sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Um livro mais leve que o ar, mas não sem risco

Em nome de Anna , de Rudi Fischer, que tive o privilégio de ler no original e que agora ganha forma definitiva, é um livro para leitores de coragem, sem a qual não é possível atravessar o Rubicão sequer da primeira para a segunda página. O livro foi escrito a partir da experiência mais dolorosa que um pai pode ter: a perda de um filho.

Vítima de um acidente doméstico, no final do mês de maio de 2012, a dias de completar seus quatro anos de idade, a pequena Anna Laura, filha de Rudi e da psicóloga Cláudia Petlik Fisher, deixou este mundo e foi para o céu das crianças, com seus cachinhos loiros, com sua inocência, e seus dentes de leite ainda intactos.

É um livro de dor e, ainda mais, de amor, na fonteira da poesia e da realidade; do sonho e do pesadelo; do êxtase e do tormento; da razão e do delírio - sempre transitando de um a outro lado desses mundos aqui não excludentes, nem complementares, nem congruentes. No entanto, é um livro mais leve que o ar, como os balões vermelhos que Anna adorava. Fique porém o aviso: mais leve não implica menor risco. 

Para compor essa obra, o autor convidou uma linda ciranda de amigos artistas, que se esmeraram em produzir belíssimas imagens, que são verdadeiras dádivas para os olhos e para o coração.

Para se ter uma ideia, numa das páginas iniciais e numa das finais há a ilustração de uma tesoura, obra de Gerardo Goldwasser. Se passarmos sobre essa ilustração o marcador de páginas semitransparente que acompanha o livro, a tesoura se abre e fecha, numa brincadeira visual que remete diretamente ao ato de picotar papéis - as crianças adoram isso - e à própria capa do livro, composta de mozaico de picotes.


Além do livro, Rudi passou a lutar para a instalação de parques infantis acessiíveis para crianças com necessidades especiais. A inciativa chama-se Anna Laura, Parque para Todos. Rudi mapeia locais públicos, inclusive fora do país, como em Tel-Aviv, articula-se com autoridades locais, fornece os equipamentos adequados e faz a manutenção deles, como forma de homenagear a filha e de converter a dor em solidariedade humana.

Em nome de Anna é um livro para leitores de coragem. Porém, sobre esse particular, Clarice Lispector já nos deu régua e compasso: "Repito por pura alegria de viver: a salvação é pelo risco, sem o qual a vida não vale a pena!"

Leitor: arrisque-se!

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Jeosafá é escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou o ano passado O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria). e lança em maio deste ano, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora.

domingo, 18 de outubro de 2015

Proibido negros, judeus e cães

Proibido negros, judeus e cães: aviso em bar no sul dos EUA.
A escravidão não é criação da era moderna. A Grécia antiga, inventora da democracia, empregou o trabalho forçado como parte de sua estrutura social e produtiva – estando os escravos, como se sabe, excluídos dos direitos de participação nas decisões públicas.

A china praticou a escravidão em larga escala, e a rigor, ela só foi extinta com a revolução comunista de Mao Tse Tung, quando, deposto o último imperador, os eunucos foram libertados, e quando seus escrotos secos, guardados em caixinhas, lhes foram devolvidos pelos revolucionários, como símbolo de que os vínculos com seu senhor estavam definitivamente extintos. No filme O último imperador, de Bernardo Bertolucci, essa cena é particularmente perturbadora.

Proibido cães, negros e mexicanos:
aviso em comércio no sul dos EUA.
Por toda a América pré-colombiana há registros de escravidão: maias fizeram escravos, aztecas fizeram escravos, incas fizeram escravos. No Brasil pré-Cabral, era comum o sequestro de mulheres após guerras entre tribos. A função da mulher sequestrada era a de, incorporada à força, tornar-se esposa de algum jovem da tribo vencedora.  Se a esse casamento compulsório com o filho ou mesmo o próprio matador de seus pais – para fins de garantir descendentes saudáveis a partir de um estoque genético diverso –  não chamamos de escravidão sexual, é por zelo para com uma prática indígena que, vigente hoje nas sociedades ocidentais, recebe, sim, a classificação de escravidão sexual – condenada e punida por leis nacionais e internacionais.

