terça-feira, 19 de outubro de 2010

Ela é a nossa pedra da sorte,a nossa muiraquitã encantada


Contra o mal e a mentira, ela vem em nosso socorro. Perseguida pelo inescrupuloso vilão de língua comprida e visão curta, ela cruza o Brasil levando o sonho de um país em busca de sua identidade e de seu futuro. Ela se encanta em admirações de rios e matas, mas vem das minas para dar em São Paulo e enfrentar o gigante ardiloso de mil caras camaleônicas, ardiloso e unha e carne com estrangeiros levadores de nossas riquezas para os confins dos confins.

Na cidade de concreto o povo a busca mas está sabendo só agora, desfeito de sua identidade verdadeira, mineral, florestal, solidária, brasileira. Ela tem que vencer o malvado na fortaleza dele para que o povo de Macunaíma, recuperado de sua alma primeva, caminhe para frente irmanado em Jiguê, Maanape e o herói.

Quem é ele, esse cruel mentiroso, ardiloso, mil caras, sempre deslavado de micagens com cara de bobo a perguntar: “Quem, eu?” quando rouba pedras e “otras cositas más” ?Ora, ele é um vendido para os estrangeiros, que tem vergonha do Brasil e quer trancar a identidade caipira de nossa gente dentro de um cofre para vender como bugiganga a preço abaixo de banana. Ou não, uma vez que é pervertido, contumaz e colecionador de ódio e pedras para atirar nos inocentes.

Quem é ele, já adivinharam, né?

Ele, vocês leitores sabem, é um Gigante Piaimã, um Venceslau Pietro Pietra, unha e carne com os trituradores de povo, comedores antropófagos. Ele é do bem rico, do bem esperto, do bem truculento. Joaquim Pedro de Andrade em seu filme pôs Exu dando um coro nele, tão do bem pervertido que ele é. Tão bem ruim é que acaba caindo dentro do molho de maldade que tinha mandado preparar para cozinhar os outros. No filme, é bonito de ver o bem pervertido caindo no molho fervente das suas maldades e se afogando no caldo fervente de suas arapucas que deram errado.

E ela, quem é?

Ué, está no começo do princípio do início da luta pelo Brasil até antes de ele falar português. Ela é a luta pela vida, pelo direito do jeito da gente brasileira ser e de estar sobre a terra do seu próprio jeito, que é sua seiva manifesta e ninguém tasca, sem vergonha de morar em Urariquera, sendo esta a metáfora da nossa terra.

Ela tem a força da terra e da vegetação, e dos bichos também, e dos viventes humanos idem ibidem na mesma data, porque é mulher e, assim sendo mãe da vida, niguém tasca, porque vai vencer no final. Mesmo já tendo sido presa por outros venceslais pietros pietras bocudos trogloditas que enfeiam esta gleba.

E o embate final?

O embate derradeiro é em São Paulo. Ela, pedra que é, vem de minas profundas, de metafóricas urariqueras que cascalham nos rios com força mineral e germe de vida fecunda.

Mário de Andrade sabia das coisas quando a pré-viu e pós-viu, ela, a nossa pedra da sorte, que demorou mas foi achada espalhada por toda a metafórica Urariquera. Ela, a nossa pedra da sorte, a nossa muiraquitã, que vence no final, como quis Macunaíma.

Como quis Mário de Andrade, como quis Joaquim Pedro de Andrade. Como queremos nós hoje.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

EDUCAÇÃO — Sem escrúpulos, disposto a tudo para chegar ao poder


Ricardo III.  Dir. Richard Loncraine. Ator principal:  Ian Mckellen. In  Adoro Cinema.

Ele não vale nada, mente, suborna, envolve a própria família em escândalos, se faz de vítima para atraiçoar todos os que estão em seu caminho e, em meio à derrota humilhante que o varrerá  do poder e o trancafiará para sempre nas piores páginas dos compêndios de história, ainda vai proferir com a língua afiada e os olhos esbugalhados de sempre: "MEU REINO POR UM CAVALO!" Seu nome é...Ricardo III.

