terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Sexo e poder

 

O século XX foi atravessado por duas grandes ondas revolucionárias, cujo epicentro ocorre na Europa de fins do século XIX e cujos reflexos se espalharam pelo mundo e repercutem até os dias de hoje.

A primeira delas, não necessariamente em ordem de importância, diz respeito ao campo da política, e está ligada diretamente à obra de Karl Marx, para quem as crises capitalistas levariam o mundo inexoravelmente ao socialismo. Não houve processo de independência nacional ou de revolução social de fins do século XIX e de todo o século XX que não esteve de alguma forma associada ao pensamento marxista.

A segunda onda que se ergue no fim do século XIX, atravessa todo o XX e segue com força neste início de XXI, é da revolução sexual, diretamente relacionada à obra de Sigmund Freud. Não houve e não há movimento feminista ou contra discriminação de gênero ou identidade sexual desde Freud que não se remeta de alguma forma à sua obra, seja para apoiar-se nela, seja para buscar novos caminhos, criticando-a.

A influência desses dois pensadores é tão avassaladora sobre a produção científica e intelectual, que se tornou comum explicar os processos sociais e políticos do mundo contemporâneo pelo binômio “sexo e poder”, noutras palavras, Freud e Marx.

No entanto, as revoluções sociais não são objeto deste artigo — embora seja instigante buscar as aproximações e distanciamentos entre Freud e Marx. O objetivo, aqui, é realizar uma reflexão não extensa sobre a importância de Freud na pesquisa da psique humana.

Diferentemente de Marx, que buscou nas relações e nas classes sociais as razões da infelicidade coletiva, Freud voltou suas atenções para os mecanismos psíquicos internos do indivíduo, responsáveis por sua saúde ou por sua insanidade emocional.

Seu modelo topográfico, em que consciente, pré-consciente e inconsciente se articularam para descrever a vida psíquica humana foi um passo decisivo para que as ciências da mente se afastassem de explicações mistificadoras ou de ordem religiosa. Seu modelo estrutural, posterior, em que Id, Ego e Superego descrevem o mecanismo estruturante do indivíduo foi outro passo de gigante para as ciências da mente.

Ao abordar transtornos psíquicos como resultantes de traumas relacionados ao desenvolvimento sexual, do nascimento à idade adulta, Freud jogou luzes sobre problemas muitas vezes representados na literatura e nas artes, porém de forma poética.

Nas relações conturbadas entre homens e mulheres, mãe-filho/a, pai-filho/a, tão frequentes na literatura, Freud enxergou não retratos de anomalias morais, mas representação artística de uma constante mais profunda, relacionada ao próprio desenvolvimento da sexualidade humana.

Fugindo aos limites da moral de época, que tantas vezes penetrou os domínios da ciência e a impregnou de preconceitos — porém sem deixar de ser um homem de sua época, portanto, moldado pelos limites históricos do tempo em que viveu — Freud esforçou-se por desromantizar a relação homem-mulher e pais-filhos. Por essa razão, foi, e ainda é, alvo da ira de grupos e indivíduos que preferem sacralizar relações humanas, a encará-las como produto de relações sociais e políticas, mas também psicossexuais.

Ao propor que o indivíduo humano desenvolve sua sexualidade desde o momento em que reúne condições fisio e neurológicas para tanto, Freud deu a senha para que parte significativa da humanidade marchasse contra ele mesmo. Melhor não ficou sua situação no meio científico conservador de sua época, e menos aprovação teve ainda do senso comum, quando escreveu com todas as letras que a mãe e o pai são os primeiros responsáveis tanto pelo desenvolvimento saudável da sexualidade de seus filhos, quanto por seus traumas na idade adulta.

A visão científica de Freud era incompatível com representações ideológicas prevalentes ao longo dos séculos que se, por um lado, colocavam a mãe em um altar e o pai em um trono, por outro, fechava os olhos para as razões dos transtornos psíquicos, destinando os “anormais” e  “loucos” para casas de alienados, para os hospícios, para as cadeias, ou para a fogueira, junto com bruxas, perversos, criminosos ou descontentes com a ordem vigente.

Ao buscar explicações científicas para transtornos psíquicos, Freud foi forçado a esmiuçar as entranhas da mais antiga instituição humana, a família, que se reveste dos véus simbólicos da religião, mas cuja base concreta é o sexo.

