quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

O inconsciente e a escrita


A aquisição da língua materna, nos primeiros anos de vida, e o desenvolvimento da escrita são processos que se articulam, mas cujas imbricações estão longe de constituir acordo entre teóricos, pesquisadores e cientistas. Pontos de vista evolucionistas e deterministas, predominantes ao final do século XIX e durante boa parte do século XX, consideraram a oralidade causa direta da escrita e, apoiados nessa fé, desenvolveram descrições, métodos, práticas e manuais que, entendendo a segunda como extrato e registro da primeira, confundiram – ao identificar – ambas e, na prática, submeteram o entendimento da totalidade da língua a uma de suas dimensões. O material como veículo do imaterial.

Essa perspectiva historicista, que procura identificar a prevalência no tempo de uma causa fundante, termina por apartar e hierarquizar dimensões da própria língua, pois, contraditoriamente, ao identificar a oralidade como fonte, coloca-a em posição subalterna, de menor prestígio, como base de um sistema mais perfeito, complexo e de maior prestígio social: o escrito.

De seu lado, a linguística estrutural, em cujas bases se encontram pontos de vista formalistas, em busca da superação do subjetivismo ideológico historicista, trilhou as sendas do objetivismo, cujas versões mais radicais, apartada toda subjetividade, entenderam os discursos como máquinas de produção de sentidos perfeitamente descritíveis em termos lógicos.

As perspectivas formalistas e estruturalistas, ao elegerem como foco das preocupações os discursos “em si” – o que significa a desconsideração dos agentes sociais e históricos e das condições de produção – e ao promoverem um corte em favor da análise puramente sincrônica, resvalaram muitas vezes para o beco sem saída do chamado imanentismo que, ao sonhar explicações lógico-matemáticas – e muita análise profícua repousa nessa práxis –, sequestra o contexto – que é a própria placenta de toda significação.
As perspectivas anteriormente, destacadas de forma sucinta e até um tanto caricata, reconheça-se, tiveram seus momentos de apogeu e assumiram mesmo contornos de moda acadêmica, porém, outros pontos de vista, matizações das mesmas perspectivas ou não, tiveram lugar concomitantemente e – acordes dissonantes – abriram novas e interessantes possibilidades de compreensão do idioma.

O Curso de Linguística geral de Saussure, cuja obra situa-se coerentemente no quadro do pensamento mais inovador do final do século XIX, chama atenção para um aspecto polêmico para a época, sem dúvida, todavia inescapável:

“Na realidade, tudo é psicológico na língua, inclusive suas manifestações materiais e mecânicas, como a troca de sons (...)”

Reconhecendo a dimensão material da língua, Saussure procura situá-la para além de dicotomias redutoras, e considera que na complexa interação entre sujeitos envolvidos em processos discursivos “é fundamental observar que a imagem verbal não se confunde com o próprio som e que é psíquica do mesmo modo que o conceito que lhe está associado.”

Pensar a língua, de um ponto de vista saussureano, é optar por um movimento de abrangência que incorpora o todo (social e sistêmico) e a parte (individual e irrepetível): se por um lado o indivíduo logo ao nascer é mergulhado numa teia pronta de relações linguísticas herdadas, por outro só mobiliza essa teia a partir de sua condição de indivíduo, condição que é social, histórica e psicológica.

Bem considerados, tanto o ponto de vista historicista quanto o formalista-estruturalista enfatizam aspectos exteriores ao sujeito. No que tange ao ensino ou aquisição do idioma, o primeiro deriva para as classificações e para os manuais porque entende que há um patrimônio linguístico erigido e acumulado por gerações anteriores que necessita ser inculcado – nem que seja à palmatória – no espírito ainda imaturo para que ele amadureça. O segundo envereda para as descrições e reduções lógicas, pois, estabelecido que os textos e discursos têm lógicas próprias, qualquer subjetividade na análise dessas relações se afiguraria, na melhor das hipóteses, lente deformadora a projetar sentidos não propostos pelos discursos ou textos. O modelo de Jakobson, que situa os elementos envolvidos no processo comunicativo, é exemplo dessa objetivação que redunda na completa anulação das subjetividades envolvidas.

Porém, situar a língua no âmbito exclusivamente histórico e sistêmico leva inexoravelmente à crença de que métodos e técnicas puramente intelectuais dão conta da aquisição da linguagem, que envolve elementos e processos afetivos complexos, íntimos e profundos, tantas vezes de difícil observação e quase sempre de importância decisiva.

Para Saussure, não haveria objetividade possível numa interação linguística, já que o signo linguístico, ele próprio, é de natureza psíquica, uniria não uma palavra e uma coisa do mundo real, mas um conceito (significado) e uma imagem acústica (significante) – e esta imagem acústica não é o som, mas a impressão psíquica desse som:

“O caráter psíquico de nossas imagens acústicas aparece claramente quando observamos nossa própria linguagem. Sem movermos os lábios nem a língua, podemos falar conosco ou recitar um poema”.

De semelhante ponto de vista resulta que toda materialidade envolvida nos processos de interação linguística tem caráter secundário, de suporte, de veículo, de meio.

As relações entre língua e psiquismoO reconhecimento da dimensão psíquica da língua, destacada por Saussure, terá lugar também nas pesquisas de Freud e Lacan, os quais, em suas sondagens sobre o inconsciente humano, encontraram razões para, a partir do estudo de distúrbios psicóticos, acreditar na existência de mecanismos relacionados à linguagem e à fala profundamente assentados no psiquismo do indivíduo.

Freud, em “A interpretação das afasias”, articulando reflexões interdisciplinares, analisa distúrbios relacionados às faculdades linguísticas procurando entendê-los a partir da crítica de explicações puramente fisiológicas. Estudando vários casos, a partir de dados de bibliografia especializada, Freud procura demonstrar a insuficiência dessas explicações para inúmeras situações cujas causas de distúrbios linguísticos foram consideradas, por essa mesma bibliografia, exemplarmente fisiológicas, como no exemplo a seguir:
“Antes de mais, dever-se-ia pensar que nenhuma lesão conseguiria explicar a redução da excitabilidade num centro que,pelo contrário, nos pareceria uma situação puramente ‘funcional’. Precisamente. E podem de fato existir situações semelhantes à afasia motora transcortical surgida por efeito de um dano puramente funcional sem qualquer lesão orgânica”.

Ao propor, a partir de suas análises, que distúrbios linguísticos podem ter causas orgânicas, mas também funcionais, Freud, descartadas anormalidades fisiológicas provocadas por doenças ou traumatismos , abre a possibilidade para a hipótese de que as fontes dessas anormalidades podem residir em razões psíquicas e emocionais.

A validação dessa hipótese de explicação psicológica para anomalias relacionadas à linguagem impõe o reconhecimento de que terapias outras, que não puramente psiquiátricas, necessitam ser igualmente validadas.

Porém, o que se pode inferir a partir das assertivas de Freud é que não apenas em casos de distúrbios a língua e seu emprego têm profundo enraizamento na psique humana, como também que as próprias faculdades de linguagem e de fala têm constituintes emocionais inequívocos.

Sobre a relevância das reflexões sobre a linguagem na obra de Freud, Lacan destaca em seu “O seminário”, livro 5 :

“Essa constante é que julgo fundamental para compreender o que há em Freud: a importância da linguagem e da fala”.

O próprio Lacan insiste nas profundas implicações entre linguagem humana e psiquismo, extraindo de seus próprios estudos, particularmente os realizados a partir de análises de casos de distúrbios de linguagem, deduções que reforçam o papel do indivíduo, de suas experiências emocionais e de sua história particular na constituição e na produção da língua e da fala.

Também ele, tal como Freud e Saussure, faz clara distinção entre os aspectos físicos (do som), fisiológicos (puramente orgânicos) e psíquicos. Também para ele, tanto quanto para Saussure e para Freud, o significante não se confundiria com o som, tampouco seria consequência passiva do aparelho fisiológico de linguagem – em que, obviamente, o sistema nervoso central tem prevalência. Para ele, o significante é já manifestação evidente do simbólico – aqui entendido já em termos assumidamente psicanalíticos:

“Com efeito, o que autoriza o texto da lei se basta por estar, ele mesmo, no nível do significante. Trata-se do que chamo de Nome-do-Pai, isto é, o pai simbólico. Esse é um termo que subiste no nível do significante, que, no Outro como sede da lei, representa o Outro. É o significante que, no Outro como sede da lei, representa o Outro. É o significante que dá esteio à lei, que promulga a lei. Esse é o Outro no Outro.”

