segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Madadayo: A liberdade está na dor


Ser humanizado já foi mais dolorido


O século XX assistiu aperfeiçoarem-se meios de dominação social num grau de detalhamento antes suspeitado por poucos, entre eles alguns artistas ou intelectuais os quais, desde antes de meados do mesmo século, para desgosto de uns e ainda maior satisfação de outros, radicalizaram seus discursos – encarados como paranóias maníaco-persecutórias –, expondo com sarcasmo, por meio de seus discursos sombrios, àqueles que profetizavam o fim do mundo para um futuro iminente, a notícia aziaga: o Armagedon já chegou.

Do século XIX (quando formas explicitamente coercitivas e economicistas garantiram a vigência da ordem pela dominação exterior dos corpos) aos dias de hoje (quando meios cada vez mais simbólicos encurralam o indivíduo, seja lá o que isso for, a espaços cada vez mais confinados de sua própria agonia), a um exasperador aparato burocrático de controle social de massa somou-se a instauração e o aperfeiçoamento contínuos de mecanismos subjetivadores voltados à produção de multidões sem rosto, a serem encaminhadas ao abatedouro do mercado de consumo, e à produção de almas dóceis, que, quando bem sucedidas, mais não são de que unidades constituintes dessas mesmas faces ou máscaras coletivas indiferenciadas.

Articulados principalmente a partir do período pós-Segunda Guerra, processos horizontais e verticais, de ampliação de alcance e de aprofundamento de eficácia, de massificação e de individuação, créditos especiais aqui à sociologia e à psicologia, conformaram um maquinário de invenção de humanidades estandardizadas do qual não há quem escape sem receber de brinde um bilhete de ingresso no sistema prisional, no hospício ou no cemitério.

Até bem pouco tempo, quando promessas redentoras da modernidade embalavam uma noção de humano redimido pelo poder das máquinas, do útero ao túmulo, o sistema de previsibilidades condicionantes comportava lacunas consideráveis por meio das quais os imponderáveis se insinuavam e – e desde que não assimilados ou eliminados a tempo – perturbavam a homogeneidade apaziguadora.


No nível sócio-institucional, as realidades culturais, étnicas, nacionais, de classe, ou de grupo constituíam verdades confortáveis em cujo interior todos discerniam suas identidades e reconheciam seus papéis. No seio dessas verdades modernas o diferente, não pertencendo ao conjunto e sendo antes percebido nele como mácula, elemento estranho no contínuo indiferenciado, se vivia a desvantagem inerente a todo elemento dissonante, desfrutava igualmente da legitimidade de contestação de leis, normas e lógicas que o excluíam.


No nível individual, não havendo divisão nenhuma para além da pessoa, nem havendo dúvida nenhuma acerca dos gêneros, ficava a normalidade assegurada para os sãos tanto quanto as instituições de saúde e de correção para os doentes da mente, do espírito ou do comportamento. Essa lógica dual, de pertencimento necessário por identidade e exclusão sumária por diferenciação, é sem sombra de dúvidas cruel, todavia, sob seu império, os loucos ainda podiam ser loucos e os criminosos, criminosos.


Numa palavra, bons tempos aqueles em que o exército brancaleônico dos tortos, capengas e desafinados não tinha que submeter à lógica anticéptica do festim dos normais, civilizados e limpinhos, alhures chamado coro dos contentes.


Porém, as hecatombes políticas do século XX, com suas montanhas de cadáveres, e os sucessivos terremotos promovidos pelo desenvolvimento exponencial dos meios de comunicação, encimado agora pelas sucessivas revoluções tecnológicas – confirmadoras e refinadoras de sistemas de controle eficazes e sutis – reduziu essas lacunas e fendas, tão propícias à resistência, a dimensões tão estreitas que se torna impossível acusar esse processo sem reconhecer nele um totalitarismo ainda mais eficiente do que aqueles que vigoraram e ruíram no século XX.


Os elementos e comportamentos dissonantes, antes rejeitados pela modernidade como refugo do processo civilizatório, na pós-modernidade passaram a ser incorporados e acomodados em redes significativas globalizadas, não sem antes terem seu potencial de dano neutralizado e suas formas de expressão higienizadas, em prol da circulação ampla rápida e fácil pelos mercados do mundo.

Adeus às fendas, às fissuras, às rachaduras do sistema, que deixavam vazar ruídos e contestações ameaçadoras. Na pós-modernidade, Marx é boa literatura: que circule pois livremente, já que esvaziado de seus significados, pela banalização mesma da circulação frenética. Che Guevara é pop, tanto quanto o é o Papa, e desde que a reflexão crítica perdeu completamente o sentido, que figurem os retratos de ambos no mesmo emblema de motoclube, ou, caso do primeiro, em biquinis da Cia. Marítima. Bakhunin e Ravachol, moda de vestir e modo de se fazer notar, que sejam associados à calças de punks de butique, que já vêm rasgadas e com tintura a semelhar sujeira. Tróstky, convertido em profeta romântico malogrado, que divida espaço na mesma camiseta com uma estampa estilizada de Marilyn Monroe.


Não há hoje ideologia, etnia, nacionalidade, classe ou grupo cuja particularidade não se ofereça posmodernamente como oportunidade de negócio for global export. Não há transtorno psiquiátrico, contestação ou desajuste social que não seja explorado comercialmente pela indústria da saúde, do hambúrguer ou de Hollywood, ou por todas, em sociedade, ao mesmo tempo. Nem tampouco há drama econômico que a cosmética da miséria – como alguns críticos se referem a certa produção cinematográfica ou televisiva brasileira – não incorpore e traduza em termos de mercadoria simbólica de valor oscilante, a depender das relações de custo-benefício e de oferta-procura.


O mercado da assimilação do diverso na pós-modernidade encontra-se tão aquecido que têm faltado diferenças culturais, étnicas, nacionais, de classe e de grupos – tanto quanto tem havido escassez crescente de loucos e de criminosos genuínos – para abastecer a demanda crescente de anomalias, convertidas em matéria prima da bem sucedida indústria da normalização do corpo, da mente e do espírito.


Chegou-se a um tempo em que, para não ser abduzido pela indústria da normalidade, o diferente, o resistente, o doente precisam fazer-se de sãos; e em que o doido, para ser deixado em paz, só tem como alternativa limitar sua insanidade a espaços cada vez mais recônditos e ainda indevassados de sua intimidade. Superadas essas estratégias incômodas de resistência, serão todos, diferente, resistente, doente e doido, manipulados, revirados do avesso, vasculhados, entubados, dissolvidos e desintegrados até estarem aptos a se constituir insumo de beneficiamento, após o que serão reconconstituídos e “in-corporados”, segundo as mesmas lógicas de decretação de anormalidades, agora etiquetados com adjetivos bom-mocistas e politicamente corretos.