Ricardo de Gloster (Gloucester), de Willian Shakespeare, personifica tudo de perverso a que a ambição ilimitada pelo poder é capaz de conduzir, principalmente quando ela fermenta, borbulha e eclode em um espírito atormentado, ressentido e despido de qualquer senso de moral:

“Ricardo: Você conhece alguém a quem a corrupção do ouro seria uma tentação para executar secretamente um assassinato?

Pajem: Meu senhor, conheço um nobre descontente com a vida porque seus pobres recursos não correspondem à altivez de seu espírito. O ouro, para ele, vale tanto quanto vinte oradores e, sem dúvida, o tentaria a fazer qualquer coisa.

Ricardo: E qual o nome dele?

Pajem: Tyrrel, meu senhor.

Ricardo: Conheço alguma coisa dele. Vá, pajem. Traga esse homem aqui. [Sai o pajem]. O sábio Buckingham, homem de tão profundas considerações de consciência, não será mais aquele de quem tomo conselhos. Então, veio até este ponto comigo, e agora para, para respirar? Bem, que seja! Casteby, aproxime-se. Espalhe o boato de que Ana, minha esposa, está gravemente enferma. Vou ordenar que ela fique isolada. Além disso, descubra para mim algum nobre ambicioso e de pouca projeção, com quem irei casar imediatamente a filha de Clarence... O garoto é um idiota. Não tenho por que temê-lo. Atenção! O que houve? Está sonhando acordado? Repito, espalhe por aí que Ana, minha rainha, está doente, quase morrendo. Aja depressa. Preciso acabar logo com todas as esperanças de me prejudicarem, antes que cresçam. [Sai Catesby]. Devo me casar com a filha do meu irmão Eduardo porque, de outro modo, meu reinado repousará sobre uma lâmina de vidro. Vou matar seus irmãos e depois me casar com ela. É um caminho tortuoso para o triunfo! Mas estou tão afundado no sangue que um pecado leva a outro e não tenho lágrimas de piedade para derramar.”

Ricardo de Gloster, já empossado Ricardo III, explicita aqui seus planos já depois de ter assassinado o rei Eduardo IV, seu irmão, esposo da mesma Ana a quem desposou e de quem pretende se livrar, e Clarence, seu outro irmão, que o tinha por aliado.

Para Ricardo de Gloster não há impedimento de ordem política, religiosa, ética ou moral que o impeça de atingir aquilo a que almeja. É invejoso, cruel, cínico, hipócrita, caviloso, manipulador e astucioso em mover as vaidades, ambições e falta de escrúpulos alheios em favor de suas próprias pretensões:

“Ricardo: Eu, de aparência tão desagradável, destituído da formosura necessária para agradar às jovens de andar gracioso. Eu, disforme, traído pela natureza, posto no mundo antes da hora, inacabado e tão horrendo que os cães ladram à minha passagem, não aprecio a beleza nem os prazeres desses dias. E, se o sol, para mim, não faz mais do que exibir a mim mesmo minha sombra deformada, o que me resta é odiar esse tempo de fraqueza e de paz. Assim, sou o vilão, aquele que trama e conspira. E uso tudo o que posso: argumentos falsos, calúnias, sonhos, profecias tresloucadas, o que seja, para induzir perigosamente ao engano. Para gerar o ódio que leva ao assassinato.”

A presente edição, além do texto adaptado com grande felicidade, oferece para o leitor: uma “Apresentação”, uma “Introdução”, um “Posfácio” e tópicos, ao final, “Para Discussão e Aprofundamento” muito convenientes, pois situam o contexto histórico e artístico desse drama shakespeariano e orientam uma leitura mais detida da peça.

Realizar leituras dramáticas desse texto teatral consiste em um desafio tentador para professores e alunos. Porém, se seguirmos o conselho de Oscar Wilde, devemos resistir a tudo, menos às tentações.

Encená-la na escola, então, é um ato de desprendimento intelectual e espiritual sem tamanho, pois enfrentar, ainda que seja no palco, o sanguinário e inescrupuloso Ricardo de Gloster é tarefa que exige, além de técnica, coragem.