Tanto para Lacan, quanto para Freud – quanto para Saussure, por que não? – a língua e sua concretização não são meros subprodutos da biologia ou da ação do meio social sobre o indivíduo. São, com ênfase, manifestações de conflitos inerentes aos indivíduos cujos mecanismos os distúrbios psicóticos, antes de dificultar a observação, teriam o mérito de revelar, já que representariam eventos postos a nu sem os véus enganadores de convenções e coerções sociais.

Lacan argumenta que o espaço do significante é o espaço do inconsciente, e que, numa cadeia significante, o significante ausente tem papel essencial:

“Pode faltar alguma coisa numa cadeia dos significantes. Vocês precisam compreender a importância da falta desse significante especial do qual acabo de falar, o Nome-do-pai, no que ele funda como tal o fato de existir a lei, ou seja, a articulação numa certa ordem do significante”.

Talvez se possa compreender esse Outro no Outro, esse significante que falta na cadeia, o motor de uma demanda que jamais podendo ser satisfeita impele o indivíduo a, substituindo continuamente o real pelo simbólico, sublimar o que de outro modo assumiria expressão sintomática.

Numa extrapolação das observações de Lacan, poder-se-ia considerar que a substituição do pai pelo Nome-do-pai (da função social pelo símbolo – no caso a lei), que seria uma espécie de ausência constituinte, tem analogia com o processo de construção, da escrita pelo próprio indivíduo nos primeiros anos de vida.

Assim a produção, pela criança, de garatujas, de desenhos, de escrita pictórica, de escrita mimética – em que letras e escrita revelam ligações diretas com o real – e de escrita verbal, estrito senso, poderia ser encarada como um processo de substituição do corpo pelo simbólico, processo sublimatório cujo centro seria a demanda da expressão verbal, oral ou escrita, entendida como ato criativo e mecanismo de superação de conflitos insolúveis no campo fisiológico, desde que a humanidade no indivíduo não é instinto – passível de ser satisfeito –, mas pulsão, que, não podendo jamais ser satisfeita, ou é somatizada ou é sublimada.

Não seria arbitrário extrapolar o enfoque da produção oral ou escrita como somatização ou sublimação para além das faixas etárias iniciais da vida humana, até porque as análises de Freud e Lacan, em suas obras aqui citadas, tratam exatamente disso.

Se por um lado as reflexões de Freud e Lacan apontam para casos relatados por bibliografia especializada em que a somatização poderia estar na origem de distúrbios de linguagem verbal oral e escrita, por outro não são raros os casos em que autores consagrados ou se apontaram (caso de Fernando Pessoa) ou são apontados (como James Joyce) como motivados por ou distúrbios ou por, no mínimo, incômodos verdadeiramente fertilizadores da produção artística.

Clarice Lispector escreveria para não morrer, Jean Genet para sair da cadeia, como eles mesmos afirmaram algures; Kafka, para aliviar sensação de sufocamento, como já se escreveu sobre ele; Maiakóvisk, para descomprimir a pressão emocional de paixões cujos objetos se foram revelando para ele inatingíveis: uma revolução verdadeiramente libertadora e uma Lilia Brick livre para corresponder ao seu amor (“a canoa do amor despedaçou-se contra a miséria cotidiana”, escreveria não muito antes de suicidar-se).

Fixemo-nos um tanto em Manuel Bandeira, cuja vida pessoal desde a infância foi de luta contra uma doença respiratória que, se não o vitimou cedo, lhe comprometeu decisivamente a qualidade de vida, faz vazar continuamente para sua produção literária aspectos dolorosos dessa sua vida pessoal de muitas limitações que, não obstante, lhe proporcionou oportunidades de observação e contemplação – muitas vezes era o que lhe restaria, em razão das muitas impossibilidades físicas.

Em entrevistas, o poeta externou a angústia de, na infância, ter de ficar observando os amigos da mesma idade a realizarem práticas físicas a ele proibidas, e como ele compensou isso com a imaginação, às vezes sem o saber. Biógrafos e críticos de sua obra, por seu turno, afirmam que essa posição de exterioridade em relação a eventos, de observador interditado em seu desejo, em certo sentido contribuiu na elaboração de sua obra poética.

Sobre o processo de escrita de um de seus mais famosos poemas, Bandeira assim resumiu:

“Quando eu tinha os meus quinze aos e traduzia na classe de grego do Pedro II a Ciropedia, fiquei encantado com esse nome de uma cidadezinha fundada por Ciro, o Antigo, nas montanhas do sul da Pérsia. Para lá passar os verões. A minha imaginação de adolescente começou a trabalhar; eu vi Pasárgada e vivi durante alguns anos em Pasárgada. Mais de vinte anos depois, num momento de profundo “cafard” e desânimo, saltou-me do subconsciente este grito de evasão: ‘Vou-me embora pra Pasárgada!’. Imediatamente senti que era a célula de um poema. Peguei do lápis e do papel, mas o poema não veio. Não pensei mais nisso. Uns cinco anos mais tarde, o mesmo grito de evasão nas mesmas circunstâncias. Desta vez o poema saiu quase ao correr da pena. Se há belezas em ‘Vou-me embora pra Pasárgada’, elas não passam de acidentes. Não construí o poema; ele construiu-se em mim nos recessos do subconsciente, utilizava o sonho, jamais realizado de uma bicicleta, etc. O quase inválido que eu era ainda por volta de 1926 imaginava em Pasárgada o exercício de todas as atividades que a doença me impedia: ‘E como farei ginástica... tomarei banhos de mar!’. A esse aspecto Pasárgada é ‘toda a vida que podia ter sido e que não foi’.”

Somados os números revelados pelo poeta, o texto se foi construindo latentemente no espírito do poeta por mais de vinte e cinco anos, sem que ele o soubesse. No poema “Profundamente” , o poeta narra de forma pungente um episódio de sua infância aparentemente de menor valia, articulando-o com situação posterior análoga na forma mais diversa em sentido:

PROFUNDAMENTE
Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas acesas luzes de Bengala
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas
No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
- Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo profundamente
*
Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci
Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
- Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.

Poder-se-ia especular em muitas direções acerca dessa incorporação por recuperação da memória de um fato corriqueiro da vida de uma criança em um poema, porém o que se pode argumentar também é que são muito comuns descrições em relatos clínicos de casos em que pequenas frustrações recalcadas se revelaram presentes na base de distúrbios de aprendizagem, de retardamento no desenvolvimento da fala ou da escrita ou ainda de desempenho escolar insatisfatório no que tange também à produção oral e escrita da língua materna.

Não se pode afirmar que opção de Bandeira de enfrentar a frustração infantil, e depois as muitas perdas da vida adulta, por meio do poema tornou-lhe melhor e existência, porém pode-se afirma com certeza que essa operação constitui um processo de busca de substituição do real pelo simbólico e, na pior das hipóteses, agora numa citação de memória de versos de Chico Buarque: “Ainda é melhor sofrer em dó menor do que você sofrer calado”.

Ensino-aprendizagem da língua de um ponto de vista democrático

Se se assume que no processo de produção da linguagem, da língua, da fala e da escrita o indivíduo comparece decisivamente, há que se admitir que a abordagem desses itens no âmbito da escola formal brasileira tem se orientado em sentido contrário.

A ênfase – e por que não dizer a crença fanática, amplamente majoritária – no ensino de mão única (do que sabe mais, o professor, para o que sabe menos,a criança ou o jovem), reforça a mistificação de que é na reprodução do passado que repousa a possibilidade de sucesso do futuro.Se, quando a fórceps, a ações de perseguição e de aposentadoria compulsória de docentes críticos, e sob a égide de estratégias de debelamento de congressos estudantis a poder de arapongagem e a golpes de cassetetes semelhantes concepções só produziam resultados pífios, e plenamente questionáveis, que dizer quando produzem resultados vexatórios em termos de avaliações nacionais e internacionais – em que pese o relativismo das metodologias?

A inércia conservadora, saudosista dos tempos de educação confundida com inculcação e doutrinarismo verde-oliva-moralista, sonha com a volta do tempo do mutismo no interior das salas de aula, com a restauração da ordem apoiada no medo e da autoridade, antes imposta burocraticamente que conquistada legitimamente. Porém, nem é possível esse “revival” reacionário – uma nova situação reacionária, esta sim, não só é possível, como é uma constante assombração na história da América Latina –, nem é possível virar as costas para o tanto de acúmulo científico e crítico no âmbito das ciências da educação dos últimos anos.