Porém, é forçoso reconhecer, essa indústria de reciclagem de corpos desviados e de almas tortas amplamente rentável é ainda prima pobre da outra, a da produção em escala de almas e corpos sãos. Cada vez mais especializada, a indústria de invenção da pós-modernidade tornou obsoleto um quase axioma da economia política marxista: o de que a força de trabalho, no império do capital, é explorada à exaustão e ao esgotamento do indivíduo.


Na pós-modernidade, o suporte do indivíduo, seu corpo, pode ter a sobrevida aumentada significativamente, seja pela de substituição de partes danificadas por próteses funcionais, seja pela administração de terapias eficientes contra a fadiga – chegará o tempo em que a imortalidade será a verdadeira maldição do indivíduo, que terá saudades do tempo em que suas forças simplesmente se esgotavam, e em que não havia necessidade de se solicitar licença judicial para morrer.


À sofisticação dos sistemas de produção e reciclagem de corpos e mentes defeituosos a serem normalizados, e ao aumento da durabilidade dos corpos sãos, some-se agora o expediente da invaginação de infinitos eus, das mais diversas constituições, num mesmo indivíduo e obtem-se a fórmula prodigiosa: a da possibilidade de reprodução eficiente e ilimitada dos sistemas de controle e governança de massas e de pessoas.


A indústria de produção de eus vai muito bem, obrigado, seja pela incutição a força ou consentidamente de novos eus em corpos naturais; seja pela articulação entre eus produzidos em série e corpos naturais melhorados por próteses funcionais ou plásticas; seja, não se está longe disso, pelo downloud de potentes eus em ciborgues; ou ainda pela manipulação do genoma humano, cujas fronteiras éticas se está a discutir, mas as quais, sabe-se de antemão, não freqüentam as preocupações dos laboratórios que, pelo mundo, combinam placidamente, na mesma equação, estruturas genéticas e dividendos de patentes.


A possibilidade de reprodução infinita dos sistemas de controle e governança de massas e pessoas por meio da assimilação monótona das trincas desses mesmos sistemas é uma hipótese cuja eficácia depende da neutralização de resistências no nível das intimidades e no nível coletivo. Porém, se algumas resistências são trincas previsíveis de fácil assimilação, outras são inesperadas e nutrem suas existências, muitas vezes efêmera, no caos. Por que, onde, quando, como, com que intermitência ocorrem essas fendas caóticas, não se pode saber.

Imaginemos: em algum ponto do espaço real, alguém sabe e não vai delatar, uma funcionária administrativa, sem razão aparente, vomita as invaginações do mundo, languidamente, convertendo seu corpo em texto artístico a emanar poemas, narrações e lampejos de arte musical tal qual os roedores de pelúcia de um certo conto de Cortázar.


Ainda, em algum momento imprevisível do particípio passado, do gerúndio ou dos futuros, entre o real e o inventado, zona de sombra que não deve ser iluminada, um artista plástico, empapuçado pela incutição de estereótipos humilhantes, assume a governança de suas ações, manda à merda uma porção de pesos mortos, e outro tanto de idiotas, e cai na pândega do Frenetic Dancing Days.


Indo além, de um modo não suspeitado, já no reino do inventado da caixa preta do cinema, um professor, tendo calculado os passos corretos e o pulo do gato para se livrar com proveito da sala de aula, derrapa, se desequilibra, descamba, perde a governança de si e se envilece por um gato ingrato, ingovernável, ignorante dos sistemas humanos de controle de almas de gatos.


Por alguma razão que não repousa no campo das normalidades, retalhos de reminiscências podem emitir música, lógicas herméticas podem redundar em non sense, regimes sanguinários podem tornar-se galhofa, o eu pode não estar em mim, mas para lá de Marraqueche.


Para o bem ou para o mal, ou para ambos ao mesmo tempo, o caótico pode operar, e isso pode ser muito significativo, ou pode não ter importância nenhuma. E aqui se insinua uma fenda de difícil assimilação, mesmo para uma pós-modernidade afeita à bricolagem: como prever, assimilar e calar o caos?


Se há resistência, é sem anestesia: Madadayo


Se os métodos e mecanismos de incutição, invaginação, controle e governança de almas se vão tornando mais e mais sistemáticos e indolores, o mesmo não se pode dizer das estratégias de resistência do si, o tempo todo e em todo lugar, por dentro e por fora abduzido, acossado, afirmado, amputado, apodrecido, azarado, bisbilhotado, bolinado, bulido,cadastrado, cagado, carimbado, chacoalhado, clonado, coisado, comido, comprado, comprimido, confinado, costurado, currado, cuspido, danado, debulhado, diagnosticado, digerido, digitalizado, dissecado, dissolvido, emparedado, enchido, encurralado, engordado, esfregado, esmurrado, esticado, esvaziado, examinado, fichado, filmado, fodido, fotografado, fuçado, garroteado, grampeado, iludido, invaginado, investigado, lacerado, lipoaspirado, ludibriado, mamado, manipulado, mapeado, matado, morrido, negado, ocupado, odiado, otimizado, padronizado, perfurado, pifado, purgado, quarado, queimado, ralado, rasgado, reconstituído, registrado, rejeitado, revirado, revolvido, sapecado, sodomizado, sujeitado, sumido, taxado, torcido, triturado, tumultuado, tunado, ulcerado, ultrajado, usado, vendido, viciado, volatilizado, xerocado, zoado não necessariamente em ordem alfabética.


Nas estratégias de resistência do si a dor é inevitável e necessária, tanto quanto a “sistemática” é “o” inimigo a ser destruído pelo caos, produtor de colapsos germinantes, único, muitas vezes, em condições de devolver a iniciativa e a governança das ações do si sobre o si ao próprio si.
É impossível ao si dobrar-se sobre si mesmo e converter ações alheias em ações próprias sobre si e sobre os outros sem causar colapsos de variáveis magnitudes em seu próprio interior e no entorno. Assenhorear-se das próprias ações sobre si e sobre outros é inverter fluxos de pressões simbólicas e sociais potentíssimos, o que não se faz sem deflagração de crises ainda maiores, de conseqüências imprevisíveis e que abrigam em seus movimentos destrutivos ondas de variados graus de potência aniquiladora, às quais muitos chamam “dor”.


Quando no início do filme Madadayo o professor de literatura alemã Uchida Hyakken, protagonista da história, ingressa na sala de aula, o ano é de 1943, e instaura um falso diálogo com seus alunos por meio de chistes e ironias, dá um passo decisivo para retomar um certo controle de sua vida que o papel social de docente, nota-se pela tensão entre seu discurso e o de seus futuros ex-alunos, seqüestrou.


Diz ele que renunciará à docência, após décadas de trabalho, porque a venda de seus livros lhe propiciam agora uma renda suficiente para dedicar-se à atividade literária. Trata-se, pois, não de uma aposentadoria, mecanismo pelo qual o sistema produtivo, de forma “indolor”, expele de si o dejeto restante da extração das energias do indivíduo, mas o contrário: um ser que, ainda de posse de muito de suas energias, expele de seu corpo um eu que o colonizava, e rejeita um papel social determinado de fora para dentro.


