terça-feira, 8 de outubro de 2013

Todo mundo quer Vinicius só para si

PROJEÇÃO NA PAREDE
Comemoração de 100 ano de Vinícius de Moraes na Editora Nova Alexandria

O Colégio Pioneiro adotou meu livro O jovem Mandela para turmas finais de Ensino Fundamental e inicial do Ensino Médio. A conversa foi muito legal com os alunos. Como nesse livro há incrustações de trechos do poema Mensagem à Poesia, acabei sendo convidado a participar do evento comemorativo dos 100 anos do Poetinha.

Quando eu concluíra o então Segundo Grau, hoje Ensino Médio, cometi uma de minhas maiores ousadias. Sucede que, desde que entrei na escola, ler foi uma atividade mágica, de prazer fruído ora com euforia, ora com concentração, ora com sofreguidão - porém, livros, só  os das bibliotecas públicas, oásis em que me livrei de tanto deserto de humanidade semeado pela metrópole.

A ousadia foi que, comprometendo a renda familiar, entrei em uma livraria do centro da cidade e comprei, de uma só tacada, dois volumes de poesia de Cecília Meireles; Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto; uma antologia de Carlos Drummond de Andrade; e, de Vinicius de Moraes, além da Antologia Poética por ele organizada, os livros Para uma menina com uma flor e Para viver um grande amor. Era o ano de 1982, anotado nas folhas de rosto desses exemplares, que trago até hoje, amarelecidos no papel, mas sempre intactos no coração.

Eu tinha então 19 anos. E quando apanho esses livros, continuo tendo. Esses poetas eu já frequentava em namoros sempre interrompidos pela necessidade de devolver o exemplar à biblioteca circulante. Levá-los em definitivo para casa selou um casamento desejado e sempre adiado pela falta de dinheiro. Minha família não ficou mais pobre por causa dessa ousadia e, passado o sentimento de culpa, vi que tinha feito a coisa certa.

Vinicius, sedutor como lhe é característico, adiantou-se sobre os outros poetas e dominou minha preferência por anos. Ainda mais que eu era tímido e, numa época em que todos os meus amigos estavam namorando e se casando, eu disfarçava essa timidez jogando futebol quatro vezes por semana e me enterrando nos livros o restante do tempo que sobrava do trabalho.

Decorei textos inteiros de Vinicius, a exemplo do Poema de Aniversário, que eu recitava de memória no ônibus superlotado para um amor platônico meu de então:

Porque fizeste anos, Bem-Amada, e a asa do tempo roçou teus cabelos negros, e teus grandes olhos calmos miraram por um momento o inescrutável Norte...
Eu quisera dar-te, ademais dos beijos e das rosas, tudo o que nunca foi dado por um homem à sua Amada, eu que tão pouco te posso ofertar. 
Quisera dar-te, por exemplo, o instante em que nasci, marcado pela fatalidade de tua vinda. Verias, então, em mim, na transparência do meu peito, a sombra de tua forma anterior a ti mesma.

O mistério da poesia e da vida estava todo lá, nos versos articulados que transpiravam angústia, exasperação e tristeza - mas também amor, entrega e verdade. Foi Vinicius de Moraes quem acabou me empurrando para a escrita da poesia e para o violão, que toco canhestramente. Ouvir sair de meus dedos pela primeira vez os acordes de Onde anda você, que as pessoas insistem em chamar de "E por falar em saudade", foi a suprema glória para um jovem, encantado com a beleza de viver os seus menos de vinte anos, em meio à música e à poesia.

Nas viagens de trem para o interior de São Paulo que fazíamos para jogar futebol pelo Instituto Dom Bosco (comandado pelo rigoroso padre Rosalvino - que engolia muito mal derrotas de seu time e gritava da beirada do campo como um Muricy Ramalho mais raivoso), íamos de jeans e camiseta branca cantando Regra Três, Garota de Ipanema, Por que Será e outras do poeta que, morto em 1980, movia nossa geração, que começava a conhecer o amor, e ingressava na juventude por essa porta de beleza por ele aberta.

Imagem inline 1Alternando minha preferência, sempre retorno, após voltas e voltas, ao poeta que engarrafou o melhor amigo do homem e, hilariamente, caricaturou Magalhães Pinto, à banheira, colocando os óculos de aro grosso na base do próprio joelho:

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A foto eu conhecia de há muito, porém a particularidade da caricatura marota feita pelo poeta me foi revelada por sua filha, Georgiana, com quem estive recentemente em um evento em São Paulo.