"Colored": negros, índios e mexicanos no fundo do ônibus.
Assim, é um erro grotesco considerar que a discriminação racial em razão da escravidão ou por outros motivos recai somente sobre os negros. Nos dias de hoje, palestinos são alvo de racismo em Israel, tanto quanto judeus foram vítimas do ódio nazista na Alemanha hitlerista. Na Espanha de Franco, ciganos foram perseguidos com crueldade, tanto quanto chineses foram massacrados durante a 2ª. Guerra por japoneses imperiais, estes embalados pelo delírio de superioridade racial.

O racismo tem-se revelado ao longo dos séculos e milênios como uma estratégia violenta de grupos sociais para submeter, explorar e expropriar outros grupos. Riquezas imensas produzidas pelo povo judeu foram saqueadas por nazistas e fascistas e o próprio indivíduo semita teve seu corpo exaurido até a última gota de energia nos campos de concentração do III Reich. O objetivo principal do Japão ao invadir a China não foi instaurar uma “civilização mais avançada”, mas estabelecer um império político no extremo da Ásia para explorar as imensas riquezas continentais dessa região e seu povo – a "superioridade racial" era, assim, como sempre, apenas uma justificativa que não resistiu nem à força dos argumentos, nem ao argumento da força, pois a contraofensiva militar comunista expulsou as tropas invasoras no curso da 2a. Guerra e consolidou a Revolução Chinesa no poder em 1949.

Aula comunitária sobre os Direitos Civis nos EUA para estudantes do colégio Rio Branco - Granja Viana (17/10/15).
Assim, o argumento de superioridade racial nunca passa de um álibi para, criando-se em um grupo de força uma coesão interna a partir de um a farsa, explorar e extorquir – o que não se faz sem muita violência e, por oposição, muita resistência.

Aula comunitária sobre os Direitos Civis nos EUA para estudantes do colégio Rio Branco - Higienópolis (22/10/15).

Servimos apenas brancos .
Nunca hispânicos, nem mexicanos.
Porém, não há historiador que não admita ter sido a escravidão negra um dos pilares do capitalismo emergente das Grande Navegações, tendo alimentado, ela própria  a escravidão  grande parte das rotas marítimas atlânticas entre os séculos XVI e XIX, no chamado comércio  triangular (uma metrópole europeia, um posto de compra de escravos na África ocidental e uma colônia na América).

É essa proeminência da exploração da mão de obra escrava negra oriunda da África que levará um dos maiores líderes da luta contra o racismo nos EUA, o jovem Malcolm X, a afirmar: “Não existe capitalismo sem racismo.” Porém, se o líder acerta nessa formulação, pois a mão de obra escrava impulsionou os negócios da burguesia comercial patrocinadora das Grande Navegações, é preciso não esquecer que os regimes que antecederam o capitalismo também apoiaram suas economias no saque de populações dominadas e na escravidão ou servidão - que em muitos aspectos pouco se diferencia do trabalho forçado, pois o cerceamento da liberdade do indivíduo e a exploração compulsória de sua força de trabalho estão presentes nessas duas formas de produção.

Aula comunitária na EMEF Chico Mendes - Cidade Líder - Zona Leste de São Paulo
Nos EUA, tanto quanto por toda parte em que foi empregada, a escravidão e a discriminação racial deixaram e deixam ainda marcas profundas, que sequer o amontoamento de séculos sobre séculos futuros apagará. Essas marcas, embora as mídias contemporâneas se apressem em  soterrar com avalanches de imagens dispersivas, estão por toda parte, e com o advento da internet, se espalham e se oferecem como fontes de reflexão para quem não deseja que semelhantes episódios de injustiça e vergonha se repitam.

Linchamentos legalizados no Sul dos EUA.
A luta pelos direitos civis nos EUA, por exemplo, não é recente. Com a vitória dos ianques sobre os confederados na Guerra Civil Americana (1861), também chamada Guerra da Secessão – pois o Sul tinha intenção de se separar do Norte –, o fim da escravidão foi imposto pelos vencedores aos vencidos na forma de lei federal que, em última instância, reconhecia igualdade entre brancos e negros, todos agora cidadãos livres de um mesmo país.