A segurança demonstrada pelo professor durante a conversa irônica e afetiva com os futuros ex-alunos faz crer que se trata de uma decisão segura, pensada, definitiva, cujas conseqüências e riscos já foram pesados, ajuizados e assumidos. Porém, da cena bem enquadrada e da conversa que inicia o filme, o diretor Akira Kurosawa deixa vazar, pelos enunciados prenhes de ambigüidade, que “juízo”, de um ponto de vista “normal”, não é uma das maiores preocupações do professor, a começar pelo desprezo às convenções em vias de serem vomitadas.
Esse desprezo ganha forma hilária quando o professor, corpo e fala convertidos em textos plenos de expressividade, elabora uma completa paródia do comportamento autoritário vigente na hierarquia institucional.


O discurso caricato sobre a dificuldade de ingressar na sala de aula para lecionar tendo-se antes que vencer o sedicioso apelo do tabaco, o que o faz atrasar-se, alinhava ironia e sarcasmo para coser uma falsa repreensão aos alunos pelo uso de cigarro em sala de aula. Tudo isso enquanto uma deliciosa, translúcida e lenta nuvem de fumaça flutua entre o professor e a turma, atravessando a tela da esquerda para a direita, para deleite do expectador.


Porém, não se despreza um papel social, nem se vomita um eu de modo impune. Principalmente quando esses entes são expressão de acordos sociais que conferem prestígio e segurança: ser professor em uma sociedade que reverencia essa figura e lecionar literatura alemã quando os ventos sopram para os lados da Germânia não são pouca coisa.


Ocorre que, à vida de escritor, desde sempre tendente ao caos, como todos o bem sabem, soma-se o colapso final da Alemanha nazista e o bombardeio da cidade pelas tropas dos EUA. Noutras palavras, à caótica opção de Uchida Hyakken pela carreira de autor acresce a agora caótica opção do Japão pela adesão ao Eixo.


As grandes catástrofes humanitárias são mães de tragédias identitárias em massa, porém, em Madadayo ficam de fora do quadro as demais vividas pelo Japão mercê das opções que fez. Em foco permanece a de Uchida Hyakken, que, talvez para sua maldição, talvez para sua redenção, continuará a ser tratado por professor até o final da película, vítima do afeto salvacionista e invaginatório de seus eternos devedores, que, a um só tempo, fazem o bem e o mal ao objeto de seu apreço.


Os livros de literatura alemã param de vender, a casa de Uchida Hyakken é bombardeada, ele passa a habitar com a esposa um cubículo entre ruínas mas, aparentemente, o professor continua o mesmo, irônico, sarcástico, sem juízo, solidário, fraterno, solícito para com os ex-alunos.
Posteriormente, a invasão americana propicia alguma organização, os livros voltam a vender, segundos os ex-alunos, que se cotizam e propiciam ao mestre e à sua esposa uma casa digna. Despido da função de professor, Uchida Hyakken continua a gozar da majestade, que a comunidade, numa invaginação permanente, não aceita que seja extinta – afinal, quem é esse professor para achar que pode deixar de ser professor? Tudo se normaliza, até que o caos, agora na forma de gato, se insinua pelo buraco da cerca da casa do professor a procura de comida.
A esposa de Uchida Hyakken dá comida ao bichano que não está ali para outra coisa. Depois, organiza um aposento para o bichano. O ex-professor impõe-lhe um nome, Nora, e um afeto excessivamente humano para que não dê com os burros n’água.


O gato, que tem suas próprias gatitudes e gatimanhas, que não sabe que tem nome e menos ainda que o estão invaginando com humanidades interesseiras em dividendos de afetos felinos, dá o pinote, some ou simplesmente é roubado.


O caos trouxe o gato, caos levou o gato.


Nenhuma lógica empregada pelo ex-professor, por sua esposa ou pelos ex-alunos surte efeito. E o ex-professor se desconstrói, se estiola, se envilece, adoece da emoção, periclita do espirito, deleixa do corpo.


Adeus ironia inventada como estratégia de resistência, adeus sarcasmo como arma de ataque, adeus humor, adeus força moral, adeus valores, adeus cuidados com a barba, adeus cuidados com o corpo, artifícios de um eu inventado pelo si Uchida Hyakken para revidar às incutições do mundo.


A possibilidade de falência geral do ex-professor preocupa os ex-alunos, que o continuam a tratar por professor, para continuarem a gozar da identidade de alunos, da qual também não conseguem se livrar, nem querem.


Porém, a arte é o reino do arbitrário fingido: se o caos pôde trazer gaoticamente um gato por um buraco de cerca e o levá-lo sabe-se lá por que outro, pode então introduzir pela mesma fenda um outro gato, irônica paródia do primeiro.


Se a cor do pêlo não coincide, se esse novo bichano não vai dar no pinote, sumir ou ser roubado como o primeiro, ou se ele vai ganhar um nome que sequer a esposa consegue pronunciar corretamente, não interessa: o efeito cômico foi conquistado e a saúde física, psíquica, moral, espiritual do ex-professor está preservada, não por suas estratégias, mas pelo acaso – muito embora aqui se trate de um acaso inventado pelo diretor do filme.


Mergulhados literalmente de corpo e alma numa relação simultaneamente comovente e perniciosa, de dependência e de solidariedade, de solenidade e de galhofa, de respeito e de invasão, de gratidão e de inadimplência moral eterna, de reverência e de subserviência, os eus envolvidos retomam a normalidade de uma convivência muito particular, que os faz feliz e que os faz existir enquanto comunidade específica, empenhada com todas as forças em se preservar no tempo o quanto possa, com todas as vantagens e vicissitudes inerentes a essa opção pela permanência numa comunhão em cujos membros podem falar de coração para coração porque concordaram tacitamente em invadir e em se deixarem invadir simbolicamente pelo outro, como também assentiram em agir sobre a ação do outro, consentindo com a ação do outro sobre a suas próprias ações.


A ritualização paródica dessa relação nas festas de anos do ex-professor elide o conjunto de penetrações simbólicas do qual Uchida Hyakken é destino mas também origem.


Ele, que a um determinado momento só desejou deixar a sala de aula para se realizar enquanto escritor, consente, sem qualquer resistência, ocupar papel central em um compromisso, a repetir-se ano após ano, no qual terá de ingerir uma enorme taça de cerveja após o que responder à pergunta: “Madakai?” – Está pronto (para morrer)? A resposta à pergunta ritualística-irônica, até o fim será: “Madadayo” – Ainda não.