Ao voltar sua lupa para os mecanismos psíquicos do indivíduo, o que Freud descobriu foram associações complexas entre biologia, fisiologia e introjeção de representações simbólicas de relações sociais: mãe, pai, família, comunidade, Estado.

Descartadas razões de ordem física, em que se incluem lesões, malformações e genética, que origem poderiam ter as neuroses e psicopatologias, a não ser em mecanismos psíquicos afetados por relações ou eventos traumáticos, introjetados em momentos decisivos da vida do indivíduo, o principal deles a infância?

Dedicando sua vida de cientista humanista à luta contra o sofrimento do indivíduo, Freud desenvolveu métodos de pesquisa e terapêuticos que o levaram a creditar grande parte da origem dos traumas psíquicos da vida adulta a eventos relacionados a perturbações do desenvolvimento sexual na infância.

Durante o século XX, muitos estudiosos, estes com conhecimento de causa, questionaram a ênfase de Freud na sexualidade como dimensão central da saúde psíquica — ou de transtornos, neuroses e patologias psíquicas —, e Jung não é, aqui, figura solitária.

No entanto, cabe a pergunta: não tivesse Freud chamado a atenção a esse aspecto que, hoje, passa por obviedade, teriam as ciências da mente alcançado o estágio em que se encontram?

A importância do método psicanalítico hoje


Todo aquele que busca auxílio a um psicanalista o faz premido por uma necessidade incontornável — às vezes e com frequência como último recurso — para superação de sofrimentos interiores em face dos quais se sente impotente e muitas vezes devastado. Isso ocorre porque os conflitos internos de menor complexidade o indivíduo enfrenta por seus próprios meios, só se dando conta da urgência de ajuda especializada quando se convence, quase sempre de maneira tardia, de que não recuperará seu equilíbrio emocional sem essa ajuda.

Porém, o psicanalista, consciente de seu próprio limite, dado pelo ponto de análise em que ele mesmo se encontra junto a outro psicanalista, é livre par aceitar a demanda, ou orientar o paciente a outro colega em melhores condições, uma vez que o processo de transferência analisando-analisado é posto em risco se o analista se depara com conflitos situados além de seu próprio ponto de análise.

Isso ocorre porque o método psicanalista, ao buscar a busca pela palavra, põe um sujeito em interação franca com outro, um com uma demanda, outro com uma técnica, ambos envolvidos num mesmo processo cujo fim é a resolução dos conflitos internos do demandante, mas cujo meio é propiciado pelo demandado, que pode se sentir inteiramente apto para liderar o processo de análise, mas que também está livre para, em dado momento, reencaminhar o demandante a outro profissional.

A entrevista preliminar, sob esse ponto de vista, é essencial, pois permite ao analista tanto realizar um diagnóstico tão preciso quanto possível, quanto avaliar seu próprio papel em face da demanda solicitada e do próprio demandante.

Uma vez aceita a demanda, o processo psicanalítico põe em movimento não apenas os elementos apresentados pelo demandante, os quais inevitavelmente são apenas resíduos, vestígios, fragmentos dos conflitos que atormentam sua psique.

Se o elemento aparentemente detonador do sofrimento que levou o demandante ao consultório se afigura a ele claro e inequívoco — tal como uma perda de ente querido, uma separação dolorosa e inexorável, uma frustração avassaladora —, a partir dessa declaração voluntária e livre, estimulando a livre associação do próprio paciente, o analista trabalha com esse elemento no mesmo nível de importância que os demais que forem surgindo a partir da fala do próprio analisando, pois o demandante pode estar certo, parcialmente certo ou simplesmente equivocado com relação à causa de seu sofrimento.

Num processo contínuo de transferência e contratransferência, analista e analisando, ajustando sempre o idioma comum, aprofundam a busca na psique das causas do sofrimento — que sempre são mais complexas do que se afiguram na superfície da consciência. E, ainda que a intuição do analista esteja correta, a técnica psicanalítica exige que ele ajude o analisando a construir por si mesmo o caminho de sua cura, porque, nesse sentido, a cura é exatamente essa construção íntima, essa estrutura psíquica que jamais poderá ser alcançada do exterior, sendo, antes, fruto da elaboração do próprio analisando.

