relacionadas à língua materna e à literatura, seja no que tange à produção de gêneros tradicionais ligados à oralidade, seja no que se refere à produção escrita em seus múltiplos gêneros, tipologias e inusitadas modalizações impostas pela nova realidade.

Inversamente do que se imaginou na idade da pedra das novas tecnologias, se é que já nos encontramos em outra era, o horizonte aberto pela nova realidade não só impôs a recuperação de práticas relacionadas à leitura, à literatura e à escrita aparentemente em vias de extinção como também agora as estimula, revigora e incorpora enquanto conteúdos para pô-las em circulação em uma escala mundial nunca antes imaginada sequer pelo espírito mais otimista.

Assim, o pretenso definhamento da produção e reprodução da literatura e de outros gêneros apoiados no idioma e na leitura, como o teatro, não só se nos apresenta hoje como verdadeira paranóia niilista, como se vai reconhecendo ser a restrição dessas práticas a espaços deslegitimados subproduto não de avanços tecnológicos, mas de insuficiência ou ausência de respostas do próprio campo simbólico e da sociedade a uma situação concreta, que exige novos posicionamentos adequados à realidade.
As novas tecnologias e seu desenvolvimento exponencial não podem e não têm de ser encarados como as dez pragas do Egito. Muito pelo contrário, devem ensejar o impulso vivificante de busca e construção de ações criativas e vigorosas que reorganizem o campo simbólico, no interior do qual a formação de público leitor de literatura não é elemento secundário, de modo a acolher e extrair os melhores proveitos da nova realidade.

Por sua natureza intrinsecamente formadora, do ponto de vista intelectual, estétoco, moral e ético, a leitura literária, bem como as práticas que a instituem enquanto parte do sistema de produção simbólica, não tem substituto. O que ela oferece, apenas ela pode oferecer, de modo que estar privado, ou participar insatisfatoriamente dela – num mundo em que a formação intelectual é critério e linha de fronteira para inclusão ou exclusão social – é estar privado de uma parte essencial da cidadania e da própria humanidade em sentido mais amplo, profundo e contemporâneo.

Não existir para o patrimônio constituído, mobilizado e acessado pela leitura literária é confinar-se a situações e espaços simbólicos tendentes à desumanização, ao vilipêndio e ao aviltamento da cidadania; no limite, corresponde à asfixia das potencialidades vocacionais, das aspirações de completude e dos sonhos de realização individual dos quais o homem não pode abrir mão sem condenar-se, mutatis mutandis, à morte espiritual agônica.

Pelo inverso, existir com desenvoltura para esse patrimônio resulta não apenas em imbuir-se de fluxos constantes de humanidade como em pôr-se a circular vívida e participativamente por uma humanidade ampla no tempo, larga no espaço, rica na diversidade, infinitamente abundante na produção e disponível tão integral e simultaneamente quanto possível hodiernamente.

Nas novas tecnologias de informação a leitura literária encontra não uma rivalidade insolúvel, mas uma parceria comprovadamente fecunda, tanto quanto se sabe extremamente fecunda a tradicional fraternidade entre literatura e teatro.

O ponto de vista aqui adotado considera mistificação a atribuição de culpa pela crise do ensino de literatura nas escolas às mídias contemporâneas. A satanização da televisão e das novas tecnologias de informação se configura reação simplória e obscurantista a um problema que realmente necessita ser enfrentado e para o qual em nada contribui a atitude escapista de se depositar no outro a razão das próprias mazelas.

Se jovens e mais jovens perdem o interesse pela literatura, ou antes, se sequer tiveram esse interesse despertado em qualquer momento de sua trajetória escolar, seguramente isso não se deve à boa ou má programação da tevê ou ao impacto dos computadores nas sinapses virgens, mas à falta de respostas ou a insuficientes respostas da escola, tomada em seu conjunto, a uma questão que é fundamentalmente sua.

Não cabe à televisão nem à internet a responsabilidade de desenvolver habilidades relacionadas à leitura literária: cabe à escola. Noutras palavras, o problema não é do vizinho: é de nós mesmos, professores e educadores, que necessitamos sonhar e inventar caminhos, articulando o ensino da leitura literária com as substanciais contribuições das artes, das novas tecnologias e das diversas áreas do saber.