A esse evento, uma feira cultural organizada pelo Colégio Pioneiro, de tradição japonesa, fomos convidados eu (em razão de meu livro O Jovem Mandela ter sido adotado pela  escola), Georgiana e Maria, filhas do poeta (em razão da comemoração do centenário de nascimento de Vinicius). Entre descidas e subidas de escadarias para participar de atividades com jovens e crianças, fomos trocando ideias e sentimentos; ela, de filha; eu, de leitor antigo da obra de seu pai. A informação óbvia sobre a brincadeira de Vinicius me foi transmitida num desses degraus pelos quais nos cansamos de subir e descer.

Num deles é que também revelei a Georgina o contrabando que fizera em O Jovem Mandela: num dos capítulos, aproveitando a deixa de o próprio herói da luta contra o apartheid ter-se declarado em sua autobiografia um romântico - no que diz respeito às relações amorosas -, incrustei na fala de seu personagem a transcriação de um trecho de Mensagem à Poesia, de Vinicius, talvez um dos mais belos poemas contra a guerra escritos em língua portuguesa.

Prof. Jeosafá, Georgiana e Maria de Moraes nos 100 anos de Vinícius - Colégio Pioneiro.
 Perguntei a Georgiana se era fácil ser filha de Vinicius de Moraes, ao que ela respondeu, entre risos: "Nada que mais de trinta anos de psicoterapia não dê algum jeito". Na verdade, continuou, mais ou menos nessas palavras: "Dividir o pai com todo mundo não foi e ainda não é fácil - afinal, toda filha quer o pai todo pra si". Disse isso e encaminhou-se para ouvir o coral da escola cantar Garota de Ipanema em japonês, numa homenagem emocionante. Depois, subiu ao palco, com sua irmã, Maria, para acompanhar as crianças e os jovens no restante da canção, agora em português, embalada também nas vozes da plateia.

A propósito, a plateia, além do coro, também queria Vinicius só para si.

Texto elaborado para a Revista Princípios.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Fernando “Pessoas”: seu nome é legião

Susana Ventura, o mais recente heterônimo de Fernando Pessoa descoberto

Era novembro de 1935, fazia frio e o céu de Lisboa insistia no gris e no chuvisco, que são a placenta de tudo que é aziago, informe e desconhecido. Era manhã e a recomendação médica estabelecia internação irrevogável.

Então ela ajeitou carinhosamente os volumes inéditos em uma arca, conferindo a ordem para que não dessem trabalho a quem por Ventura os visitasse, em futuro próximo ou não. Estava tudo lá, linha a linha, página por página, tudo devidamente apontado e corrigido. Assim deveriam ser todos os espólios. Baixou a tampa, apertou-a e impulsionou a arca para o mar de penumbra do quarto mal amanhecido.

Dobrou e acondicionou na pequena valise as poucas roupas necessárias para a estada digna no Hospital. Fechou-a. Ajeitou os óculos de aros redondos na face, calçou os sapatos, vestiu o impermeável, trouxe a valise pela alça, apagou a lâmpada pálida, abriu a porta, passou por ela, puxou-a até que encostasse no batente sem produzir palavra, que pensam? coisas também falam, olhando para a chave e depois para o chão. O chuvisco na rua Coelho da Rocha era uma eloquência de pontos finais, não os visse quem não quisesse, não esta, que sendo Ventura, nunca para a desventura fechou os olhos.

Os poemas e outros escritos que ficaram na arca se salvariam, fossem quais fossem as posteriores notícias, afinal, para tanto servem as arcas. Porém os que ficaram na cabeça, os que se esvaíram durante o trajeto de pedras, os que penetraram a neblina da agonia, esses se perderam para sempre, pois uma coisa é ter o coração para aventuras, outra, para adivinhações.

Mas ficaram os rastros que, colhidos por Guazelli, comprovam a existência de mais uma pessoa em Fernando: Susana Ventura. Esta, ciente dos riscos de Alice através do espelho, não hesitou em colher dele um caco em que se mirar e, em forma de ensalmo evocatório, proferir as palavras mágicas: Eu, Fernando Pessoa. Passe um anjo, diga amém, e viva para sempre esse novo caco agora não  mais indescoberto.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

O Jovem Mandela: Jardineiros e suas searas




DAQUI A CINCO MIL ANOS um pai contará para seu filho dormir a lenda de um herói. Essa lenda dirá de um menino do Transkei, que calçou o primeiro par de sapatos quando ingressou um tanto tardiamente na escola, que viu e viveu os piores tormentos da vida humana, mas que, a despeito de todas as previsões funestas, liderou seu povo em uma saga épica e o conduziu uma vitória gloriosa sobre as mais abomináveis formas de opressão e humilhação do homem sobre o próprio homem. Essa lenda que atravessará os milênios futuros terá um nome: NELSON ROLIHLAHLA MANDELA.