A reconquista do equilíbrio emocional, da saúde psíquica, assim, não é resultado de uma ação exclusiva, dirigida a um único ponto da psique em que por ventura, aparentemente, um trauma se apresente, mas é um processo integral de transformação do sujeito, em que as causas dos sofrimento são buscadas ao mesmo tempo em que mecanismos de autoconhecimento são ativados e estimulados para a reconfiguração da psique, reconfiguração que, caso bem-sucedida, dá ensejo a uma psique saudável não porque uma “cicatriz” simbólica passa a ocupar o lugar de um trauma, mas porque o trauma, descoberto, analisado, elaborado e superado pelo próprio indivíduo, por mecanismo internos desenvolvidos por ele mesmo, deixa de produzir seus efeitos perturbadores na psique.

Em certo sentido, talvez um dos principais objetivos do método psicanalítico seja auxiliar o analisando a reconstituir seu Ego, que, por alguma razão que o método busca elucidar, perdeu força em face do Id, do Superego — ou de ambos.

Forçado a servir a dois senhores — Id e Superego —, o Ego, tendo de se haver ainda com as demandas do mundo real, pode se fragilizar em algum momento da vida — e, inevitavelmente, em algum momento se fragilizará, mesmo, uma vez que, como a vida externa, a vida psíquica é dinâmica e está sujeita a impactos imprevisíveis, muitos deles negativos e alguns, mesmo, devastadores.

Ao longo de seu tempo de vida, o indivíduo está sujeito a frustrações e perdas extremamente dolorosas — e quanto mais tempo viver, mais estará exposto a essas experiências. Será inevitável que em algum momento sua saúde psíquica seja afetada, particularmente nos tempos conturbados em que vivemos, de conflitos de toda espécie e dimensões, que envolvem o conjunto da sociedade e têm impacto direto no indivíduo, o tempo todo pressionado pelas instabilidades econômicas e políticas, pelo fantasma do desemprego ou do insucesso profissional, pela insegurança em relação ao amanhã ou ainda pelas crises conjugais e familiares.

Desse modo, manter a saúde psíquica, mais do que uma preocupação ocasional, assume relevância cotidiana. Fazer psicanálise, sob esse ponto de vista, não é apenas uma necessidade para demandas específicas, em que crises agudas se manifestam, mas uma prática relacionada à prevenção de situações-limite, ao autoconhecimento e ao bem-estar do indivíduo contemporâneo que, exposto a conflitos e à fadiga mental diariamente, só os enfrenta com sucesso se estiver interiormente firme e forte — em poucas palavras: se estiver reforçando sua psique o tempo todo.

O desenvolvimento conflitivo da psique humana

Embora o desenvolvimento psíquico humano ocorra à medida que o próprio desenvolvimento físico ocorra, os estudos de Freud demonstraram que isso se dá de forma contraditória, não linear e sempre com avanços, recuos e acidentes de percurso de maior ou menor gravidade, dos quais derivam as neuroses e psicoses.

Num desenvolvimento absolutamente “normal”, Freud identificou cinco fases de desenvolvimento psíquico humano: ora, anal, fálica, latência e genial.

Na primeira fase, oral, entre 0 e 2 anos, a erotização da boca leva o indivíduo a buscar não apenas o alimento tão necessário à sua sobrevivência fora do útero materno, mas também o prazer. Esse prazer, a partir de um certo momento, descola-se da própria atividade de sugar o leite materno, o que explica o regurgito do bebê, que em busca do prazer, proporcionado pelo sugar, ingere mais do que o seu aparelho digestivo suporta — noutras palavras, ele continuou a sugar, por prazer, após sua necessidade fisiológica ter sido satisfeita. Também demostra a erotização dessa parte do corpo o uso da chupeta ou, tantas vezes, do próprio dedo.

A segunda fase do desenvolvimento psíquico para Freud é a anal, entre 2 e 3 anos, quando entra em jogo o controle da urina e das fezes. Naturalmente levado a esse exercício pelos próprios movimentos do organismo, e orientado e censurado pelos pais, a criança descobre o prazer de prender a urina e as fezes e de liberá-las. A sensação proporcionada por esse exercício de controle do próprio corpo erotiza essas regiões, mas o prazer ainda está associado exclusivamente à liberação de urina e fezes

A fase fálica, entre 3 e 6 anos, corresponde para Freud àquela em que o órgão genital é percebido enquanto tal pela criança, que passa a tocá-los em busca do prazer, mesmo quando a necessidade puramente fisiológica já foi satisfeita. O que ocorreu coma erotização da boca, ocorre com a erotização do órgão genital: o prazer se descola da função fisiológica da micção, e passa a ser buscado quando ela está em jogo.