Os únicos espaços de tempo representados entre a primeira celebração-simulacro, quando do 60o. ano de idade de Uchida Hyakken, e a que encerra o filme, quando o protagonista, alquebrado pelos anos, reafirma sua disposição de nunca estar pronto para a morte, são aqueles imediatamente sucedâneos à sua renúncia ao cargo de professor de literatura alemã, que enfeixam as dificuldades econômicas resultantes de usa opção, a perda da casa por bombardeio, a conquista da casa nova auxiliada pelos ex-alunos e pela regularização do pagamento dos direitos autorais (o que poder ser uma mentira generosa dos pupilos) e a crise do gato Nora e a reequilibração do si. Tudo mais, entre a conclusão dessa crise e a celebração do 77o. do ex-professor some da tela.


Ao que tudo indica, Uchida Hyakken obteve sucesso na opção extremamente dolorosa que fez pois, ao final da película, é retratado como intelectual digno e sem maiores transtornos materiais, o que faz supor êxito na carreira de autor.
Akira Kurosawa, arbitrariamente decepa o meio do processo residente nesse lapso, apresentando ao público o início e o talvez fim, já que a cena final é prenhe de sugestões conclusivas, quer no que tange à diegese fílmica, quer no que tange às possíveis extrapolações que o simbolismo inerente à ela propicia.


Na sala, os ex-alunos, inconseqüente alegres, seguem a lição do mestre, sorvendo do álcool numa irreverência assumidamente postiça, convertida em estratégia de resistência de grupo. A esposa é tirada de cena pelo diretor para não atrapalhar.


Na liteira, o corpo do ex-professor, alquebrado mas também embriagado, talvez adormecido, talvez morto, mostra-se sereno. Em sonho maravilhoso, de céu cambiante e de tons extasiantes, Uchida Hyakken se vê comoventemente menino brincando de esconde-esconde em montes de feno com amigos de infância. Os amigos perguntam se ele está pronto para ser procurado (em nossa brincadeira por estes lados brasileiros do ocidente dizemos: “Pode ir”?):


- Madakai?


O menino carequinha, entre montes de feno, procurando o melhor esconderijo responde:


- Madadayo!


Uma fenda rasa e algo escura no capim seco se insinua, o menino a penetra e começa a se cobrir de mato seco. Já quase todo envolvido pelo feno, se deixa surpreender pelo céu onírico, os olhos penetrados de tons perturbadores.


Tomado pela emoção e governado pelas cores impressionantes, talvez impressionistas fosse o melhor termo, renuncia ao esconderijo e penetra a atmosfera acolhedora sob um céu de tons e sobretons quentes, que ameaçam turvar-se, mas que não se turvam. Madadayo: ele ainda não está pronto.

Dói, mas isso é tão ruim assim?


As estratégias do ex-professor para assumir o máximo controle de suas próprias ações, e por conseguinte de sua própria vida, tem eco em uma gama considerável de intelectuais cujas obras fecundaram o século XX com a fogueira inconveniente do descontentamento. Face a face com regimes totalitários, o motor de suas reflexões e de suas ousadias repousou muitas vezes apenas na fé intelectual de que a batalha contra o sufocamento das liberdades tinha de ser vencida de dentro para fora, a partir do principal campo de disputa: o corpo e a intimidade de cada um.
Em seu Os frutos da terra, na tradução para o português, André Gide trata dessa batalha plena de crises identitiárias e de riscos de diluição :


"Há proveito a se tirar tanto dos desejos quanto da saciedade deles, porque esta só faz aumentar aqueles. Por isso, em verdade vos digo, Natanael, cada desejo me enriquece mais do que a posse sempre enganosa do objeto de meu desejo.


Não falo da simpatia, Natanael : falo do amor.


Por tantas coisas deliciosas, Natanael, usei-me do amor. O explendor delas advinha de eu arder incessantemente por elas. Não tinha como me entediar. Toda fogueira me era um exaustão amorosa, deliciosa exaustão.


Herético entre os heréticos, todo o sempre me atraíram as opiniões contundentes, os arriscados atalhos do pensamento, as divergências. Cada espírito não me interessava, salvo por aquilo em que se diferenciava de outros. Cheguei a explusar de mim a simpatia, não reconhecendo nela senão uma emoção barata. - Não falo da simpatia, Natanael, falo do amor.


É preciso agir sem julgar se a ação é boa ou má. É preciso amar sem se importar se isso é o bem ou o malNatanael, eu vou te ensinar o que é a fogueira.


É peferível, Natanael, uma existência patética à tranquilidade. Não quero outro descanso além do sono da morte. Tenho horror de que toda ânsia, toda potência que eu não tenha exaurido durante minha vida, pela razão mesma de terem restado vivas, me atormentem. Eu ‘espero’, depois de ter exprimido sobre esta terra tudo que havia dentro de mim, satisfeito, morrer completamente ‘des-esperado’.


Não falo da simpatia, Natanael, falo do amor. Tu sabes muito bem que não são as mesmas coisas. É por medo de uma perda amorosa que às vezes eu simpatizei com a tristeza, com os aborrecimentos, com as dores difíceis de agüentar de outra maneira. – Deixe a cada um o direito de cuidar de sua vida.

Ao ousar abandonar o magistério, exercido com paixão e risco por décadas, o ex-professor não faz outra coisa senão atirar-se a outra paixão, não por simpatia – o que envolve um distanciamento em que é indisfarçável a presença do interesse sobriamente calculado – mas por amor, esse sentimento povoado de caos.


Se isso dará ou não certo, não é a questão. A questão é que uma profissão exercida com paixão e cuja temperatura vai distando do pondo de fervura será desalojada da intimidade em favor não de uma emoção barata, mas de uma aventura ardente, certa de riscos e que potencialmente pode incinerar Uchida Hyakken até que ele se torne poeira.


A frustração imediata que se segue à opção de assumir a carreira autoral pouco quer dizer, porque para o ex-professor, mais importante do que largar a muleta da docência e viver efetivamente dos livros é o desejo de ser escritor, que não morre com o colapso do Japão bombardeado, nem com o sumiço do gato, nem com os anos que pesam sobre seu corpo como uma maldição.


O que importa é ser fogueira, é arder, é estar vivo para o que o faz viver."
O ex-professor ama, não simpatiza, o que faz, e só o faz enquanto ama. Lecionando ou garatujando seus papéis, ama “o que” e “os que” escolhe amar, seja ante os alunos cheios de suas, deles, próprias invaginações, seja ante a folha de papel em branco a espera das letras; ama seja a esposa, sejam os alunos, sejam os gatos, sem se preocupar se isso o levará a um cubículo bombardeado pelas tropas americanas ou ao hospício.


E se flertou com a tristeza, com os aborrecimentos e com a dor, foi pelo medo da perda ou em conseqüência dela, não pelo medo de arder na fogueira do sincero amor por si e pelo outro.


O poder de convencimento dos discursos de Uchida Hyakken não vem de sua condição de tutor de almas, função institucional que ele rejeita mesmo antes de decidir renunciar à cátedra – daí a afeição dos alunos pelo professor ‘desajuizado’. A eficácia de seus enunciados ambíguos reside na heresia de, a partir do locus privilegiado que ocupa na instituição, proferir uma missa que se autodenuncia como postiça, que flerta com a bufonaria e que em português do dia-a-dia poderíamos chamar, de coração alegre, de uma ardilosa e santa avacalhação da academia.