Os problemas relacionados ao ensino-aprendizagem de novas gerações de brasileiros não serão corretamente enfrentados se a criança e o jovem não forem assumidos como partes da solução. O indivíduo tem não somente um modo de vida próprio, uma história familiar e de grupo própria e um saber que não pode ser desprezado pela escola. Tem em igual medida uma identidade conflituosa própria e uma intimidade única cujo reconhecimento e mobilização o impulsionam no mundo dos outros indivíduos e da cultura, mas cujo desprezo e estigmatização o condenam à passividade ou à marginalização.

Pode-se estimular, no processo de ensino-aprendizagem, a produção de desenhos, de garatujas, de escrita mimética – que remete ao rébus freudiano. Ou pode-se adotar um sistema apostilado, na melhor das hipóteses, com os desenhos todos prontos, para a criança colorir de acordo com o enunciado (na pior das hipóteses pode-se ainda xerocar desenhos estereotipados para que as crianças pintem sob supervisão estrita).

Pode-se ainda organizar sessões de leitura de contos populares, de causos, de fábulas, encenações com as crianças produzindo toscamente figurinos a partir de papel para reciclagem e maquiagens borradas a partir de suas próprias habilidades. Ou pode-se solicitar (em escolas particulares é o que medra) aos pais um valor a ser acrescido nos boletos bancários para que uma empresa ou um profissional especializado prepare as maquiagens estereotipadas e as roupas de fadas da Disney para meninas ficarem bem ascéticas e parecidas com bonecas Barbie.

Pode-se, em suma, mobilizar o inconsciente dos indivíduos envolvidos no processo de ensino-aprendizagem (professores e estudantes), seus conflitos, seus sonhos, seus medos para a produção e para a criação, que envolve o intelecto, mas que envolve também a afetividade; que pode ter no horizonte o saber, mas que pode também ter como horizonte a arte. Ou pode-se objetivar o processo de ensino-aprendizagem, anulando-se os sujeitos, convertendo-os em máquinas de consumo, alucinadas em tentar satisfazer fisiologicamente aquilo que é demanda essencialmente emocional.

De um ponto de vista democrático, não resta outra atitude a educadores no âmbito do processo de ensino-aprendizagem que não seja a de acolher crianças e jovens – como de resto a si próprios – integralmente, com seus corpos, psique e afetividade, isto porque, não havendo muralha da China a isolar dimensões físicas (e fisiológicas), intelectuais e emocionais do indivíduo, e reconhecida como legítima a relação entre o corpo, psiquismo e produção da linguagem verbal (oral ou escrita), um pacto pedagógico que rejeite a mutilação implica na assunção das complexidades e dos conflitos, inerentes a todo indivíduo, como motores, não como obstáculos a serem evitados, segregados ou excluídos do próprio de processo de ensino-aprendizagem.
Com isso, com essa prática mais solidária, não há nenhuma garantia de que a escola produza em massa escritores como Manuel Bandeira, porém há garantia, sim, de que ela estará contribuindo para que o público de Manuel Bandeira, aqui convertido em metonímia, se amplie.

Bibliografia _______________________________________
Bandeira, Manuel. Estrela da vida inteira. Introdução: Gilda e Antonio Candido. Estudos de Tristão de Athayde e Otto Maria Carpeaux. 15 ed. Rio de Janeiro. José Olympio, 1988.
Freud, Sigmund. A interpretação das afasias. Trad. António Pinto Ribeiro. Lisboa, Edições 70, 1977.
Jakobson, Roman. Linguística e comunicação. Trad. Isidoro Blikstein. São Paulo, Cultrix, 1995.
Lacan, Jacques. O seminário: Livro 5 – As formações do inconsciente.Rio de Janeiro, Zahar, 1992.
Oliveira, Clenir Bellezi de. Arte literária brasileira. São Paulo, Moderna, 2000.
Saussure, Ferdinand de. Curso de linguística geral. Org. Charles Bally e Albert Sechehaye. Pref. Isaac Nicolau Salum. São Paulo, Cultrix, 1999.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

A IV Frota destruiu o “Império”



Atilio Borón* - Tradução: Jeosafá Fernandez Gonçalves

Sim, a IV Frota acabou fazendo naufragar o “Império”, livro de Michael Hardt e Antonio Negri, que demonstra, uma vez mais, serem implacáveis as respostas da história às modas intelectuais que, em seu tempo, brilham como inquestionáveis ou indestrutíveis. A nefasta tese que propunham esses autores, a de que existiria um “império sem imperialismo”, foi sepultada pelos fatos. Descanse em paz.

Um pouco de história

Poder-se-ia argumentar: mas a quem importa a morte de um desvario de dois intelectuais? Resposta: a muita gente e, especialmente, às forças sociais que lutam pela construção de um mundo melhor, por uma sociedade socialista. Para compreender melhor o porquê desta resposta, convém fazer um pouco de história.

Precisamente quando o neoliberalismo começou a sofrer os embates de uma resistência que nos inícios deste século se estendia pelas mais diversas latitudes, apareceu o livro de Hardt e Negri. De imediato, a obra foi saudada por toda a imprensa imperialista mundial como o “novo” Manifesto Comunista do século XXI, um manifesto que, diferente de seu predecessor, escrito por Marx e Engels um século e meio antes, demonstrava sua sensatez ao fulminar sem atenuantes os dinossauros que ainda falavam do imperialismo, acreditavam que as transnacionais se apoiavam na forças dos estados nacionais e que estes, longe de estarem em vias de extinção, se fortaleciam no capitalismo metropolitano enquanto se debilitavam na periferia do sistema.

Um curioso manifesto comunista em cujas páginas brilhavam pela ausência as contradições de classes, a dialética e a revolução, e que erigia um modelo de luta contra o fantasmagórico império... – Oh, bom São Francisco de Assis! (de quem se dizia que amansava lobos famintos com o som de seu violino) – e relegando ao museu dos arcaismos revolucionários como Che Guevara, Fidel, Lênin, Mao, e Ho Chi Mihn, entre tantos outros. Por várias razões que não vêm ao caso expor aqui, a influência destes disparates nas primeiras reuniões do Fórum Social Mundial de Porto Alegre foi enorme, e os que interpusemos objeções às teses de Hardt e Negri, tivemos de remar contra a maré para conseguir que nos escutassem. Muitos dos quais impediram um debate de fundo sobre este assunto terminaram por ser representantes ideológicos dos anguiliformes governos de centro-esquerda que, pouco depois, se avalizariam na região.

Não era fácil contrariar as formulações de um pensador dono de uma trajetória marxista tão reconhecida como Toni Negri. “Império”, escrito conjuntamente como estadunidense Michael Hardt, um professor de Teoria Literária de Duke, é um livro volumoso, arrevesado e por momentos crípticos (ou confusos, se não se quer ser tão benévolo), cuja tese central, o “imperialismo não é imperialista”, soou como música celestial para os imperialistas. Não causou surpresa, por tanto, o dilúvio de elogios com que o livro foi recebido pelo mundo “bem-pensante” e a indústria cultural do império: não é coisa de todos os dias que dois autores autodenominados “comunistas” defendam uma tese tão coerente com os desejos e os interesses dos imperialistas de todo o mundo, e muito especialmente com os da “Roma americana”, vale dizer, de José Martí, que aporta os fundamentos materiais, militares e ideológicos sobre os quais repousa todo o imperialismo como sistema.

A interminável sucessão de erros e confusões que se desdobrava ao largo do livro, salpicadas, é verdade, com alguma ou outra observação mais ou menos razoável, foi objeto de numerosas críticas. Pensadores marxistas das mais diversas correntes questionaram e refutaram essa obra (1).
Por nossa parte, assumimos como uma exigência da militância anti-imperialista dedicar um tempo precioso para escrever um pequeno livro destinado a rebater as teses centrais de “Império” e para tratar de contribuir para neutralizar a profunda confusão ideológica em que, em razão das mesmas, caíram os movimentos da globalização alternativa (2).
É que, em linha com o discurso predominante do neoliberalismo e sob uma retórica de esquerda o livro de Hardt e Negri contrariava, com uma insuportável mescla de ignorância e soberba, toda a evidência empírica arrolada por numerosos estudos sobre a dominação imperialista e suas consequências. Ao lado da disparatada tese central – um imperialismo sem relações imperialistas de dominação, saque e exploração – também se afirmava que o império carece de um centro, não tem um “quartel general” nem posto de comando, e tampouco se afirma sobre base territorial alguma; muito menos pode se dizer que conte com o respaldo de um estado-nação.