Na fase de latência, de 6 anos à puberdade, Freud identifica um período em que as atenções do indivíduo se voltam para as relações sociais, para o exterior, em razão do que o desenvolvimento psíquico relacionado à sexualidade sofre uma repressão das sensações erógenas, em favor uma constituição mais definida do ego. Nesse período, as transformações físicas e psíquicas ocorrem gradualmente, muitas vezes de forma quase imperceptível, mas ao fim da qual, grandes e radicais transformações, em ambas as dimensões, ocorrem vertiginosa e definitivamente.

A fase genital, a partir da puberdade, para Freud, corresponde ao estágio em que o indivíduo, em condições normais, atinge em definitivo a maturidade psíquica e sexual. Mudanças significativas, deflagradas ao final da fase de latência, se impõem no início desta e, ao final dela, alcança-se a fase adulta.

Porém, os estudos de Freud verificaram que, em razão de traumas, fantasias ou idiossincrasias do próprio indivíduo, seu desenvolvimento psíquico pode sofrer recuos importantes e mesmo patológicos, caso em que afloram neuroses ou psicoses.

Para Freud, as neuroses são mecanismos defesa a que o indivíduo recorre para suportar um sofrimento excruciante. Assim, as manifestações emocionais ou psíquicas anormais não seriam a doença em si, mas uma reação do indivíduo para enfrentar uma dor interna sobre a qual não tem domínio e à qual não consegue sanar sem ajuda — aqui se justifica para Freud o papel do psicanalista, que é o de ajudar ao paciente afetado a descobrir a origem de seu sofrimento e a construir mecanismos psíquicos internos para restaurar sua saúde emocional.

As origens dessas neuroses, Freud identificou, residem em fases remotas do desenvolvimento psicossexual. As fobias, por exemplo, teriam relação a uma fixação do indivíduo na fase fálica, em que a angústia de castração e a sensação de aniquilamento e desemparo se sobrelevam. Aqui, uma lembrança ou em face de um objeto ou situação específica, o indivíduo reage desproporcionalmente. Por seu turno, as obsessões e compulsões teriam origem na fase anal, quando a imposição de regras e censuras, com os primeiros conflitos entre ID e Superego. Nesse particular, para “evitar o erro” e a dor de ser censurado, o indivíduo repete inúmeras vezes o mesmo gesto, o mesmo processo, a mesma ação. A histeria teria como ponto de fixação a fase fálica. Suas manifestações seriam uma somatização de uma defesa que não pôde ser elaborada psiquicamente pelo indivíduo.

Os estudos de Freud demostraram também que em linhas gerais, todos os seres humanos são em certa medida neuróticos, pois durante o processo de desenvolvimento psicossexual, todos, todos recalcamos impulsos e desejos, alguns dos quais, mal elaborados em nossa psique, retorna na forma de sintoma.

Sob esse aspecto, Freud também inovou no que tange à saúde preventiva, pois, ao constatar que todos estamos expostos a traumas de maior ou menor monta, deixou implícita a necessidade de que a psicanálise se voltasse não somente para os indivíduos diagnosticados com patologias, mas também para os considerados em condição de normalidade, uma vez que mesmo estes não estão a salvo de processos estressantes que desencadeiem sintomas neuróticos mais acentuados — e a situação de confinamento durante a pandemia de Covid-19 bem o demonstrou, com os índices de atendimento de saúde mental do SUS saltando substancialmente entre os anos de 2020 e 2022.

Porém às neuroses, somam-se ainda as psicoses (esquizofrenia, paranoia e melancolia), cujas origens podem ser diversas, mas cujos danos psíquicos são ainda mais severos. Ambas, tanto neuroses quanto psicoses, demonstram que o desenvolvimento psíquico humano nem é linear, nem está livre de afecções, e que o conflito entre Id, Ego e Superego é inerente à própria condição humana.