Porém, mergulhados no ressentimento da derrota e do ódio racial, bem como apoiados na grande independência administrativa que a Constituição dos EUA faculta aos estados, os do Sul passaram a confrontar a legislação federal por meio de aprovação de leis estaduais abertamente racistas. Esses dispositivos de submissão e  de segregação racial que tornaram os negros cidadãos de segunda classe em seu próprio país,  foram sendo aprovadas paulatinamente nos legislativos estaduais desde 1876, vigoraram até 1965, e ficaram conhecidas como leis Jim Crow – apelido que se deve ao personagem empregado por racistas para ridicularizar os negros nos EUA.

Jim Crow: caricatura humilhante que
emprestou o nome às leis racistas nos EUA.
Assim, a luta pela igualdade, vencida, ao menos no terreno legal (pois as explosões sociais de resistência de negros contra o racismo nos EUA, todos o sabem, são frequentes), em 1964 com a promulgação Lei dos Direitos Civis, durou noventa anos, período durante o qual todo tipo de violação aos direitos humanos foi cometido com amparo legal local no interior do país que se apresentava e se apresenta ao mundo como campeão da liberdade e dos direitos individuais.

As leis Jim Crow não apenas segregavam seres humanos pela cor da pele, proibindo que uns tomassem água no bebedouro de outros, ou se sentassem nos mesmos bancos de praças ou transporte coletivo, como algumas delas estimulavam o ódio racial e disciplinavam o linchamento de negros em praças públicas. Essas leis, a rigor, eram ainda piores do que as empregadas no período da escravidão, pois não tinham como alvo um ou outro escravo fujão ou escrava com a péssima mania de andar com o queixo erguido, mas todo e qualquer cidadão negro, toda e qualquer mulher ou criança negra, não necessitando de motivações quaisquer além do preconceito e do rancor.

Num dos períodos mais agudos de resistência ao racismo na década de 1960 e na luta pela aprovação da Lei dos Direitos Civis, surgiram os Freeddom Riders, Viajantes da Liberdade, caravana de jovens, estudantes, intelectuais e militantes negros e brancos que, unidos, decidiram confrontar a racismo legal imperante nos estados do Sul.

Freedom Riders: caravana da liberdade.
Essas caravanas de ônibus em que brancos e negros se sentavam lado a lado, cruzaram os estados sulinos, sendo recebidas com violência pela Ku Klux Klam – sempre apoiada pela polícia local e mesmo por agentes federais racistas, que transmitiam informações sobre o roteiro dos ônibus.

Obviamente, na vanguarda dessas caravanas da liberdade estavam os principais atores:  negros e negras dispostos a conquistarem definitivamente para si e para as gerações futuras de afrodescendentes norte-americanos o estatuto de cidadania plena. Porém eles encontraram em seus colegas brancos não racistas apoio decisivo – o que não impediu que os dois principais líderes negros dos EUA fossem assassinados:  Malcolm X em 1965 e Luther King em 1968.

Ônibus dos Freedom Rider incendiado .
A principal lição que essas caravanas deixaram a todos, não só aos norte-americanos, é a de que a luta pela igualdade, contra todos os tipos de discriminação e preconceitos não diz respeito apenas às vítimas diretas deles. Se eu sou branco, tenho um amigo negro e ele é humilhado, eu fui também. Se meu vizinho japonês é ofendido por causa de seus olhos puxados, os meus olhos também foram furados. Se uma piada nazista atinge um amigo judeu, eu fui jogado no forno junto com ele. Se uma manifestação de intolerância manda que meus amigos nordestinos voltem para sua terra depois de eles terem erguido a maioria dos grandes edifícios de São Paulo, eu fui convidado a partir da minha terra com eles.

Porém, a verdade é que eu não preciso ter um amigo negro, japonês, judeu, palestino, nordestino, sírio, gay, lésbica, transsexual, deficiente físico ou com limitação intelectual  para me posicionar em defesa da igualdade e da justiça, pelo simples motivo de que, em milhares de anos estudados pela história, não se conhece um único exemplo de que o ódio, a intolerância, a escravidão tenham construído nada. Onde prosperou a histeria coletiva movida pelo ódio e pelos preconceitos, ali imperou os piores momentos da humanidade.