Para Hardt e Negri, o império é uma benévola constelação de múltiplos poderes sintetizados em um regime global de soberania permanentemente tangida por uma fantasmagórica “multidão”: uma vaporosa ou líquida, nos dizeres de Zigmunt Bauman, agregação altamente instável e mutante de sujeitos que, por um incompreensível paradoxo, eram simultaneamente os verdadeiros criadores do império e podiam ser seus eventuais coveiros se, por um milagre, lograssem curar-se da esquizofrenia que os conduziu a criar algo que os oprimia e que, por vezes, queriam destruir.

É, por tudo que se disse anteriormente, que poucas imagens poderiam ser mais do agrado do governo dos Estados Unidos e das classes dominantes desse pais e seus aliados em todo o mundo que esta embelezada visão de suas cotidianas tropelias, crimes, atropelos e o genocídio que lenta e silenciosamente praticam dia após dia pelos quatro cantos da terra, e muito especialmente no Terceiro Mundo.

Poucas também poderiam ter sido mais oportunas em momentos em que os Estados Unidos se converteram em potência imperialista mais agressiva e poderosa da história da humanidade e no estado-nação imprescindível e insubstituível para sustentar com sua formidável maquinaria militar, sua enorme gravitação econômico-financeira e o fenomenal poderio de sua indústria cultural (de Hollywood até suas universidades, passando por seus tanques de pensamento e pelos meios de comunicação de massa e, last but no least, seu controle estratégico da internet, não compartilhado nem sequer com a União Européia ou Japão, toda arquitetura do sistema imperialista mundial.

A IV Frota entra em cena

Bem, se alguma prova faltava para avariar irreparavelmente as teses centrais de “Império”, e para convencer aos mais céticos do caráter insanamente errôneo do livro, a reativação ordenada pelo governo dos Estados Unidos da IV Frota ofereceu a evidência necessária para encerrar definitivamente o caso. Ferido de morte pela invasão e ocupação estadunidense do Iraque, promovida por um estado-nação que, para apossar-se de riquezas petrolíferas e favorecer suas “transnacionais” não hesitou em arrasar esse país, “Império” naufragou definitivamente ante a nova iniciativa ordenada pelo Departamento de Defesa, em abril de 2008 (3).

Desativada desde 1950, a IV Frota (dos Estados Unidos, não de um poder “global e abstrato” ou das Nações Unidas, como Hardt e Negri nos induziram a acreditar) foi tirada de sua letargia com o mandato específico de patrulhar a região e monitorar os acontecimento que se podem produzir no vasto território conformado pela América Latina e Caribe. Não somente se trata de controlar o litoral marítimo no Atlântico e Pacífico, senão que também, se enveredou com eloquente imprudência, poderia inclusive navegar pelos caudalosos rios interiores do continente com o propósito de perseguir narcotraficantes, capturar terroristas e desenvolver ações humanitárias que causariam inveja à Madre Teresa de Calcutá.

Não é necessário ser muito esperto para computar que a penetração da IV Frota pelo rio Amazona e seu eventual estacionamento nesse rio lhe outorgaria um sólido respaldo militar à pretensão norte-americana de converter essa região em um “patrimônio da humanidade sob supervisão das Nações Unidas”. Tampouco se requer demasiada imaginação para prever o que poderia significar a navegação da IV Frota pelos grandes rios sul-americanos, isoladamente ou com o auxílio de forças locais aliadas do imperialismo, para manietar e subjugar a que, em um trabalho recente, Perry Anderson qualificou como a região mais rebelde e resistente ao domínio neoliberal do planeta.

Com esta iniciativa dos Estado Unidos, o centro indiscutível do império e o locus em que reside seu quartel general, vem a completar pelos mares e rios o que ja havia sido parcialmente obtido mediante o estacionamento em nossa geografia de uma série de bases e “missões militares” e por seu predomínio aéreo e do espaço exterior, especialmente no campo orbital dos satélites: o controle integral do que os especialistas em geopolítica dos Estado Unidos chamam de "grande ilha americana". Graças ao Plano Colômbia, e em menor medida ao Plano Puebla-Panamá), e às numerosas bases militares com que conta na região, Washington detém um decisivo e monopolizador controle territorial que se estende do México, no norte, à Tríplice Fronteira, à Base Mariscal Estigarriba, no Paraguai, e inclusive à própria Terra do Fogo, no extremo sul da Argentina, onde também há pessoal militar norte-americano (4).

Uma nota produzida faz poucos meses por Stella Calloni consigna que na Terra do Fogo o governo dessa província argentina emitiu um decreto cedendo terras “para a instalação de uma base estadunidense que se supõe realizará estudos nucleares com ‘fins pacíficos’”.

Esta decisão do governo provincial se apoia em uma lei aprovada em 1998 pela Câmara de Deputados da Nação, durante a presidência de Carlos S. Menen, em cujos anexos se contempla que ‘poderão realizar-se explosões nucleares subterrâneas com fins pacíficos’. O decreto do executivo foguenho autoriza a instalação de uma base do Sistema Internacional de Vigilância para Prevenção e Proibição de Testes e Explosões Nucleares... e habilita para ‘os integrantes desta base o livre trânsito pela província, se assim o desejarem para seus estudos’. Por último, anota Calloni que existe o perigoso antecedente da “imunidade total” que o Paraguay outorgou, em 2005, às tropas estadunidenses radicadas nesse país e que motivara a condenação unânime dos organismos de defesa dos direitos humanos em toda a América Latina (5).

Resumindo: Na atualidade, o controle que os Estados Unidos detém do espaço aéreo latino-americano é absoluto e inexpugnável, haja vista sua enorme superioridade tecnológica que, entre outras coisas, lhe permitiu organizar e ajudar a executar, passo a passo, a enigmática “operação resgate” de Ingrid Betancourt e dos outros “reféns de ouro” que as FARC tinham em seu poder.

À essa supremacia deve-se somar sua presença territorial e, agora, agregar o domínio dos mares, com o qual o círculo se fecha sobre a América Latina e o Caribe. Círculo que estreita cada vez mais para os quatro governos que em nossa região estão travando uma batalha diária e sem quartel contra o imperialismo: Cuba, Venezuela, Bolívia e Equador.

Missões manisfestas e latentes

Uma versão cândida da missão da IV Frota, apta para o consumo das almas incapazes de reconhecer a maldade, foi brindada há poucas semanas pelo Almirante James Stavridis. Em uma nota, reproduzida nos principais periódicos da América Latina, este militar sustenta que “o restabelecimento da IV Frota” é um reconhecimento à “excelente cooperação, amizade e mútuo interesse nas Américas entre nossa armada e as armadas de toda região”. Depois de assegurar que “não há navios permanentemente designados para a IV Frota... e não terá nenhum porta-aviões alocado” destacou que entre as principais operações marítimas que poderiam ser levadas a cabo com as armadas da região se incluem, significativamente em primeiro lugar, “a assistência humanitária..., o apoio às operações de paz, a assistência nas situações de desastres e as operações de auxílio, nas operações contra o narcotráfico e.... nas cooperações regionais de treinamento inter-operacional” (7).

É evidente que a linguagem empregada por Stavridis não por casualidade tem a suficiente ambiguidade como para ocultar as verdadeiras intenções que jazem por sob tão significativa decisão. É concebível pensar que os Estados Unidos vão reativar a IV Frota para oferecer “assistência humanitária” à América Latina e ao Caribe? Isto ninguém pode acreditar, porque para isso hão faz falta uma frota naval e, ademais, porque semelhante rasgo de altruísmo jamais figurou na agenda da política exterior estadunidense. Esta segue fiel ao velho lema de John Quincy Adams, sexto presidente dos Estados Unidos, quando afirmou que esse país “não tem amizades permanentes senão que interesses permanentes.”

Essa política, portanto, pouco tem de novidade. A Doutrina Monroe, formulada em 1823 – vale dizer, um ano antes da batalha de Ayacucho que complementaria a primeira etapa da luta pela independência de nossos povos – apontava nessa direção e reafirmava o “interesse permanente” dos Estados Unidos em controlar e dominar a América Latina. Tal como assinala o historiador Horacio López, em fins do século XIX um oficial da Armada estadunidense, Alfred Thayer Mahan, aperfeiçoaria no plano da geopolítica as recomendações que se depreendem da Doutrina Monroe (8).