FONTE: Aguiar, Luiz Antonio. Ricardo III / Willian Shakespeare. Adap. Luiz Antonio Aguiar. Rio de Janeiro. Ed. DIFEL, 2009.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Jorge Amado cassado novamente


Ano passado tive a honra de defender, junto ao Ministério Público do Estado, Jorge Amado. Este, como Carlos Gardel –  que depois de morto canta cada vez melhor –, continua atazanando as consciências culpadas das elites paulistas egressas da revolução de 32.

Setores altamente reacionários da sociedade paulista, que plantam conservadorismo nas consciências desavisadas para colher votos nas eleições, continuam enxergando no grande escritor baiano, inúmeras vezes cotado para o prêmio Nobel, um subversivo instigador da juventude e, agora, a esta altura do século XXI, um aliciador de menores.

Esse setor, que é contrário ao ECA, por entender que esse Estatuto “protege bandidos”, recorre ao próprio ECA para sustentar suas argumentações inquisitoriais e falso-moralistas. Segundo essa parcela medieval da sociedade brasileira, o livro “Capitães de Areia” contém trechos pornográficos que ferem o Estatuto da Criança e do Adolescente, o que justificaria sua cassação do currículo escolar.

Esse mesmo livro, que foi queimado pela ditadura do Estado Novo, mas que foi aceito no currículo de uma outra ditadura igualmente ou talvez mais feroz, qual seja a militar.

Milton Hatoum, no prefácio da edição mais recente dessa obra, em circulação há décadas na rede pública estadual, discorre sobre o impacto que em sua formação, toda ela ocorrida nos anos de chumbo, exerceu esse livro contundente, multipremiado, objeto de um sem número de dissertações de mestrado e teses de doutorado pelo Brasil e pelo mundo afora, e traduzido para mais de 20 diferentes idiomas da Terra.

A defesa técnico-pedagógico-literária que fui convidado a realizar na oportunidade, na condição de Doutor em Letras especializado na obra do escritor soteropolitano, foi contundente e convincente, o que sustentou a permanência dessa obra essencial de nossa literatura na sala de aula de nossas escolas públicas e nas mãos e nos corações de nossos estudantes.

Fico triste, cabisbaixo, como na canção de Chico Buarque, ao saber que neste mês de agosto – ô mês aziago, como bem diz a sabedoria popular e o romance de Rubem Fonseca – um promotor público, movido por estranhas forças e impulsos medievais para lá de catacúmbicos – mandou recolher “Capitães de Areia” das escolas de uma cidade do interior de São Paulo.

Fico mais triste ainda em observar o silêncio estrondoso do atual Secretário da Educação, Paulo Renato de Souza, em relação a esses sombrios episódios inquisitoriais insistentemente recorrentes no ambiente soturno de sua gestão.

O tucano Aécio Neves, quando coisa semelhante ocorreu em Minas, veio a público, defendeu pontos de vista democráticos e pôs ponto final, na terra da liberdade, à perseguição falso-moralista e retrógrada –  digna de Torquemada, Felinto Muller e Sérgio Paranhos Fluery –  aos “tão temidos” textos literários.

Ora, direis, há tucanos e tucanos. Si, pero no mucho, eu vos direi no entanto.

Eu, crente que sou na humanidade, e agora sem condições de defender o grande escritor baiano, uma vez que não fui convidado, acompanho com aflição o desfecho dessa perseguição às novas joanas darcs contemporâneas – perseguição movida por um promotor assombrado pela alma atormentada de Erasmo Dias –  torcendo para que o Secretário de Estado da Educação de São Paulo honre seu passado democrático, venha a público, quebre seu comprometedor silêncio estrondoso e faça a coisa certa, antes que o referido promotor e outros, estimulados e fortalecidos pelo mesmo silêncio, vestidos de capuzes e armados de alicates quebra-dedos, batam a sua porta, no segundo andar do edifício Caetano de Campos, e o cassem também.