Arlequim a contrabandear opiniões ácidas, idéias ferinas e comportamentos erráticos sob a roupagem insuspeitável de professor ilustrado, Uchida Hyakken, filósofo- palhaço, aos 60 anos, prefere a vida patética de escritor na corda bamba à modorra da academia que ele só não rejeitara antes por profundo amor, não simpatia, a seus alunos, perfeitos desajustados a renderem preito à literatura alemã na terra dos samurais.


Preferiu e segue confirmando a escolha até a cena final, quando não se dá por totalmente exprimido sobre a terra nem “des-esperado”, nas palavras de Gide, já que em sonho os matizes do céu onírico o encantam, penetram e inundam em abundância e, à sala, seus ex-alunos o aguardam entre risos alcoólicos e tragos sorvidos com imenso prazer.


Em mais de duas horas de filme, assiste-se a um respeitável professor despir-se das convenções inerentes ao papel social a que se sujeitou por décadas, expor-se ao ridículo diante de seus alunos, cambalear com eles no álcool, rastejar na sarjeta moral, descuidar do próprio corpo, deixar-se amparar como um trapo humano e se reconstituir a partir das próprias energias emocionais, morais, intelectuais e físicas perfuradas, penetradas e invadidas pelo amor dos outros.


A metáfora da cena final é de uma força perturbadora: Uchida Hyakken, untado por dentro de um banho maravilhoso de cores, volta em sonho a ser menino, depois de se dissolver ardendo, se recompor doendo e acolher em seu corpo todos os efeitos, lanhuras e fissuras inescapáveis no roteiro de quem ousa a liberdade, entendida aqui como luta por domínio e posse das próprias ações de si sobre si mesmo e sobre o próprio corpo – tanto quanto isso é factível, se é que isso é mesmo factível.


A trajetória do protagonista de Madadayo faz compreender porque muito da filosofia e da poesia contemporânea não aceita a liberdade dissociada da do mal-estar, da angústia e do sofrimento: Quem quer passar pelo Bojador, tem que passar além da dor, ensina Pessoa.


Impossível, no ponto a que chegou este ensaio, não fechar os olhos e não ouvir, lá do escuro fundo da memória, a voz roufenha de Ângela Rorô a embalar estas palavras finais:


“Deixa eu penar, liberdade está na dor”.


BIBLIOGRAFIA

Bauman, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2005.

Dreifus, H; Rabinow, P. Michel Foucault, uma trajetória filosófica. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995.
Gide, André. Les nourritures terrestres. Paris. Librairie Gallimard, 1939.


Hall, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A, 2003.

Rago, M.; Orlandi, L. B.; Veiga-Neto, A. (orgs.). Imagens de Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro, DP&A, 2002.

Silva, T. T. (org.) Liberdades reguladas. Petrópolis, Vozes, 1998.

MADADAYO

Título Original: Madadayo.

País de Origem: Japão.
Ano: 1993.
Duração: 134min.
Diretor: Akira Kurosawa.
Elenco: Hisashi Igawa, Kyôko Kagawa , Tatsuo Matsumura, George Tokoro.
Colorido.

quinta-feira, 20 de março de 2008

Beto, Bia e Abelardo - Ciclo 1: O mundo visto pelo olhar de Beto

Orientações iniciais: desenvolvendo habilidades de leitura e discutindo valores

O projeto Beto, Bia e Abelardo procura vincular a leitura em língua portuguesa à necessária e atual discussão sobre valores. Articula deliberadamente competências e habilidades lingüísticas e literárias à reflexão sobre conteúdos culturais, morais, éticos, científicos, artísticos entre outros. Parte da constatação de que nenhuma eduação é isenta, de que toda verdadeira ação de leitura é um mergulho em profundidade na sociedade, no íntimo do indivíduo e no coração do conhecimento, e de que todos estamos, o tempo todo, constituindo ou rejeitando, assumindo ou criticando valores, consicente ou inconscientemente.
O que é ser "bem-educado"? Aceitar passivamente os berros dos adultos ou dos mais fortes? Devolver com grito o grito e com violência a violência? O que é ler bem? Seria repetir, muitas vezes com as mesmas palavras, o que os superiores exigem, sem nada criar ou contestar? E o que seria "uma pessoa moral"? Aquela que elege valores de sua religião, de seu grupo social, ou unicamente seus, para os impor, a todo custo e meio aos demais?


Viver numa sociedade tão dinâmica, num mundo tão complexo, numa época tão cheia de guerras e violências impõe a quem deseja justiça, respeito aos direitos humanos e ao meio-ambiente atitude positiva: é preciso entender o mundo, é preciso entender o outro, é preciso que cada um entenda a si próprio e lute por mudanças solidárias, em relação ao hoje e em relação às gerações futuras, que têm direito de receber um planeta e um vida decentes. Noutras palavras: é preciso saber para mudar, mas não há saber sem boa leitura e bons leitores, de textos e de mundos.
Traduzo assim as intenções e expectativas de Beto, Bia e Abelardo: ler para gostar, ler para saber, ler para mudar solidariamente o mundo.


Linguagem oral

Explorar possibilidades de leitura oral a partir de dialetos (falares regionais: caipira, do nordeste, gaúcho, entre outros) e socioletos (falares de grupos sociais: jovem urbano, idosos, mulheres, jargões profissionais etc.). Buscar múltiplas e variadas locuções interpretadas, articulando modulação de voz, ritmos, timbres, tonalidades, volume, velocidade (não há uma certa, mas muitas possíveis, desde que atinjam o objetivo de fisgar o leitor). No caso da criança alfabetizada e letrada, dar oportunidade para que ela execute a leitura, de trechos ou de histórias completas, desde que ela assim deseje. Aproveitar interferências durante a leitura para elucidar dúvidas. Interromper a leitura somente se a criança solicitar, e explicar somente o que ela solicitou (nas atividades de pré-leitura e de pós-leitura o professor poderá destacar o que julgar necessário, seja com relação à linguagem, seja com relação a valores em questão). A leitura pode ser feita sem interrupções ou pode sofrer pausas, sempre a depender da solicitação da criança. No primeiro caso, é necessário discutir questões de linguagem e de conteúdo com as crianças ao final. Cada sessão de leitura não deve ultrapassar 50 minutos.

Tanto a pré quanto a pós leitura pode ser realizada imediatamente à leitura ou em momentos outros, mas sempre na mesma semana.