A preocupação de Mahan surgiu como resposta frente à problemática desencadeada pela guerra hispano-americana que culminou, no Caribe, com a incorporação de Cuba e Porto Rico à hegemonia norte-americana, sem bem que sob diferentes condições, e a estratégia que os Estados Unidos a deviam por em prática para assegurar seu indisputado predomínio no Caribe, definido a partir de então como o Mare Nostrum estadunidense. Contrariando as interpretações dominantes em seu tempo, Mahan sustenta que a extensão do poder continental dos Estados Unidos passava pelo controle global dos oceanos e das linhas de comunicações marítimas, o que exigia a conformação de uma poderosa frota militar e mercante.

A partir destas premissas Mahan, observa López, defendeu a necessidade de construir um canal na América Central para resolver, em caso de conflitos, o rápido translado da frota de guerra estadunidense de uma costa a outra, dado que a travessia pelo estreito de Magalhães levava, nessa época, mais de sessenta dias de navegação... Uma vez que se construísse o canal, se levantaria o problema de sua defesa para evitar que este caísse em mãos inimigas.

López cita o sociólogo porto-riquenho Ramón Grosfoguel, o qual afirma que: “como uma maneira de assegurar a defesa do futuro canal, Mahan recomendou que antes de construí-lo os EUA deveriam adquirir o Havaí e controlar militarmente quatro rotas marítimas caribenhas a noroeste do canal: o Passo de Yucatán, entre Cuba e México; o Passo dos Ventos, a principal rota norte-americana de acesso ao canal entre Cuba e Haiti; o Passo da Mona, entre Porto Rico e República Dominicana; e o Passo de Anegada, próximo de St. Thomas, nas águas orientais de Porto Rico. Mahan recomendou às elites norte-americanas a construção de bases navais nessas zonas como pré-requisito para a construção de um canal e como passo indispensável para transformar os EUA em uma superpotência (9).

Se se examina o itinerário da política exterior desse país, poder-se-á comprovar que as recomendações de Mahan não caíram em saco sem fundo: os EUA se apoderaram de Cuba e de Porto Rico e, indiretamente, das pequenas nações do Caribe e da América Central; fez o mesmo com o arquipélago do Havaí em 1898 e em pouco tempo se apropriou das Filipinas, das Ilhas Marianas e de outras possessões no Pacífico Ocidental. Todo esse esforço se viu coroado com a cuidadosamente planejada secessão da província setentrional colombiana do Panamá, em 1903, e a assinatura de um tratado que permitiria a construção do respectivo Canal, que seria inaugurado em 1914 (10).

Nessa oportunidade, as autoridades “independentes” do Panamá concederão aos EUA os diretos perpétuos do Canal e uma ampla zona de 8 quilômetros de cada lado do mesmo em troca de uma soma de 10 milhões de dólares e de uma renda anual de 250 mil dólares. Esta situação seria modificada graças ao Tratado Torrijos-Carter, firmado em 1977, e que devolveria o Canal à soberania panamenha em 31 de dezembro de 1999.

Desta sumária descrição surge com bastante clareza a coerência da política exterior da Casa Branca para a América Latina, área considerada importantíssima pela Armada e, em consequência, a muito fundamentada suspeita de que a reativação da IV Frota está chamada a jogar um papel muito mais importante que o anunciado pela propaganda oficial. Em outras palavras, que sua missão verdadeira pouco tem a ver com a manifestamente declarada.

Sabemos por experiência os problemas nocionais com nos quais tropeça quem pretenda decifrar o significado de expressões tais como “segurança regional”, “terrorismo” e “narcotráfico” quando elas são se fazem constar em discursos ou documentos oficiais do governo dos EUA. Quem quer que se oponha aos desígnios imperiais pode ser fulminado sob a qualificação de "terrorista' ou "narcotraficante" ou, mais facilmente, não obstante, de “cúmplice” daqueles.

O argumento da luta contra o narcotráfico não só é falso, como é cômico. Afeganistão e Colômbia, dois países nos quais a presença norte-americana é esmagadora, poder-se-ia mesmo dizer inclusive que, sobretudo no primeiro caso, são países “ocupados” militarmente por Washington, não por casualidade registram nos últimos anos uma vigorosa expansão dos cultivos de papoula e coca, ademais, o tráfico de substâncias proibidas, algo insólito que ocorra sob a ciosa observação de quem agora se arroga a responsabilidade de combater o narcotráfico na América Latina.

Um estudo recente conclui que a invasão e ocupação do Afeganistão desde outubro de 2001 “não destruiu a economia da droga nesse país. Pior ainda, o Afeganistão voltou a converter-se no maior produtor mundial de ópio... e o cultivo da papoula se estendeu por todas a províncias do país, sua produção corresponde a 92% do ópio e a aproximadamente 90% da heroína consumidos no mundo”. No tocante ao caso colombiano, os autores sustentam que “apesar de anos de campanhas de erradicação, a produção e o comércio de drogas ilegais permaneceram estáveis na região” (11).

O Informe da ONU contra a Droga e o Crime (UNODC) de 2008 revela que em 2007 a colheita de papoula no Afeganistão foi a maior desde que se realizam registros estatísticos e que a produção de ópio de duplicou entre 2005 e 2007. Também assinala que nesse país se verifica uma impetuosa expansão do cultivo de maconha (12). Na Colômbia estima-se que no último ano a superfície semeada com coca se incrementou em 27%, em que pesem as campanhas de fumegação, a presença de tropas norte-americanas e as políticas de “combate” ao narcotráfico desencadeadas pelo governo colombiano mancomunado com a Casa Branca.

Ante a contundência destes fatos, quem poderia ser tão ingênuo ao ponto de acreditar que a IV Frota se mobilizaria para perseguir narcotraficantes quando sob a proteção de tropas norte-americanas o cultivo e o tráfico de drogas floresceu no Afeganistão e na Colômbia? O que a experiência sugere com quase mais segurança é que uma de suas principais missões será a de organizar o tráfico de drogas no mundo de modo tal que os recursos gerados por esse comércio escuso sejam canalizados para instituições financeiras norte-americanas encarregadas de lavá-los e pô-los em circulação.

O pretexto da luta antiterrorista contra o radicalismo islâmico é tão convincente quanto o anterior: salvo os atentados à Embaixada de Israel e à AMIA, ocorrida em Buenos Aires, em começos dos anos noventa, e cuja gênese, responsáveis e executores ainda se encontram nas sombras graças à surpreendente ineficácia, ou corrupta cumplicidade, de alguns funcionários do Estado argentino em suas diferentes ramificações, não existe na região atividade alguma comprovada de células vinculadas à Al Qaeda ou outra organização similar.

A luta contra o terrorismo internacional deveria orientar-se para Washington, pois ali se encontram seus principais responsáveis: a escandalosa proteção oficial concedida ao terrorista comprovado e confesso Luis Posada Carriles e a não menos escandalosa detenção - em condições desumanas que não se aplicam nem ao mais desalmado criminoso - dos cinco jovens cubanos que se infiltraram nas organizações terroristas sediadas em Miami, anulam toda verossímil pretensão reivindicada pela Casa Branca para combater terrorismo (13).

Porquanto as intenções humanitárias da IV Frota não são mais que pretexto para encobrir suas verdadeiras e inconfessáveis intenções: posicionar-se na região para estar prestes a intervir tão logo o exijam os imperativos da conjuntura (14).

Contrariando as piedosas declarações de Stavridis, um comunicado oficial do Departamento de Defesa dos EUA manifestou que a IV Frota contará com toda classe de navios, submarinos e aviões, e que seu ancoradouro, Mayport, no estado da Flórida, é uma base naval que conta com um vasto arsenal nuclear. Segundo esse comunicado, o objetivo perseguido pela reativação da IV Frota foi “responder ao crescente papel das forças marítimas na área de operações do Comando Sul (dos EUA) e demonstrar o compromisso de Washington com seus sócios regionais” (15).

Não é necessário forçar demasiadamente a imaginação para saber quem são os qualificados “sócios regionais” e quem, como Cuba, Venezuela, Equador e Bolívia, são considerados como os “inimigos globais” que desestabilizam a região e atentam contra a “segurança marítima” da região.

A declaração oficial do Pentágono não poderia ter sido mais vaga: esta força teria a seu encargo várias missões, num espectro que vai desde “operações contingentes" e luta contra o “narcoterrorismo” até certas atividades relacionadas com a "segurança no teatro de operações".