O texto escrito é, sem sombra de dúvidas, um dos bens de maior circulação e assume inequívoco valor de troca no mundo de hoje. Da sua criação individual ou coletiva, passando por sua produção industrial, à sua comercialização, governada por vasto emaranhado jurídico, que abrange das constituições e leis ordinárias de cada país a acordos da OMC (Organização Mundial do Comércio), ele, o texto, se constitui em produto comercial de grande valor econômico que movimenta ramos inteiros da economia mundial. E não há sombra de dúvidas que o principal filão desse comércio é o relativo à literatura, haja vista as monumentais, concorridas e reconhecidas feiras internacionais realizadas em todos os continentes, a mobilizar fortunas e públicos cada vez maiores.

Porém, antes de escoar pelo sistema produtivo na forma de mercadoria, o texto é produto intelectual da subjetividade humana, é expressão de cultura, particularidade que lhe confere natureza social imensurável, que age na construção de identidades e diversidades responsáveis pela coesão de grupos, comunidades locais, regiões, nações, blocos internacionais e articulações globais tanto mais intensificadas pela WEB.

Do ponto de vista simbólico, a circulação do texto e das práticas que o instituem (a leitura e a escrita) é muito mais ampla e tem um impacto muito mais duradouro e profundo do que os frios números do mercado podem sugerir. Um livro, uma vez adquirido e amorosamente preservado, tem uma vida útil centenária, e se oferecerá como jazida disponível a gerações e gerações de indivíduos que a ele tenham acesso – e se esse acesso for ainda incrementado por versão cibernética e por meios de consulta virtual, a vida útil desse bem se torna incalculável, quer em extensão no tempo, quer em profundidade de penetração social. E quem há de negar que o texto, o livro literário tem lugar de destaque nessa lógica?

Muito se tem falado, no caso do Brasil, que se lê pouco e mal, e, no mais das vezes, sob pressão da escola. São frequentes as comparações com outros países, sendo a rivalidade com a Argentina, a título quase humorístico, para além do futebol, também nesse caso acionada, sempre com certo ressentimento de nacionalismo ingênuo: Buenos Aires teria mais livrarias do que todo o Brasil no conjunto.

As comparações são válidas, pois permitem que nos situemos em face do mundo. Ademais, consultar os resultados dos exames nacionais ou do PISA não há de resultar em ofensa a ninguém. Todavia nenhuma melhoria, em se tratando de constituição do público leitor literário, será efetiva se apoiada em simples reprodução de modelos elaborados para outras realidades, épocas e culturas, ou na desmobilização da escola e na redução de seu poder de pressão, que, a meu ver, deve, isto sim, aumentar.

Há, relativamente à população, poucas livrarias nas grandes cidades brasileiras, mas praticamente toda banca de jornal de nossas cidades grandes e médias, que não são poucas, vende, além de periódicos, livros e variados outros tipos de publicações que incorporam o texto literário.

Podemos concordar que seja insuficiente, e efetivamente o é, mas estamos longe da estaca zero: o Brasil detém hoje um significativo parque industrial voltado para os produtos da leitura em geral e literária em particular, e o patrimônio cultural brasileiro depositado em páginas impressas ou em websites está longe de ser desprezível.

Todavia, há que se reconhecer e enfrentar o problema da necessidade de reforço do público leitor de literatura, que depende de um impulsionamento geral das atividades de leitura cujo pólo dinâmico, sem qualquer sombra de dúvida, é a escola, das séries iniciais aos níveis superiores da educação.
Por óbvio, cabe à escola papel de destaque na alfabetização e na educação básica de nossas crianças e jovens. Porém não é ocioso perguntarmo-nos para que se realiza essa alfabetização e essa escolarização senão para auxiliar os indivíduos a se constituírem em leitores livres ao longo de seu período de escolarização e para além dele.

Elevar e aprofundar o letramento da população por meio da escola, na idade mais adequada para que isso ocorra, permitindo a ela desenvolver consistentemente competências e habilidades leitoras essenciais para os dias de hoje, em que não ficam em segundo plano as habilidades de leitura literária, é não só franquear a ela o acesso ao patrimônio imaterial do Brasil e do mundo como ainda, e com maior ênfase, incluí-la de forma integral, bem para além dos limites do mercado consumidor de obras escritas.

Por assim entender é que o ponto de vista aqui adotado volta-se para a constituição de habilidades de leitura literárias já nos primeiros anos de escolarização, especificamente o Ciclo 1 do Ensino Fundamental.
Por muitas razões, a leitura em geral e a literária em particular, como atividades inerentes ao processo de ensino-aprendizagem em na sala de aula, foram sendo preteridas no cotidiano escolar. Em nome do cumprimento de um programa que as deixou de fora, quer como conteúdo, quer como objetivo de aprendizagem, o professor foi sendo premido a solicitar aos alunos leituras domiciliares e a dar como entendido por eles o que ele, professor, não tinha sequer condições de saber com rigor se fora lido.