Linguagem escrita

Orientar a criança sobre a organização do livro, os significados e sentidos das imagens e das cores de capa e de início e final de episódio. Não esquecer dados técnicos: título da obra, títulos dos episódios, autor do texto e autores das imagens etc. Explorar com a criança as diferenças entre texto oral e texto escrito. Alertar a criança que o texto tem obstáculos propositais, que elas podem superar com ajuda do professor ou dos pais (questões de vocabulário, de palavras de uso regional, pontuação, acentuação, pronúncia a partir do registro escrito, de recursos poéticos tais como rimas, aliterações e cadências etc.). Há vários jogos de linguagem no livro. Numa das histórias, há a explicitação de que há no livro, além do bem-te-vi, gralhas. Aqui, gralha é o nome que se dá para anomalias do registro escrito no texto impresso. No trabalho com o texto escrito, a criança deve ser estimulada a encontrar as gralhas presentes no texto. Nisso ela pode ser ajudada pelos pais em casa (é conveniente que os pais leiam em casa a história da semana e ajudem a criança a superar as dificuldades textuais e a apontar as gralhas presentes apenas na história da semana). Esse jogo chama-se Caça às gralhas. Mais à frente esse jogo estará amarrado a duas personagens do Ciclo 2 - O mundo visto pelo olhar de Bia. As atividades de pré e de pós-leitura não devem ser amarradas à produção escrita. Algumas vezes isso é desejável, mas não deve predominar. Ciranda de roda, produção de desenhos e pinturas, jogos e brincadeiras podem muito bem ser mobilizados para sensibilizar a criança (pré-leitura) e para concluir significativamente o trabalho com cada episódio (pós-leitura). Em ambos os casos a criação e a produção imaginativa da criança devem ter lugar. Devem ser descartadas todas as práticas de reprodução, bem com aquelas que não possam ser compreendidas claramente e aceitas voluntariamente pelas crianças. Convém discutir as noções de “certo” e “errado”, comparando-se a linguagem oral e a escrita.

Valores éticos, morais, sociais, científicos, afetivos entre outros

O projeto Beto, Bia e Abelardo articula competências e habilidades de leitura com o debate sobre constituição de valores. Que valores a mídia, a família e a escola estão constituindo e transmitindo às nossas crianças? Nós concordamos com tudo que chega a nossos filhos ou não? Pais e educadores podem intervir na formação de valores de seus filhos e alunos?

Estas questões e outras da mesma natureza permeiam cada um dos 10 episódios de Beto, Bia e Abelardo. Há violência contra a mulher no seio da família? Há manifestações de machismo? Há intolerância contra as diferenças? Há respeito ao meio-ambiente? A criança é exposta a risco pelos adultos? O desemprego e as dificuldades econômicas afetam as relações do casal e deste com os filhos? O pano de fundo dessas histórias são quatro importantes documentos contemporâneos, que devem ser explorados nas atividades pré e pós leitura, bem como nos debates e explicações para as crianças: Declaração Universal dos Direitos Humanos, Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, Estatuto da Criança e do Adolescente, Estatuto do Idoso. Nas atividades de pré e de pós-leitura, bem como nos debates e explicações às crianças, devem ser propostos problemas éticos e morais que elas devem responder com auxílio dos colegas e dos pais: Qual o papel dos adultos em relação à proteção à criança? Que relações têm as fábulas infantis com os riscos que as crianças sofrem hoje, em meio a uma sociedade consumista, muito injusta e particularmente violenta contra os mais fracos? Como a criança pode evitar situações de risco? Quais são as situações potencialmente de risco para crianças? Devemos ou não proteger os idosos? Que idéias e valores os desenhos e programas infantis veiculam e estimulam nas crianças? O certo é ser solidário ou levar vantagem em tudo? O certo é passar a rasteira no colega ou se associar a ele para vencer dificuldades. Como posso, enquanto criança, tornar minha família, minha rua, minha escola, meu bairro, o mundo melhores? Quando é que eu, enquanto criança, passo dos limites? O que são limites? Posso ser espancado porque passei dos limites? O que são direitos, o que são deveres? O que é liberdade, o que é abuso?

Essas e outras questões devem ter destaque no trabalho desenvolvido pelo projeto. Disponibilizar para as crianças e para suas famílias os documentos citados é necessário.

As atividades de pré, pós e mesmo as de leitura podem ser realizadas com presença de familiares e membros da comunidade, desde que devidamente planejadas, de modo que o foco seja mantido sempre nas crianças participantes do projeto: pais e comunidade têm lugar importante, auxiliando e co-participando, mas não devem tomar o lugar das crianças.

Orientação geral: Realizar apontamentos durante as atividades.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Educação e Direitos Humanos

Diversidade e complexidade
 Muitas correntes teóricas e filosóficas no campo da pedagogia, algumas das quais em momentos específicos tornaram-se dominantes, enfatizaram o papel homogeneizador da educação, estabelecendo um sinal de igualdade entre coesão social e harmonia por meio do aplacamento das diversidades sociais.

Não foram nem são poucos, entretanto, os educadores a desconfiar dessa missão “homogeneizadora” e críticos dos mecanismos explícitos ou velados dessa “harmonia”, cujo ingrediente e fermento é a “disciplina”, no mais das vezes entendida como instrumento coercitivo, de mão única e de cima para baixo.

Eleita como objetivo final, a padronização de comportamentos põe a escola na difícil posição de instituição voltada para o esmaecimento das diversidades individuais e de grupos. A lógica por trás desse processo de aniquilamento de diferenças e eleição de igualdades redundantes é a de que as particularidades constituem desvios perniciosos cujo sufocamento contribui para o desenvolvimento cognitivo e moral dos indivíduos.

Estamos aqui no âmbito de um pensamento reducionista e monológico que, embora predomine no conjunto do sistema educacional, é incapaz de responder à realidade complexa dos dias atuais, na qual a escola está mergulhada e à qual não pode dar as costas sem pôr em risco sua própria existência enquanto instituição.

A suposta missão homogeneizadora da escola resvala invariavelmente para a standartização, para a padronização de comportamentos, condutas, processos, objetivos, linguagens, e se o emprego do uniforme escolar é elemento dessa lógica, está longe de ser o vilão de todo esse processo, embora sejamos tentados muitas vezes a elegê-lo como tal (a verdade é que o uniforme não é nem bom nem mau, mas está intimamente ligado à filosofia e ao projeto da instituição escolar, podendo refletir lógicas autoritárias ou democráticas).

De um ponto de vista conservador, que é o predominante hoje, a homogeneização, eleitos objetivos de ensino-aprendizagem de longo prazo, visa estabelecer linhas de exclusão de desempenho e de conduta escolares, para aquém das quais tudo é aceitável, desde que confirme a homogeneização, e para além das quais todo diferente é rejeitado e estigmatizado, desde uma simples nota de prova até um comportamento tido como inaceitável de um ponto de vista tido como absoluto.

A dificuldade de a escola trabalhar com o diferente evidencia-se por toda parte, e chega a ser constrangedora quando esbarra na legislação, que, por modernizar-se nos últimos anos, exige mecanismos de inclusão frente aos quais a instituição escolar mostra-se despreparada, perplexa, insuficiente e supreendentemente resistente.