Como se pode observar, a IV Frota tem um mandato para fazer praticamente qualquer coisa, e não é casual que sua reativação tenha coincidido com o bombardeio por parte da Força Aérea da Colômbia de um acampamento das FARC precariamente instalado em território equatoriano e a poucos quilômetros da fronteira, operação que, semelhante à “libertação” dos quinze reféns em poder das FARC, não teria sido possível sem o apoio de informações e de transmissões por satélite dos EUA.

Tampouco é casual que tenha ocorrido quando os esforços pela desestabilização dos governos da Venezuela, Equador e Bolívia revelaram suas limitações e quando os governantes desses países lograram, ao menos até agora, superar todos os obstáculos e armadilhas a eles interpostos pela Casa Branca e seus lacaios na região. A acachapante vitória de Evo Morales no recente referendo revocatório do 10 de agosto deve ter contribuído para o desespero de muitos em Washington na Meia Lua boliviana.

Para resumir: o certo é que o Pentágono intenciona dotar a IV Frota com um equipamento similar ao que contam a V Frota, que opera no Golfo Pérsico, e a VI, estacionada no Mediterrâneo. Declarações posteriores do Pentágono admitiram que ao menos um porta-aviões e vários submarinos formarão parte da frota encarregada de patrulhar as águas latino-americanas.

Nesse mesmo informe originado em Washington, e publicado por La Nación sob a assinatura de seu corresponsável nessa cidade, Hugo Alconada Mon, se diz que “dentro da órbita do Comando Sul operam hoje 11 barcos, um número que poderia aumentar no futuro. Que tipo de naves se empregarão ‘é questão de momento, das missões específicas’... mas os primeiro indícios apontam ao imponente porta-aviões George H. W. Bush, que estará operacional desde o fim deste ano, como possível coração da IV Frota” (16).

Segundo o mesmo enviado a Washington, “o almirante Gary Roughead, gestor intelectual do renascimento da unidade”, tem como meta “assegurar a segurança neste mundo globalizado”. Interrogado sobre o significado dessa expressão, Roughead se limitou a dizer que a IV Frota poderá estar “pronta em todo momento para todo desafio. Por isso, somos uma Armada global”.

Se se recorda a extraordinária amplitude que a nova doutrina estratégica norte-americana anunciada em setembro de 2002 – a guerra infinita e global contra o “terrorismo” - e o fato de que a paranóia oficial reinante em Washington considera como “terrorista” todo aquele que resiste à agressões do imperialismo, poucas dúvidas cabem acerca do papel real que desempenhará a IV Frota: ser um elemento de chantagem e dissuasão para os governos da região que se oponham aos imperialistas e um significativo apoio “além-fronteiras” paras seus aliados entre as classes dominantes locais (17).

O documento do Comando Sul dos EUA denominado “US Southern Command Strategy”: 2016 Partnership for the Americas” é qualificado pelo especialista em relações internacionais Juan Gabriel Tokatlian com “o plano mais ambicioso que concebeu em anos uma agência oficial estadunidense com relação à região” (18).

Segundo esse documento, na nova conformação da política estadunidense para nossa região não desempenham papel algum nem os tradicionais instrumentos de predomínio militar, como a Junta Interamericana de Defesa ou o já finado Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, cujo melhor momento foi a Guerra das Malvinas, em 1982; nem tampouco organismos multilaterais como a OEA ou as Nações Unidas. Assinala mesmo que “as instâncias políticas internas - os Departamentos de Estado, Justiça e Tesouro - de interação com o hemisfério esvaíram-se no documento. O comando Sul anuncia seu papel e projeção na área para os seguintes dez anos como o faria um pró-cônsul continental” (19).

A militarização da política internacional é uma das consequências da nova doutrina estratégica anunciada ao mundo em setembro de 2002 e ratificada agora pelo Pentágono através de seu instrumento regional: o Comando Sul. Note-se que o outro lado da moeda dessa concepção que militariza a cena internacional é a criminalização do protesto social no plano doméstico, para o que aponta a já referida legislação antiterrorista aprovada, sob a forte pressão estadunidense, em quase todos os países da área. Para combater em todos os terrenos, o internacional e nacional, o império apela para a eficácia dissuasória das armas. Esse e não outro é o real papel que a IV Frota está chamada a cumprir na América Latina e no Caribe (20).

Um debate terminado, uma confusão a menos

Como dizíamos a princípio, a ativação da IV Frota liquidou o debate em torno da natureza do império. Tal como defende o marxismo, as controvérsias teóricas e políticas não se resolvem com engenhosos jogos de palavras ou acesas pirotecnias verbais, senão que na vida prática de povos e nações. O debate sobre o livro de Hardt e Negri já se acabou: o primeiro golpe mortal lhe fora dado pela Guerra do Iraque, que desde o princípio demonstrou claramente ser uma clássica guerra imperialista de anexação lançada para expropriar o petróleo iraquiano. O tiro de misericórdia acaba de ser dado pela decisão de reativar-se a IV Frota.

Para estudar seriamente o imperialismo, Hardt e Negri deveriam ter-se inspirado na atitude de Lênin - um autor pelo qual não ocultam seu menosprezo -, quando se propôs investigar a natureza do imperialismo em princípios do século XX: ler toda literatura relevante produzida por intelectuais da burguesia imperialista. Em lugar disso, Hardt e Negri se regozijaram transitando pelos inconsequentes meandros da filosofia pós-moderna francesa, enquanto o império verdadeiro, não aquele os levava a delírios, desfilava ante suas dilatadas pupilas sem que eles tivessem a menor consciência disso. Seu desconhecimento da densa literatura imperialista produzida pela direita norte-americana desde Reagan até nossos dias é imperdoável.

Tivessem a curiosidade própria do espírito científico e tivessem ousado ler algo, ainda que fosse o que escrevia um dos porta-vozes mais característicos do pensamento imperialista norte-americano e principal colunista de assuntos internacionais do New York Times, Thomas Friedman, teriam proporcionado a si próprios um banho de sobriedade e provavelmente se dado conta de que algo não funcionava demasiado bem em sua teoria (21).

Pouco antes da aparição de “Império”, Friedman escreveu uma nota na qual dizia, sem meias-palavras, que “a mão invisível do mercado global nunca opera sem um ponho invisível. E o punho invisível que mantém o mundo seguro para o florescimento das tecnologias do Vale do Silício se chama Exército dos EUA, Armada dos EUA, Força Aérea dos EUA e Corpo de Marines dos EUA (com a ajuda incidental de instituições globais como as Nações Unidas e o Fundo Monetário Internacional) ... Por isso, quando um executivo diz coisas tais como ‘Não somos uma companhia estadunidense, somos IBM-US, ou IBM-Canadá, ou IBM-Austrália, ou IBM-China’ lhes digo: ‘Ah, sim? Bem, então da próxima vez que tiverem um problema na China, chamem Li Peng para que os ajudem. E da próxima vez que o Congresso liquidar uma base militar na Ásia – e você diz que não lhe afeta porque não o preocupa o que faz Washington – chame a Armada da Microsoft para que lhe assegure as rotas marítimas da Ásia. E da próxima vez que um novato congressista republicano quiser fechar mais embaixadas estadunidenses, chame a América-On-Line quando cassarem seu passaporte” (22).

Este é o “império realmente existente”, o “xerife solitário” de que fala Huntington, com a onipresença dos Estados metropolitanos, e sobretudo do Estado fundamental para a preservação da estrutura imperialista mundial: os EUA; com a proliferação de grandes empresas “nacionais” de projeção global respaldadas por seus Estados, os mesmos que em seu cândido idílio Hardt e Negri acreditavam desaparecidos; e com o decisivo componente militar que caracteriza esta época, na qual os povos supostamente estariam colhendo os dividendos da “paz mundial”, uma vez implodida a antiga URSS, causadora do equilíbrio do terror atômico dos anos da Guerra Fria, na qual, paradoxalmente, floresce a doutrina da “guerra infinita”, interminável e contra todos proclamada por George W. Bush.

Se algo de bom pode surgir da desafortunada notícia da ativação da IV Frota é que a mesma nos permite deixar para trás a alucinada visão sintetizada em “Império” e que tanto atrasou a tomada de consciência das forças de esquerda, de seus partidos e de seus movimentos sociais sobre a verdadeira natureza do inimigo imperialista.