Jardineiros e suas searas

Comparações são sempre imprescindíveis na vida, caso contrário não saberíamos discernir entre o justo e o injusto, o correto e o incorreto, o bom e o ruim. Já analogias são perigosas, porém, guardando-se os devidos cuidados, podem ser úteis.

Quando entrei na universidade, em Fort Hare, parte de minhas atribuições era cuidar de jardim. Outros considerariam essa atividade um tanto sem graça, não eu, que vivi minha infância descalço, a observar a beleza de colinas, árvores, arbustos, gramíneas, e os insetos e animais que se beneficiavam da vegetação.

Naturalmente, quando menino, de pé no chão e pedra nas mãos para dar em passarinho, minha preocupação essencial era trepar nas árvores e sentir, lá do alto, a brisa fresca ou o mormaço quente a subir do chão empoeirado. E também observar o azulado das montanhas ou a linha perfeita do horizonte.

Na universidade, se tratava de aproveitar a quietude das plantas para pensar sobre o curso, sobre a vida e sobre o porquê de haver tantos pobres e tão poucos ricos sobre a face da terra. Uma ou outra vez levei uma ferroada de abelha enquanto pensava, mas, muitas vezes, meus pensamentos me ferroaram muito mais.

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Era verdadeiramente interessante observar como algumas flores eram abundantes e exuberantes, mas de vida breve, enquanto outras eram modestas em número, tímidas na beleza, mas duradouras. No início tinha pena das duas: das primeiras, pela brevidade; e das segundas, pela falta de maiores atrativos.

Porém, observei que alguns passarinhos e insetos polinizadores frequentavam apenas um dos tipos de flores, enquanto outros, apenas o outro. Também observei que a simples mudança de lugar de um vaso pode injetar novas energias numa planta ou arruiná-la de uma vez.

E não apenas o grau de incidência de sol era determinante de sucessos ou insucessos, mas também a exposição ao vento. Algumas plantas suportavam excelentemente correntes contínuas de vento, outras, em pouco tempo murchavam e perdiam as folhas, se expostas a elas.
Confesso que estraguei algumas plantas ao realizar poda errada ou, simplesmente, por temor, não realizar poda nenhuma. Embora um jardim pareça uma realidade uniforme, não é. Cada planta tem sua própria forma de ser e de viver. Uma poda mais cuidadosa é exigida por uma, enquanto outra, de tempos em tempos, necessita de uma poda radical para que novos ramos verdes e sadios surjam.

As particularidades chegam mesmo a minúcias inimagináveis para um iniciante, como era o meu caso. Em algumas ocasiões, doido para terminar rápido o trabalho e ir me divertir com os amigos, me precipitava no trato de alguns exemplares. Uma vez me surpreendi com o desenvolvimento insatisfatório de um tipo de trepadeira, e passei a observá-la com maior atenção. Ela lançava ramos até vigorosos para todos os lados, mas estes não chegavam a lugar algum.

Intrigado, quando um desses ramos avançava sobre o caminho, procurei, com o máximo cuidado, enredá-lo em uma haste que fixei no chão. Tudo ia bem, até que toquei na ponta do ramo. Apesar de a parte de baixo ser flexível, mesmo elástica e firme, a ponta era extremamente frágil e quebradiça. Então, me dei conta de que, toda vez que procurava ajeitar aleatoriamente o emaranhado de ramos, eu mesmo partia suas pontas e condenava a planta ao nanismo. Depois disso, procurei orientar para a posição adequada cada ramo individualmente, tocando apenas em suas partes mais firmes, inferiores. Demorou um pouco, mas a planta vicejou. A verdade é que, até aquele momento, a praga daquela planta era o seu jardineiro afobado.