Exemplo disso é a exigência de acessibilidade para deficientes físicos, em relação à qual sequer as escolas públicas brasileiras se pronunciaram efetivamente – e o prazo para adaptação arquitetônica expirou recentemente. Exemplo disso é também é a lei que institui o ensino de conteúdos de cultura africana e de afrodescendência no Ensino Básico, que no Estado de São Paulo necessitou de ação Ministério Público para chegar ao planejamento escolar – sob a ameça de punição aos gestores das unidades públicas e privadas, que sequer se tinham inteirado da lei – no Brasil, ao que parece, e estranhamente, a lei tem estado na vanguarda das transformações.

A harmonia, numa escola homogeneizadora, avessa à diversidade, precisa a todo custo ser alcançada. Isso porque qualquer desempenho aquém do esperado e qualquer comportamento identificado como desviante, no âmbito escolar, se afigura como ruído indesejado e elo defeituoso da cadeia linear de reprodução do saber.

Numa tal perspectiva, o diferente, seja de que natureza for, é aberração, anomalia e mácula do processo de ensino-aprendizagem a conspurcar, quando, de um ponto de vista mais problematizador é, sem sombra de dúvidas, elemento perturbador de uma paz estéril, a colocar em pânico o “coro dos contentes”, a evidenciar o quanto é estranha a própria existência de um continuum indiferenciado numa realidade altamente heterogênea.

Para legitimar essa missão homogeneizadora, cujo veículo é a harmonia conquistada a golpes de Regimento Interno e de ferramentas de “apoio” educacional reunidas sob o termo “disciplina”, a escola avessa à diversidade fantasia a possibilidade de se estabelecer como locus paradisíaco imune a conflitos e como instituição formadora de inteligência e moral, quando, ao rejeitar o diverso, na realidade, o que faz é reproduzir saberes, que só lhe chegam com anos de atraso, recalcar potencialidades no nascedouro, desperdiçar criatividades latentes e virar as costas com desprezo para o saber e a emoção que cada um traz dentro de si quando cruza o portão de entrada escolar.

As lógicas que regeram instituições, entre as quais a escola, durante os séculos XIX e XX foram invariavelmente hierárquicas e homogeneizadoras. Porém, se já para esses séculos essas lógicas revelaram suas insuficiências, que dizer de um mundo que busca a todo tempo articulações comunitárias em rede?

Em lógicas hierárquicas e homogeneizadoras, o elemento perde sua autonomia ao ingressar no conjunto, bem como sua existência para o – e no – conjunto só está garantida desde que a lógica da subordinação seja rigorosamente aceita e seguida. Noutras palavras, estão consubstanciadas fantasias ideológicas de mimetismos sociais, e abolidos por decreto conflitos incontornáveis, encarados no âmbito dessas lógicas como vícios a serem sanados.

Ora, desde que o conflito é inerente ao próprio sujeito, e sendo impossível que não haja conflitos de todas as naturezas, ordens e grandezas no interior de um grupo social, a negação dos conflitos é a própria negação dos grupos sociais e, em última instância, dos próprios sujeitos.

Se adotar um ponto de vista complexo para tratar da realidade igualmente complexa que a circunda e penetra, não resta outra coisa para a escola a fazer a não ser assumir a natureza conflituosa do processo de ensino-aprendizagem e acolher a diversidade em seu interior como elemento fecundante.

Isso não apenas no que tange a objetivos estritamente cognitivos, pois crianças e jovens não abandonam seu corpo físico em casa para ingressar nas dependências escolares – tampouco é possível que para atravessar o portão da escola se livrem de seu corpo psíquico, em que emoções e pensamentos borbulham e fervem ao menor estímulo, e menos ainda é provável que se demitam de seus grupos sociais a cada toque do sinal para entrada na sala de aula.

Sem dúvidas que, para uma instituição que lida muitas vezes com milhares de indivíduos, torna-se difícil encarar as muitas e complexas realidades que a compõem. Sem dúvidas que um corte reto, para além do qual ficam excluídas ou anuladas todas as diferenças, possibilita um processo de massa, em série, em escala, barato em muitos aspectos e eficaz em outros.
Porém, nesse instante não se está falando de escola, mas de fábrica, nos moldes dos séculos XIX e XX, com a qual a escola foi e ainda hoje majoritariamente é confundida.

No âmbito dessa confusão, diretores e superiores hierárquicos são elementos controladores de um processo baseado na reprodução a partir de modelos, professores são operários condicionados a certas ações (as aulas) propiciadas por ferramentas (as disciplinas ou “matérias”) com o objetivo de modelar a matéria prima (os alunos), que, ao cabo de um certo tempo, estão prontos para abastecer as prateleiras do mercado de trabalho. A metáfora da fábrica de salsichas já foi amplamente empregada para tratar do assunto, e Millôr Fernandes não terá sido o único a se socorrer dela.


Trabalhando com a complexidade e com a diversidade

Sucede que escola não é fábrica, professores não são operários e crianças e jovens não são matéria prima de salsichas simbólicas ou sociais. Afastado do horizonte escolar a busca fanática pela homogeneização de comportamentos e condutas e pela harmonia do silêncio a todo custo, o que se revela é a realidade complexa, conflitiva e, às vezes, aflitiva. E cabe à escola não maquiar a realidade, mas propor-se o desafio de compreendê-la e transformá-la, a partir da articulação de seus agentes e da mobilização de suas energias humanas.

Em busca de seus objetivos, a escola não necessita de anular diferenças e diversidades: bem ao contrário disso, para justificar sua existência no mundo contemporâneo, a escola precisa convocar as diferenças que, articuladas, são a farinha e o pão do processo de ensino-aprendizagem, diferenças que são na realidade expressões de identidades individuais e de grupos, existentes e vivas mesmo que a escola as reprima ou feche os olhos para elas.

O reconhecimento e o acolhimento das diversidades torna possível à escola, que nunca deixou de estar mergulhada nelas, se apresentar aos muitos agentes que a compõem, circundam e interpenetram, como espaço solidário de convergência, no qual os diversos segmentos têm a possibilidade de se articular a partir do debate democrático em torno de valores e com vistas a objetivos eleitos comunitariamente.

É uma ilusão acreditar que conflitos possam ser abolidos ou resolvidos sempre harmonicamente: conflitos precisam ser encarados democraticamente para que os agentes envolvidos se manifestem em busca de soluções efetivamente comunitárias, caso em que a harmonia se estabelece como resultado de um processo contraditório, desarmônico, e como acordo voluntário de convivência, em que há ganhos, mas também perdas, não como condição apriorística isenta de riscos.

A própria ação de reconhecer a existência e de identificar conflitos já é dolorosa – que dizer então da construção de um pacto de ensino-aprendizagem que assuma o conflito como motor de sua razão de ser.