Agradecimentos às professoras Sandra (Granja Viana) e Laís (Higienópolis), à bibliotecária Valéria (Higienópolis) e aos estudantes do colégio Rio Branco, que me convidaram para o encontro de que o texto acima é uma espécie de resumo

Jeosafá Fernandez Gonçalves, Professor Colaborador do Departamento de História da USP, foi da equipe do 1o, ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo na gestão José Serra. É escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); em maio de 2015, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora; no mesmo ano publicou A lenda do belo Pecopin da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela editora Mercuryo Jovem. Leciona atualmente para o a Educação Básica e para o Ensino Superior privados.

domingo, 11 de outubro de 2015

1979 foi um ano difícil

Liberdade: a palavra mais linda do dicionário.

Eu terminara o ano de 1978 como um dos melhores alunos na minha turma, o que não acrescenta muito a meu currículo, pois a minha turma da 8ª. série do noturno era a mais largada do colégio. Não que fôssemos maus, apenas tínhamos decidido dificultar a vida de professores, inspetores e diretor substituto. Por causa de quê? Por causa de terem naquele ano tido a brilhante ideia de formar turmas separadas de meninos e meninas.

Na verdade, muitos já eram barbados – não eu –  e, tendo repetido alguns anos consecutivos do Ensino Fundamental – não eu –, traziam consigo o estigma de completos debochados, o rei deles, Nivaldo Moura, cover narigudo e bocudo de Mick Jagger, nos sentidos literal e figurado, respectivamente.

Esse descendente de libaneses, hilário e orgulhoso de seu nariz característico, tirando a camisa, girando-a sobre a cabeça e pisoteando sobre a mesa da professora de inglês, a saudava no início de suas aulas aos berros afinados: “I can’t get no!,” para nossa resposta em coro, também eu: Satisfaction!

A professora Gema, "apavorada" mas risonha, trancada do lado fora da sala, olhando do corredor pela janelinha de vidro da porta, punha o dedo sobre o nariz "implorando" silêncio e espremendo os olhinhos cúmplices.

Nunca é demais enfatizar, para que não restem dúvidas, embora nossa 8ª Série B do período noturno fosse tudo o que diziam de nós e um pouco mais: eu conseguia ser dos melhores alunos da turma, inclusive nas notas. Tanto que quando o diretor queria provas da bagunça na sala (eu era o “monitor”), me chamava à sua sala:

– Senhor monitor, vocês estavam cantando aquela música infame novamente?

– Não, seu Nelson, a inspetora Laura é que nos detesta e vem fazer intriga para o senhor.

Porém, 1978 acabou, e nem eu nem minha mãe sabíamos que era necessária a inscrição para o vestibulinho de ingresso no Ensino Médio no único colégio da região que o oferecia. Então, dei, da alegria e da extroversão do último ano no Maria Montessori, no nada – sim, pois nunca me imaginara fora da escola; sequer sabia que havia vida inteligente para fora dos muros do Maria Montessori.

No início de 1979, embora já tivesse trabalhado em metalúrgica e loja de passarinhos no ano anterior, entendi o que era a vida de trabalhador: arrumei emprego de office-boy em uma empresa de publicidade (Marplan, divisão de pesquisa da McCann Erickson), na rua Sete de Abril e, do quarto andar do prédio do falido Diários Associados, de Assis Chateaubriand, assisti aos enfrentamentos entre bancários em greve e a cavalaria da Polícia Militar.

Uma ocasião, indo buscar o malote na matriz, que ficava no início da rua da Consolação, esquina com a Martins Fontes, no retorno, tive de pedir licença aos policiais, todos paramentados com coletes a prova de bala e escudos transparentes, armas e cacetetes prestes, como em filmes de ficção científica, para atravessar a praça D. José Gaspar.

Quando cruzei o cordão dos militares, ingressei no maior vácuo de toda minha vida até então, pois, cem metros à minha frente, perfilavam os bancários, os braços dados, numa corrente humana compacta e disposta. Entre a tropa de choque e em direção dos trabalhadores, boiava,  quase à deriva, um office-boy de pouco mais de um metro e cinquenta, com um malote de cartas às costas e o maior silêncio do mundo nos ouvidos. Os bancários abriram uma brecha e me deixaram passar.

