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quarta-feira, 24 de julho de 2013

Fernando “Pessoas”: seu nome é legião

Susana Ventura, o mais recente heterônimo de Fernando Pessoa descoberto

Era novembro de 1935, fazia frio e o céu de Lisboa insistia no gris e no chuvisco, que são a placenta de tudo que é aziago, informe e desconhecido. Era manhã e a recomendação médica estabelecia internação irrevogável.

Então ela ajeitou carinhosamente os volumes inéditos em uma arca, conferindo a ordem para que não dessem trabalho a quem por Ventura os visitasse, em futuro próximo ou não. Estava tudo lá, linha a linha, página por página, tudo devidamente apontado e corrigido. Assim deveriam ser todos os espólios. Baixou a tampa, apertou-a e impulsionou a arca para o mar de penumbra do quarto mal amanhecido.

Dobrou e acondicionou na pequena valise as poucas roupas necessárias para a estada digna no Hospital. Fechou-a. Ajeitou os óculos de aros redondos na face, calçou os sapatos, vestiu o impermeável, trouxe a valise pela alça, apagou a lâmpada pálida, abriu a porta, passou por ela, puxou-a até que encostasse no batente sem produzir palavra, que pensam? coisas também falam, olhando para a chave e depois para o chão. O chuvisco na rua Coelho da Rocha era uma eloquência de pontos finais, não os visse quem não quisesse, não esta, que sendo Ventura, nunca para a desventura fechou os olhos.

Os poemas e outros escritos que ficaram na arca se salvariam, fossem quais fossem as posteriores notícias, afinal, para tanto servem as arcas. Porém os que ficaram na cabeça, os que se esvaíram durante o trajeto de pedras, os que penetraram a neblina da agonia, esses se perderam para sempre, pois uma coisa é ter o coração para aventuras, outra, para adivinhações.

Mas ficaram os rastros que, colhidos por Guazelli, comprovam a existência de mais uma pessoa em Fernando: Susana Ventura. Esta, ciente dos riscos de Alice através do espelho, não hesitou em colher dele um caco em que se mirar e, em forma de ensalmo evocatório, proferir as palavras mágicas: Eu, Fernando Pessoa. Passe um anjo, diga amém, e viva para sempre esse novo caco agora não  mais indescoberto.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Poesia Completa de Álvaro de Campos, Fernando Pessoa

Teresa Rita Lopes, edição

Álvaro de Campos é entre heterônimos de Fernando Pessoa aquele ao qual se tem atribuído a mais ampla liberdade de expressão poética e a adesão mais radical à modernidade. Mas esse é um dos Álvaro de Campos, já que a crítica observa nesse heterônimo ao menos três momentos bem marcantes: um inicial, mais ligado ao decadentismo de final do século XIX; um futurista, ou sensacionista, bastante ligado ao modernismo, a sua empolgação com as máquinas e a sua vertiginosidade; e um terceiro, pessimista, às voltas com o cansaço extremo e com a sensação de inutilidade de tudo.

Nesta edição de bolso muitíssimo bem produzida em papel Pólen, o leitor tem oportunidade de ler os textos de Fernando Pessoa, uma das personalidades literárias mais intrigantes e labirínticas da literatura em língua portuguesa, auxiliado por ensaios bastante elucidativos.
Além dos poemas, preparados e anotados com esmero por Teresa Rita Lopes, o volume oferece ao leitor:
  • No início, uma “Nota Prévia”, que informa sobre as particularidades da edição, inclusive com legenda de abreviaturas e sinais empregados para anotar a obra; um excelente prefácio “Este Campos”, assinado pela mesma Teresa Rita Lopes, na verdade um significativo ensaio de vinte e cinco páginas, verdadeira aula magna sobre Álvaro de Campos no âmbito da complexidade de Fernando Pessoa;

  • Ao final: um alentado corpo de Notas, frutos de longa pesquisa realizada para estabelecimento do texto; um importante Posfácio “Campos e a Tradição”, a rigor outro significativo ensaio da mesma Teresa Rita Lopes, em que são discutidos os critérios e as linhas de trabalho adotadas para o estabelecimento do texto integral; um “Índice dos Primeiros Versos”, para consulta rápida dos poemas e ainda uma brevíssima biografia de Fernando Pessoa, na verdade, aqui, mais uma cronologia de eventos principais.
Ao apresentar num só volume os poemas, cujos textos foram estabelecidos a partir de rigorosos critérios de pesquisa e edição, e os ensaios, a presente edição põe em mãos do leitor uma obra de consistente valor literário e teórico – garantidos pela representatividade do autor e por dois ensaios de grande relevância.

Assim o leitor, seja para fruição estética, seja para pesquisa literária, goza da confortável segurança de ter em mãos uma obra que respeita ao extremo a virtuosidade de linguagem impactante de Álvaro de Campos:

“Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.”

Ler os poemas coletiva ou individualmente, em voz alta ou silenciosamente, de forma dramatizada ou em recital, debater os ensaios à luz de outros trabalhos sobre o autor e comparar o que dizem os ensaios com “o que” e “como” dizem os poemas são atividades que, levadas à prática, prolongam o prazer da leitura, tornam mais aguda a fruição dos textos e aprofundam a compreensão acerca dos sentidos em jogo. Em se tratando de Fernando Pessoa, não se pode ficar aquém disso.

FONTE: Pessoa, Fernando. Poesia Completa de Álvaro de Campos. Edição Teresa Rita Lopes. São Paulo, Ed. Cia. Das Letras, 2007.