Porém, que atitude melhor tomar: ignorar as diferenças, atribuir ao diferente a “culpa” pela diferença e penalizá-lo em favor de uma homogeneidade que não existe em parte alguma, ou admitir que todos somos diferentes e, de posse dessa constatação, buscar articulações solidárias e comuntárias, não hierárquicas, em busca de objetivos comuns?

Crianças e jovens são diferentes afetiva, biopsíquica, intelectual e socialmente, e, no interior da escola, compõem um grupo complexo, em que identidades e diferenças são igualmente elementos constituitivos, e ainda cujos interesses não coincidem inteiramente nem com os de outros segmentos da instituição, nem com os da instituição escolar tomada em seu conjunto. Por seu turno, o corpo docente é também composto de indivíduos dotados de particularidades e idiossincrasias.

Naturalmente que é mais difícil reconhecer a complexidade do corpo discente do que tomá-lo como um todo homogêneo e indiferenciado. Também é mais fácil tratar o corpo docente como um conjunto fundado na identidade de interesses e nada além disso. Mas então, nos dois casos, seria honesto admitir que se está na superfície das coisas, e que a rejeição das dimensões políticas e individuais dos membros desses dois segmentos escolares é um confisco de seus direitos, uma agressão à cidadania e um desserviço para com a democracia.

Quem é que não sabe que muitas das dificuldades do processo de ensino-aprendizagem residem em situações que pouco têm a ver com técnicas ou com práticas pedagógicas? Aliás, que prática de ensino restrita que dá conta conflitos cuja origem reside além dos muros da escola?

O estabelecimento de um verdadeiro pacto de ensino-aprendizagem só é possível encarados os indivíduos em sua complexidade de conflitos, que envolve cognição, afetividade, corpo biopsíquico e relações sociais.

Estabelecer objetivos bem como estratégias de ensino-aprendizagem ignorando-se a complexidade das diversidades constitui, além de lamentável desperdício de energias humanas, de subjetividade e de talentos, uma fantasia autoritária que, para se concretizar, sacrifica a humanidade verdadeira, diversa, plural, imperfeita, que sente dor e prazer, que se emociona e que despreza, que dá o melhor de si e que às vezes molhas as calças.

Em uma de suas conferências, um já idoso Sarte, acometido de incontinência urinária, teria solicitado licença à platéia, que o assistia interessada, para trocar as calças, se dirigindo a ela mais ou menos nos seguintes termos: “Desculpem o incômodo, mas, quando se é humano, é preciso ser humilde”. A diferença pode ser encarada como menosvalia, porém, pode ser encarada como particularidade. Pode ser tratada discriminatoriamente, ou pode ser celebrada como contribuição do indivíduo para com o todo.

Ao referir-se com dignidade ao incidente que expôs sua condição particular durante uma situação pública, Sartre chamou a atenção para o fato de que ele em nada ficara diminuído com o imprevisto, afinal a velhice tem suas próprias desvantagens, que bastam por si e não necessitam de outras além daquelas propiciadas pela natureza.

Os movimento gerais do mundo contemporâneo apontam para o acolhimento das diferenças como prática desejável de aprofundamento da democracia. Lembremos que crianças, idosos e mulheres já foram considerados seres humanos de segunda categoria, mercê de suas particularidades tidas como imperfeições. No Ocidente, negros e índios já foram considerados sem alma e judeus foram por muito tempo tratados como não-pessoas, pelas mesmas razões ou por razões presididas pelas mesmas lógicas.

A história é pródiga em relatos resultantes dessas formas de encarar outro, e não por acaso imediatamente após a Segunda Guerra a ONU é organizada e a Declaração Universal dos Direitos Humanos é redigida e assinada, como reconhecimento de que a diversidade deve ser respeitada. Se não for uma extrapolação impertinente, poder-se-ia mesmo dizer que a DUDH reflete a busca por um pensamento mais complexo aberto ao diverso e que, com as limitações do pós-Guerra, o acolhe com solidariedade.


Democracia, escola, complexidade e diversidade
 Assumir uma atitude democrática no campo das relações de ensino-aprendizagem exige que se ultrapassem os limites estritamente políticos implicados nessa postura, afinal, respeitar a opinião divergente de um adversário político é muito menos difícil do que se expor a uma manifestação inusitada de raiva de um indivíduo, cujas conseqüências podem transitar toda a escala de comportamentos, da indiferença ao homicídio ou ao suicídio.

A escola pode fazer de conta que é imune às particularidades, todavia o recalque dessas particularidades não as anula: apenas faz com que elas, reprimidas, se expressem de outras formas, em outros lugares e em tempos imprevisíveis. Ao dar de ombros para as particularidades, a escola perde uma excelente oportunidade de, acolhendo o diverso de cada um, pôr em movimento energias criativas imensas. Acolher o indivíduo, com todos as suas potencialidades e limites, é reconhecê-lo inteiro.

No pacto de ensino-aprendizagem estão implicados todos os seus agentes, com todas suas respectivas bagagens de esperanças e frustrações. Compartilhar essas bagagens permite o estabelecimento de relações sujeito-sujeito, relações que, quando recalcadas, redundam em embotamento da criatividade, frustração de energias emocionais, intelectuais e físicas de educadores e de educandos, sem maiores proveitos, com muito desgaste e com ainda mais perdas simbólicas e de horizontes individuais e coletivos.

Facilitar o processo de ensino-aprendizagem, numa perspectiva democrática e aberta à complexidade do mundo significa optar por um caminho trabalhoso de diálogo, de esforço de mútua compreensão, mas que tem como ganho inestimável a instauração de momentos e espaços de convivência solidária, cuja premissa é a sincera incorporação dos conflitos, assumidos como parte legítima desse mesmo processo contraditório, complexo, arriscado (para Clarice Lispector a vida não vale sem risco) mas fecundo e verdadeiro

Ao invés de aplacar os conflitos, entendidos como obstáculos a serem removidos para que sejam atingidos objetivos educacionais, o processo de ensino-aprendizagem voltado para a verdadeira constituição de valores democráticos deseja a manifestação deles, pois isso dá condições a que sejam desobstruídos mecanismos individuais e coletivos essenciais à produção do saber.

Encarar a realidade por meio de um pensamento complexo é, assim, ajustar as expectativas à própria natureza complexa da realidade, que é dinâmica, imprevisível e sem roteiro previamente estabelecido. E se, por um lado, o reconhecimento disso acrescenta um forte elemento de insegurança em todas as ações humanas, que podem ou não dar certo, por outro lado, permite uma grande liberdade no tratamento das coisas do mundo e uma ampla possibilidade de articulações de energias psíquicas e sociais criativas que, de outro modo, ou são desperdiçadas, na melhor das hipóteses, ou eclodem caoticamente, sem controle e com diversos graus de violência, de que temos notícia todos os dias pelos jornais impressos e televisivos, e pelas resvistas e internet, isso quando não estamos diretamente implicados nela como causadores ou como vítimas.


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