Sob o argumento de que a turma numerosa e o tempo exíguo impedem a leitura, literária ou não, em sala de aula, esta foi sendo empurrada para a margem do processo de ensino-aprendizagem até tombar na indigência de uma área cinzenta do saber, território de ninguém, cuja responsabilidade de cuidar, por essa mesma razão, ninguém assume.
Como fosse produto com data de validade prefixada, cuja importância decrescesse na proporção do avanço do aluno rumo às séries finais da Educação Básica, a leitura, principalmente a literária, é ainda hoje preterida paulatina e crescentemente das séries iniciais do Ensino Fundamental às demais do Ensino Médio.
Os péssimos resultados dos nossos jovens e crianças em exames estaduais, nacionais e internacionais denunciam a situação de verdadeira calamidade a que as atividades de leitura foram sendo relegadas ao longo dos anos. E dessa situação não se sai se a leitura não passar a ocupar a cena central da sala de aula e se o professor, por sua própria iniciativa e apoiado pelo sistema, não assumir o real protagonismo das ações comprometidas com resultados satisfatórios e com a elevação do desempenho dos alunos nesse quesito tão decisivo da formação escolar e humana.

O foco no Ciclo 1 do Ensino Fundamental reforça no professor o papel de emulador das habilidades de leitura literária do aluno, desenvolvidas a partir de leituras concretas, orais, silenciosas, individuais, coletivas, formais, dramáticas, analíticas ou interpretativas, para controle democrático de desempenho ou para a exposição de idéias, para estudo do texto e para o gozo, para aprender e para divertir, para acumular conhecimentos e para compartilhar experiências propiciadas pelo contato com temas e formas.

Ler, ler, ler, na sala de aula e em casa, experimentando todas as contribuições, todas as técnicas, todas as estratégias, todos os modelos criados para o mergulho nos oceanos simbólicos escondidos nas letras. Ler, mobilizando práticas de sucesso já consagrado, como aquelas relacionadas ao teatro, por exemplo, e recursos disponibilizados pelas novas tecnologias, tais como o audiovisual digital, as ferramentas da internet entre outros, convidando a nova geração de brasileiros hoje na escola, toda ela nascida já na era digital, a compartilhar a cultura das letras, que nasceu nas paredes das cavernas, sim, mas que, delas ao papiro e ao pergaminho, e destes à folha de papel, num salto, já voa transmutada pelas páginas da World Wide Web com seus La Fontaine, Perrault, Lígia Bojunga, Moteiro Lobato, Mil e uma Noites, entre outros, como uma imensa cegonha cibernética.

Porém, o desenvolvimento de habilidades de leitura literária no Ciclo 1 do Ensino Fundamental não é alheio a questões extremamente polêmicas, quer no campo da pedagogia, quer no campo da própria literatura.
A meu ver, certas visões limitadas, vigentes e dominantes hoje no ensino oficial, mercê de uma inércia mórbida, em que pesem esforços governamentais, redundam na seleção de textos absolutamente inócuos do ponto de vista da relação ensino-aprendizagem, fúteis, do ponto de vista da formação humana, e paupérrimos, do ponto de vista do trabalho de linguagem.

Como é que se vão desenvolver habilidades de leitura literária a partir de textos construídos a partir de clichês, obviedades, e lógicas calcadas no mais estéril senso comum? Com é que se vai desenvolver o gosto literário, eminentemente estético, a partir de pastiches ou de facilitações reducionistas de obras clássicas já voltadas para uma faixa etária específica? Como é que se vai desenvolver a acuidade linguística e de linguagem a partir de textos sem complexidades, sem desafios, sem nada a oferecer a não ser o arremedo em lugar do verdadeiro, o simulacro em lugar do original?

A meu ver, é preciso assumir uma postura de resistência em relação à pressão do mercado editorial, que em muitos casos quer vender livros com cada vez menos textos, mais imagens e mais banalidades; e em relação à força da inércia comodista, imperante no sistema educacional, que prefere ceder às facilidades e desviar o foco das críticas às suas insuficiências para a televisão e para novas tecnologias, bodes expiatórios a pagarem por seus pecados e pelos de outros.