Ao chegar ao quarto andar do edifício da Sete de Abril, só tive tempo de entregar a mala de lona verde cheia de correspondências na expedição e correr para a janela. Embaixo, a guerra já estourara, com explosão de bombas de efeito moral e de gás lacrimogêneo, com cavalarianos a espremer contra as paredes dos prédios grupos de manifestantes que, com pedras das obras do Metrô à disposição, faziam-nas assobiar contra os militares, estes enfiados em suas armaduras de Darth Vader.

Do alto, choviam objetos sobre os policiais. Fui à expedição, apanhei um cesto de lixo cheio de papéis borrados de tinta de mimeógrafo, voltei à minha janela e, no momento de atirá-lo sobre os policiais, fiquei com pena dos coitados e só atirei o conteúdo do cesto. Até hoje eles devem achar que suas pancadas contra os manifestantes foram saudadas por alguém lá de cima com uma chuva de papéis picados.

O fato é que, amigo da massa de office-boys que os bancos contratavam na época, acabei aderindo às suas passeatas que, assim como se juntavam, desapareciam, pois conhecíamos todas as galerias do centro velho de São Paulo, então era fácil para nós armarmos uma confusão e desaparecer na multidão. Para mim, nossa revolta infantojuvenil soava como os gritos de guerra do nosso líder de esbórnia, o impagável Nivaldo Moura, o nosso hilário Mick Jagger ladrão de oxigênio: “– I can’t get no!” ... “– Satisfaction!”.

No fim desse ano difícil, em que eu ficava à noite em casa chutando bola na parede de uma construção mal iniciada que meu pai mantinha no quintal, até me esgotar, para esquecer que estava fora da escola, prestei o vestibulinho, passei e, enfim, combinei comigo que esse fora meu rito de passagem.

No início de 1980, ao fazer a matrícula, já me incorporei ao piquete de alunos que faziam protesto contra o pagamento "obrigatório" da taxa da APM (Associação de Pais e Mestres). Por um deles, o Luís Randolfo, fui levado até o guichê. Lá ele fez um discurso contra a ilegalidade da obrigatoriedade, a moça da secretaria fez minha matrícula sem se chocar com ele e me preveniu: fique longe desses baderneiros – por Deus! Estou junto deles até hoje, quando os cabelos no topo da cabeça já me escasseiam e há mais fios brancos do que escuros em minha barba.

Ainda em 1980, participei de uma passeata de office-boys na avenida Paulista, onde então trabalhava, no número 1499, 15º andar, esquina com a alameda Casa Branca, sítio onde anos antes fora assassinado Carlos Marighela — por essa coincidência, ganhei de um dos membros do Centro Cívico uma biografia clandestina do “inimigo número 1 da ditadura”, com a qual desfilava pelos corredores da empresa em total inocênciaDa janela, vi a passeata, que não chegava a quarenta pernas, vindo do Trianon.

Fiz um cartaz com o fundo de uma caixa de sapatos na sala dos vendedores de trigo do Moinho São Jorge. Lembro o que escrevi com giz de cera, vermelho, emprestado à esconsa pela secretária do diretor comercial, um gaúcho que torcia pelo Internacional, única simpatia que eu nutria por ele: “Liberdade” – palavra que sempre achei das mais lindas do dicionário.

Desci correndo as escadas, pois os elevadores demoravam, a tempo de pôr mais duas pernas na desmilinguida manifestação. Antes de chegar à alameda Campinas, já tínhamos nos dispersado nas lanchonetes para comer misto quente, o sanduíche campeão dos office-boys.

Muitos anos depois, quando li 1933 foi um ano ruim, de John Fante, entendi cada vírgula do que ele escrevera sobre o fundo do poço da crise de 29 nos EUA. O 1933 dele foi o meu 1979. Porém, seria ingrato se não admitisse que é meu ano sagrado: foi aquele em que, saído da casca do ovo, saltei da beira do ninho para o mundo e me tornei não sei quantos por cento do que sou hoje, talvez 100.


Jeosafá é escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria) e  em maio deste ano, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora.