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Proibido negros, judeus e cães: aviso em bar no sul dos EUA. |
A escravidão não é criação da era moderna. A Grécia antiga,
inventora da democracia, empregou o trabalho forçado como parte de sua
estrutura social e produtiva – estando os escravos, como se sabe, excluídos dos
direitos de participação nas decisões públicas.
A china praticou a escravidão
em larga escala, e a rigor, ela só foi extinta com a revolução comunista de Mao
Tse Tung, quando, deposto o último imperador, os eunucos foram libertados, e
quando seus escrotos secos, guardados em caixinhas, lhes foram devolvidos pelos
revolucionários, como símbolo de que os vínculos com seu senhor estavam definitivamente extintos. No
filme O último imperador, de Bernardo Bertolucci, essa cena é particularmente perturbadora.
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Proibido cães, negros e mexicanos:
aviso em comércio no sul dos EUA. |
Por toda a América pré-colombiana há registros de escravidão: maias fizeram escravos, aztecas fizeram escravos, incas fizeram escravos. No Brasil pré-Cabral, era comum o sequestro de mulheres após guerras entre tribos. A função da mulher sequestrada era a de, incorporada à força, tornar-se esposa de algum jovem da tribo vencedora. Se a
esse casamento compulsório com o filho ou mesmo o próprio matador de seus pais –
para fins de garantir descendentes saudáveis a partir de um estoque genético
diverso – não chamamos de escravidão
sexual, é por zelo para com uma prática indígena que, vigente hoje nas sociedades
ocidentais, recebe, sim, a classificação de escravidão sexual – condenada e
punida por leis nacionais e internacionais.
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"Colored": negros, índios e mexicanos no fundo do ônibus. |
Assim, é um erro grotesco considerar que a discriminação
racial em razão da escravidão ou por outros motivos recai somente sobre os
negros. Nos dias de hoje, palestinos são alvo de racismo em Israel, tanto
quanto judeus foram vítimas do ódio nazista na Alemanha hitlerista. Na Espanha
de Franco, ciganos foram perseguidos com crueldade, tanto quanto chineses foram
massacrados durante a 2ª. Guerra por japoneses imperiais, estes embalados pelo
delírio de superioridade racial.
O racismo tem-se revelado ao longo dos séculos e milênios
como uma estratégia violenta de grupos sociais para submeter, explorar e
expropriar outros grupos. Riquezas imensas produzidas pelo povo judeu foram
saqueadas por nazistas e fascistas e o próprio indivíduo semita teve seu corpo
exaurido até a última gota de energia nos campos de concentração do III Reich.
O objetivo principal do Japão ao invadir a China não foi instaurar uma “civilização
mais avançada”, mas estabelecer um império político no extremo da Ásia para
explorar as imensas riquezas continentais dessa região e seu povo
– a "superioridade racial" era, assim, como sempre, apenas uma justificativa que não resistiu nem à força dos argumentos, nem ao argumento da força, pois a contraofensiva militar comunista expulsou as tropas invasoras no curso da 2a. Guerra e consolidou a Revolução Chinesa no poder em 1949.
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Aula comunitária sobre os Direitos Civis nos EUA para estudantes do colégio Rio Branco - Granja Viana (17/10/15). |
Assim, o argumento de
superioridade racial nunca passa de um álibi para, criando-se em um grupo de
força uma coesão interna a partir de um a farsa, explorar e extorquir – o que
não se faz sem muita violência e, por oposição, muita resistência.
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Aula comunitária sobre os Direitos Civis nos EUA para estudantes do colégio Rio Branco - Higienópolis (22/10/15). |
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Servimos apenas brancos .
Nunca hispânicos, nem mexicanos. |
Porém, não há historiador que não admita ter sido a
escravidão negra um dos pilares do capitalismo emergente das Grande Navegações,
tendo alimentado, ela própria
– a escravidão
– grande parte das rotas marítimas
atlânticas entre os séculos XVI e XIX, no chamado comércio triangular (uma metrópole europeia, um posto
de compra de escravos na África ocidental e uma colônia na América).
É essa
proeminência da exploração da mão de obra escrava negra oriunda da África que
levará um dos maiores líderes da luta contra o racismo nos EUA, o jovem Malcolm
X, a afirmar: “Não existe capitalismo sem racismo.” Porém, se o líder acerta nessa formulação, pois a mão de obra escrava impulsionou os negócios da burguesia comercial patrocinadora das Grande Navegações, é preciso não esquecer que os regimes que antecederam o capitalismo também apoiaram suas economias no saque de populações dominadas e na escravidão ou servidão - que em muitos aspectos pouco se diferencia do trabalho forçado, pois o cerceamento da liberdade do indivíduo e a exploração compulsória de sua força de trabalho estão presentes nessas duas formas de produção.
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Aula comunitária na EMEF Chico Mendes - Cidade Líder - Zona Leste de São Paulo |
Nos EUA, tanto quanto por toda parte em que foi empregada, a
escravidão e a discriminação racial deixaram e deixam ainda marcas profundas,
que sequer o amontoamento de séculos sobre séculos futuros apagará. Essas marcas,
embora as mídias contemporâneas se apressem em soterrar com avalanches de imagens
dispersivas, estão por toda parte, e com o advento da internet, se espalham e
se oferecem como fontes de reflexão para quem não deseja que semelhantes
episódios de injustiça e vergonha se repitam.
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Linchamentos legalizados no Sul dos EUA. |
A luta pelos direitos civis nos EUA, por exemplo, não é
recente. Com a vitória dos ianques sobre os confederados na Guerra Civil
Americana (1861), também chamada Guerra da Secessão – pois o Sul tinha intenção
de se separar do Norte –, o fim da escravidão foi imposto pelos vencedores aos
vencidos na forma de lei federal que, em última instância, reconhecia igualdade
entre brancos e negros, todos agora cidadãos livres de um mesmo país.
Porém, mergulhados no ressentimento da derrota e do ódio
racial, bem como apoiados na grande independência administrativa que a
Constituição dos EUA faculta aos estados, os do Sul passaram a confrontar a
legislação federal por meio de aprovação de leis estaduais abertamente
racistas. Esses dispositivos de submissão e de segregação racial que tornaram os negros
cidadãos de segunda classe em seu próprio país, foram sendo aprovadas paulatinamente nos
legislativos estaduais desde 1876, vigoraram até 1965, e ficaram conhecidas
como leis Jim Crow – apelido que se deve ao personagem empregado por racistas para
ridicularizar os negros nos EUA.
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Jim Crow: caricatura humilhante que
emprestou o nome às leis racistas nos EUA. |
Assim, a luta pela igualdade, vencida, ao menos no terreno
legal (pois as explosões sociais de
resistência de negros contra o racismo nos EUA, todos o sabem, são frequentes), em 1964 com a promulgação Lei dos
Direitos Civis, durou noventa anos, período durante o qual todo tipo de
violação aos direitos humanos foi cometido com amparo legal local no interior do país que se apresentava
e se apresenta ao mundo como campeão da liberdade e dos direitos individuais.
As leis Jim Crow não apenas segregavam seres humanos pela
cor da pele, proibindo que uns tomassem água no bebedouro de outros, ou se
sentassem nos mesmos bancos de praças ou transporte coletivo, como algumas
delas estimulavam o ódio racial e disciplinavam o linchamento de negros em
praças públicas. Essas leis, a rigor, eram ainda piores do que as empregadas no
período da escravidão, pois não tinham como alvo um ou outro escravo fujão ou
escrava com a péssima mania de andar com o queixo erguido, mas todo e qualquer
cidadão negro, toda e qualquer mulher ou criança negra, não necessitando de
motivações quaisquer além do preconceito e do rancor.
Num dos períodos mais agudos de resistência ao racismo na
década de 1960 e na luta pela aprovação da Lei dos Direitos Civis, surgiram os
Freeddom Riders,
Viajantes da
Liberdade, caravana de jovens, estudantes, intelectuais e militantes negros
e brancos que, unidos, decidiram confrontar a racismo legal imperante nos
estados do Sul.
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Freedom Riders: caravana da liberdade. |
Essas caravanas de ônibus em que brancos e negros se
sentavam lado a lado, cruzaram os estados sulinos, sendo recebidas com
violência pela Ku Klux Klam – sempre apoiada pela polícia local e mesmo por
agentes federais racistas, que transmitiam informações sobre o roteiro dos
ônibus.
Obviamente, na vanguarda dessas caravanas da liberdade estavam
os principais atores: negros e negras dispostos
a conquistarem definitivamente para si e para as gerações futuras de
afrodescendentes norte-americanos o estatuto de cidadania plena. Porém eles encontraram
em seus colegas brancos não racistas apoio decisivo – o que não impediu que os
dois principais líderes negros dos EUA fossem assassinados: Malcolm X em 1965 e Luther King em 1968.
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Ônibus dos Freedom Rider incendiado . |
A principal lição que essas caravanas deixaram a todos, não
só aos norte-americanos, é a de que a luta pela igualdade, contra todos os
tipos de discriminação e preconceitos não diz respeito apenas às vítimas diretas
deles. Se eu sou branco, tenho um amigo negro e ele é humilhado, eu fui também.
Se meu vizinho japonês é ofendido por causa de seus olhos puxados, os meus
olhos também foram furados. Se uma piada nazista atinge um amigo judeu, eu fui
jogado no forno junto com ele. Se uma manifestação de intolerância manda que meus
amigos nordestinos voltem para sua terra depois de eles terem erguido a maioria
dos grandes edifícios de São Paulo, eu fui convidado a partir da minha terra
com eles.
Porém, a verdade é que eu não preciso ter um amigo negro,
japonês, judeu, palestino, nordestino, sírio, gay, lésbica, transsexual, deficiente físico ou com limitação intelectual para me posicionar em defesa da
igualdade e da justiça, pelo simples motivo de que, em milhares de anos
estudados pela história, não se conhece um único exemplo de que o ódio, a
intolerância, a escravidão tenham construído nada. Onde prosperou a histeria
coletiva movida pelo ódio e pelos preconceitos, ali imperou os piores momentos da humanidade.
Agradecimentos às professoras Sandra (Granja Viana) e Laís (Higienópolis), à bibliotecária Valéria (Higienópolis) e aos estudantes do colégio Rio Branco, que me convidaram para o encontro de que o texto acima é uma espécie de resumo
Jeosafá Fernandez Gonçalves, Professor Colaborador do Departamento de
História da USP, foi da equipe do 1o, ENEM, em 1998, e membro da banca de
redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das
redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos
Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e
Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo na gestão José
Serra. É escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São
Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O
jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); em maio de 2015, nos 90 anos de
Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora; no mesmo ano
publicou A lenda do belo Pecopin da bela Bauldour, tradução do francês e
adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela editora Mercuryo Jovem.
Leciona atualmente para o a Educação Básica e para o Ensino Superior privados.