Como o menino do conto que gritou “O rei está nu!”, a recente decisão de Washington tem um valioso efeito pedagógico: despeja do crucial terreno das ideias as interpretações erradas do imperialismo contemporâneo, como a de Hardt e Negri, que é um imprescindível primeiro passo para traçar um panorama mais claro e realista tanto dos desafios que o imperialismo representa a nossos povos como para construir as estratégias, táticas e instrumentos políticos mais apropriados para combatê-lo com êxito.

* Professor Titular de Teoria Política na Universidade de Buenos Aires e Pesquisador do Superior de CONICET.
Fonte: REBELIÓN . Disponível em http://www.rebelion.org/noticia.php?id=71635*
NOTAS:
(1) Consultar entre muitos outros: Alex Callinicos, "Toni Negri en perspectiva".http://revoltaglobal.cat/IMG/pdf/form_CallinicosToniNegrienperspe.pdf.Néstor Kohan, " El Imperio de Hardt & Negri y el Regreso del Marxismo Eurocéntrico".
http://www.cuestiones.ws/semanal/030503/sem-may03-03-kohan.htm*) Slavoj Zizek, ¿Han re-escrito Michael Hardt y Antonio Negri el Manifiesto Comunista para el siglo XXI? (2001). http://es.geocities.com/zizekencastellano/arthardtnegri.htm* François Houtart, Tarik Ali, Peter Gowan y Rafael Hernández, "¿Qué imperialismo?", em Temas (La Habana: 2003), Nº 33-34, Abril-Septiembre; Leo Panitch y Sam Gindin, "Capitalismo global e imperio norteamericano" parte I y II, en Socialist Register en Español (Buenos Aires: CLACSO, 2004 y 2005); John Bellamy Foster, "Imperialism and 'Empire' ", en Monthly Review , Vol. 53, Nº 7, Diciembre de 2001.
(2) Ver nosso Imperio & Imperialismo. Una lectura crítica de Michael Hardt y Antonio Negri (5ª. edição, Prêmio Extraordinário de Ensaio 2004 da Casa das Américas) [Buenos Aires: CLACSO, 2004].
(3) No Prólogo da 5ª. Ediação de nuestro Imperio & Imperialismo dizíamos que "a guerra do Iraque, declarada solitariamente pelos Estados Unidos, teve sobre a análise proposta naquela publicação o mesmo efeito que sobre a auto-estima norte-americana teve a queda das Torres Gêmeas de Nova Iorque." (Cf. op, cit, p. 6).
(4) Sobre o tema das bases militares estadounidenses na América Latina consultar os diversos trabalhos de Ana Esther Ceceña e, especialmente, "Subjetivando el objeto de estudio, o de la subversión epistemológica como emancipación", In Ana E. Ceceña, compiladora, Los desafíos de las emancipaciones en un contexto militarizado (Buenos Aires: CLACSO, 2006), pp. 13-43. Também da mesma autora “Álvaro Uribe y la base de Manta”
http://www.prensamercosur.com.ar/apm/nota_completa.php?idnota=3833** e, por último, seu muito instrutivo site http://www.geopolitica.ws/*
(5) Stella Calloni, "Alertan sobre una base estadounidense para estudios nucleares en Tierra del Fuego", In *La Jornada* (México), 14 de Octubre de 2007.
(6) Esclarecemos, para que não haja a menor dúvida, que condenamos sem atenuantes a utilização dos sequestros como arma de luta política e que por isso mesmo celebramos a libertação dos reféns das FARC. De todo modo subsistem demasiadas incógnitas cerca da natureza desse "resgate" que, seguramente, com o passar do tempo, poderão ser solucionadas, reservando não poucas surpresas.
(7) Cf. "La importancia de trabajar juntos", en La Nación (Buenos Aires) 10 de junho de 2008.
(8) Horacio López, Secesionismo, anexionismo, independentismo en Nuestra América (Caracas: El perro y la rana, 2008), p. 23. O livro fundamental no qual Mahan expõe suas doutrina é The Influence of Sea Power upon History, 1660–1783 (1890, não por casualidade reeditado nos anos de Ronald Reagan: 1987).
(9) Ramón Grosfoguel. "Los límites del nacionalismo: lógicas globales y colonialismo norteamericano en Puerto Rico", In Jorge Enrique González, Editor. Nación y nacionalismo en América Latina (Buenos Aires: CLACSO, 2007)
(10) Importante sublinhar ue esta estratégia, do separtismo, recentememente tem sido desengavetada pelo Departamento de Estado para conter a maré esquerdista que crece no continente. Não é casual que eventos separatistas, abertamente estimulados por Washington, tenham aparecido em Zulia, Venezuela; no litoral equatoriano, ressuscitando uma ancestral mas largamente esquecida demanda em prol da fundação da República do Guayas, com sede em Guayaquil; e na Meia Lua boliviana, onde a estratégia da secessão está na ordem do dia, potencializada sem dúvida pela acachapante vitória de Evo no referendo revocatório do passado 10 de Agosto que parece ter convencido à reação racista e fascista da Bolivia que a "solução” da crise contempla apenas dus posibilidades: o golpe de Estado ou a secessão. O primeiro ensaio bem sucedido desta estratégia imperialista de secessão teve lugar no Texas, em 1845, então pertencente ao México, e que logo terminaria sendo anexado ao território dos Estados Unidos. Desde então tem um lugar privilegiado no manual de operações do Departamento de Estado.
(11) Segundo a Oficina das Nações Unidas contra a Droga e o Crimen (UNODC), no de 2006 cultivo de papoula creceu 59% enquanto que a do ópio o fez em 49%. Em recente artigo, Peter van Ham y Jorrit Kamminga, "Poppies for Peace: Reforming Afghanistan's Opium Industry", In Washington Quarterly, Invierno 2006-2007, pp. 69-81, examinam a fundo a situação da economia da droga no Afeganistão e sua possível reconversão. Nada disto ocorreu, não obstante, sob a ocupação norte-americana.
(12) UNODC, Informe Anual 2008, p. 1. *
http://www.unodc.org/documents/wdr/WDR_2008/Executive%20Summary.pdf*
(13) Sobre o caso Posada Carriles e a questão d’os 5, consultar nosso "El terrorismo como política de estado", In Página/12 e Rebelión, do dia 11 de dezembro de 2007.
(14) Some a isso, em meados de junho de 2007, a Câmara de Deputados da Argentina transformou em lei um projeto do Poder Executivo que reprime o apoio ao terrorismo e também seu financiamento. A lei responde tanto a um reclamo dos Estados Unidos como a uma pressão do Grupo de Ação Financeira Internacional, que ameaçava fazer um pronunciamento público declarando a Argentina país não seguro. Essa mesma chantagem foi exercida sobre quase todos os países da região que, salvo algumas poucas exceções, aprovaram em tempo recorde a legislação solicitada pelo império. Tão vaga é a caracterização que faz a lei que em vários países da região surgiram fortes protestos por sua aplicação para perseguir militantes sociais ou movimentos que se opõem às políticas neoliberais. Cf. "Aprueban una ley antiterrorista que era reclamada por Estados Unidos", In Clarín (Buenos Aires), 14 de junho de 2007. Veja-se também a nota de Fernanda Balatti, "El terrorismo según Argentina", In Le Monde Diplomatique (Buenos Aires), ano IX, Número 108, junho 2008, p. 6.
(15)
http://www.defenselink.mil/releases/release.aspx?releaseid=11862*
(16) Cf. Hugo Alconada Mon, "Estados Unidos con más presencia en la región", en *La Nación* (Buenos Aires), 28 de abril del 2008.
(17) Hugo Alconada Mon, "Estados Unidos pone en marcha la IV Flota", en *La Nación* (Buenos Aires), 13 de Julio de 2008.
(18) "El militarismo estadounidense en América del Sur", In Le Monde Diplomatique (Buenos Aires), ano IX, Número 108, junho 2008, p. 5. Este artigo faz parte de um excelente dossiê dedicado ao tema e que inclui os siguintes trabalhos: Fernanda Balatti, "El terrorismo según Argentina"; "¿Adiós a la base de Manta en Ecuador", por Adriana Rossi; "La construcción de la soberanía regional", por Daniel Pignotti; y "Apropiación de recursos naturales", por Serena Corsi. (19) Ibid., p. 5.
(20) Sobre a criminalização do protesto social existe uma amplíssima literatura especializada. Em conexão com o tema de nosso trabalho remetemos à leitura do texto de Fernanda Balatti mencionado mais arriba.
(21) Não só não leram Friedman. Na realidade, não leram nenhum dos numerosos intelectuais orgânicos do imperialismo como Robert Kagan, Charles Krauthammer, Michael Ignatieff, Samuel Huntington, William Kristol, Norman Podhoretz y tantos outros, muitos deles reunidos em torno do projeto do Novo Século Americano e do qual a Administração Bush Jr. haveria de recrutar numerosos funcionários para ocupar cargos-chave na estrutura governamental como Richard Cheney, Paul Wolfowitz, Elliot Abrams, John R. Bolton, Donald Rumsfeld e muitos mais.
(22) Thomas L. Friedman, "Foreign Affairs; Techno-Nothings", In New York Times, 18 de abril de 1998.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Mantenham os esforços pelo desarmamento nuclear*



Sérgio Duarte- Tradução: Jeosafá Fernandez Gonçalves

Em 2005, Sérgio Duarte, alto representante das Nações Unidas para o desarmamento nuclear, presidiu a Conferência de Revisão do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP). Nesta entrevista concedida à revista francesa PAIX (Paz) ele faz uma análise sobre o futuro do desarmamento nuclear.

Revista Paix: As disposições tomadas pelos Estado Nucleares membros do TNP são suficientes para conduzir a um mundo sem armas nucleares?

Sérgio Duarte: A resposta é simples: Não. Suficiência é um termo abrangente que, por seu lado, exige, entre outros, o aporte de recursos e sustentação governamental importantes. Quando digo isso, refiro-me a criação de organizações governamentais com mandatos, recursos, tempo, aporte de legislação específico e uma responsabilidade pública para atingir esse objetivo. Parece haver uma lacuna entre os compromissos internacionais pelo desarmamento e os mecanismos locais para concretizá-los.
A esse déficit institucional, eu acrescentaria um déficit de inspiração. É possível atingir a esse objetivo de uma maneira confiável e certa. O desarmamento tem legitimidade para merecer um aporte público maciço e durável. Certamente mais do que a dispensa de vastos recursos em nome de armas cuja moralidade, legalidade e utilidade são amplamente questionáveis.
As armas nucleares não podem dissuadir ataques terroristas catastróficos, nem servir de maneira alguma como resposta a esses ataques. No entanto, sua perpetração gera novos tipos de riscos terroristas relativos à perda ou ao roubo de armas nucleares ou de matéria físsil. Os controles de segurança podem somente diminuir tais riscos, mas não participam efetivamente do esforço de desarmamento.
Revista Paix: Algumas dessas disposições distanciaram o mundo do objetivo do desarmamento nuclear?
Sérgio Duarte: Sim, há algumas disposições que são contrárias à causa do desarmamento. Eu incluiria entre elas as seguintes:
  • A articulação de programas de longo prazo para conservar ou incrementar os arsenais nucleares atuais, associada à ausência de programas operacionais para pôr em curso o desarmamento nuclear.
  • O desenvolvimento de novos tipos de sistemas de liberação de armas nucleares.
  • A promulgação de doutrinas nucleares que se reservam o direito de primeiro atacar, mesmo contra Estados não nucleares, ou que querem prevenir-se de um possível ataque de armas de destruição em massa ou mesmo convencionais.
  • A reafirmação de que a dissuasão nuclear é vital para a segurança nacional.
  • A rejeição de negociar ou de discutir as grandes linhas de uma convenção sobre as armas nucleares.
À luz disso tudo, a reivindicação de que os estoques nucleares são no “mínimo” necessários para manter a dissuasão não é confiável. Tanto mais quando ela oferece um modelo de postura de segurança nacional passível de ser imitada por outros países. A posição dos Estados Nucleares, que devem manter sua capacidade nuclear porque eles não sabem quais ameaças pairam sobre o futuro, poderia ser facilmente reivindicada por cada Estado que quisesse torna-se um Estado nuclear.
Revista Paix: Quais ações são necessárias agora e nos próximos anos para que um progresso importante sobre esse assunto tenha lugar.

Sérgio Duarte: Eu poderia citar atividades tais como o desenvolvimento de mecanismos reforçados de verificação (conforme os compromissos de desarmamento assumidos), a detecção rápida e certa de possíveis violações, a proteção face a uma reversibilidade das obrigações de desarmamento e a garantia da disponibilidade de meios alternativos (diplomáticos e militares) de defesa de interesses de uma segurança legítima sem emprego de armas nucleares.
É também importante para o público e para a comunidade mundial testemunhar progressos em matéria de desarmamento por meio de medidas transparentes que não impliquem em simples declarações nacionais unilaterais, mas que venham acompanhadas de detalhes suficientes para o mundo concluir que as armas não empregadas foram de fato desmontadas e destruídas.
Revista Paix: Como isso poderia ser feito?
Sérgio Duarte: Para melhorar tais disposições, a expressão importante é “vontade política”, a qual eu compreendo como uma sustentação política viável, sobretudo nos Estados Nucleares – incluindo-se um suporte oriundo da sociedade civil, dos legislativos, dos líderes nacionais, dos Estados Nucleares eles mesmos, e de outros atores relativos à comunidade diplomática mundial. Essa é uma das razões pela qual eu recebi com satisfação o plano Hoover*.
Em minhas primeiras observações, ofereci, em grandes linhas, algumas das responsabilidades que os Estados Nucleares devem assumir afim de que se atinja um progresso concreto em termos de desarmamento nuclear. Reconheço que esse progresso exigirá bem mais esforços paralelos no controle das armas nucleares que esforços novos par reduzir os riscos de proliferação e de terrorismo nuclear.
Mas não estou absolutamente de acordo em afirmar que esse progresso deveria restringir-se à solução anterior a todos esses problemas, nem que esse progresso espera a alvorada de uma paz mundial. O progresso em matéria de desarmamento criou sua própria contribuição independente para a paz e a segurança. E creio que essa contribuição tem sido amplamente subestimada.
A propósito do desencadeamento da I Guerra Mundial, Sir Edward Grey escreveu: “O enorme aumento das armas na Europa, o sentimento de insegurança e de medo causado por essas armas tornaram a guerra inevitável. A lição que o presente deveria extrair do passado no interesse de uma paz futura é a advertência lançada pelos que virão depois de nós”.
Hoje, somos testemunhas de um outro enorme aumento de armamento, com despesas militares ultrapassando o trilhão de dólares. É um extraordinário incremento no mundo pós Guerra Fria, totalmente oposto do objetivo fixado pelo artigo 26 da Carta das Nações Unidas: “favorecer o estabelecimento e a manutenção da paz e da segurança internacional não investindo em armamentos não mais que o mínimo de recursos humanos e econômicos do mundo”.
Embora o desarmamento nuclear não vá garantir por si só uma forte redução dessa despesa, isso ajudará a diminuir a vontade dos Estados de possuir tais armas, impulsionará os esforços de não-proliferação nuclear e de luta contra o terrorismo e reduzirá as ameaças e a desconfiança que têm inspirado a corrida armamentista.
Há quase cinqüenta anos, o Secretariado Geral das Nações Unidas adotava o objetivo de “desarmamento geral e completo” cujo objetivo é a eliminação de todas as armas de destruição em massa e a limitação das armas convencionais a níveis suficientes para manter a segurança nacional e as operações de manutenção da paz. Os Estados membros do TNP posicionaram-se concordaram, quando da Conferência de Revisão de 2000, que esse deve ser o objetivo último.
Embora o desarmamento nuclear devesse ser a mais urgente das prioridades, um esforço complementar e paralelo é também necessário para limitar a produção, o comércio e a utilização de armas convencionais. A proposição britânica por um tratado sobre o comércio de armas que, depois, passou a ser preconizada por grupos da sociedade civil, é um passo em boa direção.
Antes da assinatura do TNP pelo Reino Unido, Leonard Beaton declarava: “A maior incitação à ampla difusão dessas armas é a convicção de que é inevitável”. Hoje, eu gostaria de propor um corolário: “A maior incitação a uma ampla difusão dessas armas é a convicção de que o desarmamento não é atingível”. Eu creio ele é atingível graças à pressão da sociedade civil e à vontade política dos governos.
Assim, a todos os atores do desarmamento nuclear e da paz eu exorto a continuarem os esforços por fazer avançar o desarmamento nuclear. É uma causa digna que não deve ser sustentada somente por Estados Nucleares.
*Sobre o Plano Hoover acessar:http://www.un.org/News/fr-press/docs/2008/AGDSI3362.doc.htm
http://disarmament.un.org/update/index.html