Tratar cada planta como um indivíduo do jardim foi uma descoberta muito significativa. Enquanto algumas exigem cuidados diários, para outras esses cuidados diários se tornam um estorvo. Algumas aceitam ser manipuladas, outras, principalmente nas regiões de brotos, o simples calor humano ou toque das pontas dos dedos as condena à morte. É mesmo curioso, mas essas mesmas plantas que rejeitam o contato humano, por mais afeto que se imprima nele, aceitam bem ser manipuladas com hastes de metal ou de bambu.

E há eventos com as quais temos simplesmente que nos conformar: algumas plantas crescem rapidamente, tornam-se altas e frondosas, enquanto outras crescem lentamente, nunca atingem grandes alturas e seus galhos são, embora elegantes, finos como taquaras.

Some-se a isso que é necessário sempre contar com as ervas daninhas, que devem ser eternamente removidas, pois sempre voltam, seja por um pedaço de raiz ter permanecido oculto na terra, seja pela ação do vento, que não cessa de semeá-las.

Porém, há ainda, é preciso reconhecer os limites de nossa condição, as perdas, algumas inevitáveis e extremamente dolorosas. 

Quando uma planta é acometida por uma doença de difícil detecção, e cujo tratamento é tardio ou ineficaz, ela fatalmente fenecerá. Se foi bonita e frondosa, se foi frágil e elegante, dela ficará apenas a lembrança e, eventualmente, as sementes ou mudas que gerou. Nesse caso, o carinho para com as sementes e as mudas deve ser redobrado, para que o patrimônio da espécie não sofra risco de extinção e, pelo contrário, resulte em novos frutos e sementes.

Nossa luta por um mundo mais justo se parece muito com um jardim, em que os jardineiros são aqueles que pugnam por transformações verdadeiras, aqueles que os republicanos espanhóis, em sua luta contra o fascismo, chamavam “juventude do mundo”.

Mas isso é uma analogia, uma licença poética, que requer o máximo de cuidado e atenção da parte de quem a recebe, pois o mundo dos dias atuais não é exatamente um jardim para todos e, embora revolucionários sejam uma espécie de jardineiros, sua seara é de esperanças e sonhos, que não são nada se não brotarem do povo, se não estiverem enraizados no povo, e se não florescerem e frutificarem para o povo.

(Capitulo 13 d'OJovem Mandela)


NOTAS

1) Duas das atividades mais apreciadas por Nelson Mandela eram a jardinagem e a horticultura. Quando estudante cuidou do jardim de um dos professores de Fort Hare, como uma de suas atribuições extraclasse. Tão logo lhe foi permitido, cultivou na ilha de Robben hortaliças e tomates, que inclusive chegaram a abastecer modestamente a cozinha da penitenciária. Sem nunca perder oportunidade para extrair lições de tudo na vida, Mandela aproveitou essa sua inclinação para refletir sobre o movimento de luta contra o apartheid. Em sua autobiografia ele observou: “De certa forma, eu via a horta como uma metáfora para certos aspectos de minha vida. Um líder também deve cuidar de sua horta; ele também planta sementes, e então observa, cultiva e colhe o resultado. A exemplo do jardineiro, um líder deve se responsabilizar pelo que cultiva; ele deve ocupar-se com seu trabalho, tentar repelir os inimigos, preservar o que pode ser preservado e eliminar o que não pode prosperar” (Mandela, 2012, p. 597-598)

2) Em março 1980 o jornal Johannesburg Sunday Post estampa em primeira página o slogan da campanha internacional LIBERTEM MANDELA! Idealizada por Oliver Tambo e pelo CNA, agora uma força poderosa e irresistível, a campanha personaliza no prisioneiro 466 da ilha de Robben todo o esforço pela libertação dos presos políticos da África do Sul e pelo fim do apartheid. A partir desse momento, a história se acelera também dentro da penitenciária: a estratégia de aniquilação dos líderes da luta pela liberdade fracassou. A semente da liberdade, plantada com cuidado por todo o país, inclusive dentro das prisões, e regada amorosamente pelo sacrifício de milhões de africanos ao longo dos anos, tornou-se uma árvore frondosa, que começa a dar uma exuberante florada, cujos frutos eclodirão em abundância a partir do final dessa década.

3) Leia também: África do Sul faz festa para comemorar os 95 anos de Mandela.

4) Leia no formato youblisher clicando aqui.



Jeosafá, professor, foi da equipe do 1o, ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo. É escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria);  em maio de 2015, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora; no mesmo ano publicou A lenda do belo Pecopin da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela editora Mercuryo Jovem. Leciona atualmente para o a Educação Básica e para o Ensino Superior privados.