Por óbvio, nessa faixa do Ensino Fundamental residem em potencial os futuros leitores de literatura, que não o serão caso não tenham habilidades específicas de leitura desenvolvidas no contato com o patrimônio literário reconhecidamente relevante e socialmente legitimado pelas instituições criadas por nós para esse fim, que se têm seus limites, devem ainda assim ser observadas, uma vez que não cabe ao professor ou ao mercado editorial decidir o que é literatura.

A experiência de leitura e de trabalho de literatura com crianças de periferia, em ambiente escolar ou comunitário, me demonstraram que tanto as dificuldades de linguagem dos textos mais sofisticados, quanto a distância das experiências retratadas neles são encaradas com naturalidade pelas crianças, que não necessitam mais do que a solidariedade e a paciência do adulto ou do professor para penetrar o mundo por vezes labiríntico da literatura.

Dessa minha experiência, nascida de uma intuição – a de que textos esteticamente pobres deseducam – cresceu a convicção aqui apresentada: a de que, para um sério trabalho de desenvolvimento de habilidades básicas de leitura literária, os textos verdadeiramente literários são imprescindíveis, e já desde os tenros anos da vida humana, antes mesmo do letramento, da aquisição da fala e quiçá da viagem para o exterior do útero materno.

O ensino escolar de literatura é frequentemente justificado por razões bastante fortes, tais como a necessidade de desenvolvimento de habilidades:
  • relacionadas ao domínio do idioma em nível mais avançado, portanto linguísticas;
  • de desenvolvimento do espírito, portanto intelectuais;
  • de conformação do próprio caráter, portanto morais;
  • relacionadas à sensibilidade artística, portanto afetivas e expressivas.
Historicamente, tem-se a predominância da primeira sobre as demais razões elencadas anteriormente, em razão do que as habilidades estritamente literárias são alocadas nas séries finais do Ensino Básico, quando se espera que, pelo estágio de domínio do idioma, o estudante esteja em condições de abordar com propriedade os fenômenos complexos da língua envolvidos no texto artístico, a partir do qual, compreendido em sua dimensão idiomática, serão realizadas aquisições intelectuais, morais e afetivas.

Não por acaso listei as razões em destaque na ordem em que o fiz, mas por ser essa a escala de importância tradicionalmente atribuída à presença do texto literário na escola: em primeiríssimo lugar, a literatura é pretexto para ensino do português culto, principalmente escrito; em segundo lugar, o texto literário serve para ensinar a pensar, a raciocinar, a tecer hipóteses; num honroso terceiro lugar, na condição de apêndice do processo de ensino-aprendizagem, o texto literário serve para a realização de reflexões morais que, por essa mesma razão, não serão jamais avaliadas, simplesmente porque não podem ser alvo de mensuração no âmbito escolar; e em último lugar, o texto literário na escola presta-se a seu próprio fim: o de desenvolver e mobilizar habilidades de leitura literária. Isto no Ensino Médio.

Todos sabemos que o domínio um pouco mais seguro de um campo do saber é resultado de acúmulos sucessivos por anos de aquisições, acomodações, crises, retomadas e saltos qualitativos. Como então pretender que, sem um longo e sistemático contato com o texto literário, um estudante do Ensino Médio apresente em face dele uma atitude acolhedora, produtiva, criativa e interessada? Como pretender que o estudante, habituado à leitura literária como pretexto, acolha sem rejeição o texto o literário como conteúdo do saber?

Considero que as dificuldades do ensino-aprendizagem de literatura comumente enfrentadas por professores e estudantes do Ensino Médio residem não além, mas aquém de suas fronteiras: no Ensino Fundamental.
E considero também que se práticas constituintes de habilidades de leitura literária não forem instituídas já no Ciclo I do Ensino Fundamental, correm o risco, e a realidade o demonstra, de não serem instituídas nunca.
Investigar sobre pontos de insuficiência ou de estrangulamento das relações de ensino-aprendizagem de leitura de textos literários é, por isso, essencial nessa fase da Educação Básica.

Esses pontos de insuficiência e estrangulamento, pelos resultados apresentados por exames como o PISA, o SAEB, Provinha Brasil ou outros, espalham-se por toda a cadeia do Ensino Básico brasileiro. E se o pólo de comparação for o PISA, o desempenho dos alunos de escolas privadas do Brasil não se distancia substancialmente daqueles das escolas públicas.

Por essa razão considero, tenho a firme convicção de que a leitura literária só alcançará sucesso no Ensino Médio caso as competências e habilidades básicas que as mobilizam e desenvolvem estejam fortemente presentes já no currículo e no cotidiano do Ciclo I do Ensino Fundamental, verdadeiro solo de todas as conquistas futuras.