Liberdade: a palavra mais linda do dicionário. |
Eu terminara o ano de 1978 como um dos melhores alunos na
minha turma, o que não acrescenta muito a meu currículo, pois a minha turma da
8ª. série do noturno era a mais largada do colégio. Não que fôssemos maus,
apenas tínhamos decidido dificultar a vida de professores, inspetores e diretor
substituto. Por causa de quê? Por causa de terem naquele ano tido a brilhante
ideia de formar turmas separadas de meninos e meninas.
Na verdade, muitos já eram barbados – não eu – e, tendo repetido alguns anos consecutivos do
Ensino Fundamental – não eu –, traziam consigo o estigma de completos debochados,
o rei deles, Nivaldo Moura, cover narigudo e bocudo de Mick Jagger, nos
sentidos literal e figurado, respectivamente.
Esse descendente de libaneses, hilário e orgulhoso de seu
nariz característico, tirando a camisa, girando-a sobre a cabeça e pisoteando
sobre a mesa da professora de inglês, a saudava no início de suas aulas aos
berros afinados: “I can’t get no!,” para nossa resposta em coro, também eu:
Satisfaction!
A professora Gema, "apavorada" mas risonha, trancada do lado fora da sala,
olhando do corredor pela janelinha de vidro da porta, punha o dedo sobre o
nariz "implorando" silêncio e espremendo os olhinhos cúmplices.
Nunca é demais enfatizar, para que não restem dúvidas,
embora nossa 8ª Série B do período noturno fosse tudo o que diziam de nós e um
pouco mais: eu conseguia ser dos melhores alunos da turma, inclusive nas notas.
Tanto que quando o diretor queria provas da bagunça na sala (eu era o
“monitor”), me chamava à sua sala:
– Senhor monitor, vocês estavam cantando aquela música infame novamente?
– Não, seu Nelson, a inspetora Laura é que nos detesta e vem
fazer intriga para o senhor.
Porém, 1978 acabou, e nem eu nem minha mãe sabíamos que era
necessária a inscrição para o vestibulinho de ingresso no Ensino Médio no único
colégio da região que o oferecia. Então, dei, da alegria e da extroversão do
último ano no Maria Montessori, no nada – sim, pois nunca me imaginara fora da
escola; sequer sabia que havia vida inteligente para fora dos muros do Maria
Montessori.
No início de 1979, embora já tivesse trabalhado em
metalúrgica e loja de passarinhos no ano anterior, entendi o que era a vida de
trabalhador: arrumei emprego de office-boy em uma empresa de publicidade (Marplan, divisão de pesquisa da McCann Erickson), na rua
Sete de Abril e, do quarto andar do prédio do falido Diários Associados, de Assis Chateaubriand, assisti
aos enfrentamentos entre bancários em greve e a cavalaria da Polícia Militar.
Uma ocasião, indo buscar o malote na matriz,
que ficava no início da rua da Consolação, esquina com a Martins Fontes, no
retorno, tive de pedir licença aos policiais, todos paramentados com
coletes a prova de bala e escudos transparentes, armas e cacetetes prestes, como
em filmes de ficção científica, para atravessar a praça D. José Gaspar.
Quando cruzei o cordão dos militares, ingressei no maior
vácuo de toda minha vida até então, pois, cem metros à minha frente, perfilavam
os bancários, os braços dados, numa corrente humana compacta e disposta. Entre
a tropa de choque e em direção dos trabalhadores, boiava, quase à deriva, um office-boy de pouco mais de
um metro e cinquenta, com um malote de cartas às costas e o maior silêncio do
mundo nos ouvidos. Os bancários abriram uma brecha e me deixaram passar.
Ao chegar ao quarto andar do edifício da Sete de Abril, só
tive tempo de entregar a mala de lona verde cheia de correspondências na expedição
e correr para a janela. Embaixo, a guerra já estourara, com explosão de bombas
de efeito moral e de gás lacrimogêneo, com cavalarianos a espremer contra as
paredes dos prédios grupos de manifestantes que,
com pedras das obras do Metrô à disposição, faziam-nas assobiar contra os
militares, estes enfiados em suas armaduras de Darth Vader.
Do alto, choviam objetos sobre os policiais. Fui à
expedição, apanhei um cesto de lixo cheio de papéis borrados de tinta de
mimeógrafo, voltei à minha janela e, no momento de atirá-lo sobre os policiais,
fiquei com pena dos coitados e só atirei o conteúdo do cesto. Até hoje eles
devem achar que suas pancadas contra os manifestantes foram saudadas por alguém lá de
cima com uma chuva de papéis picados.
O fato é que, amigo da massa de office-boys que os bancos
contratavam na época, acabei aderindo às suas passeatas que, assim como se
juntavam, desapareciam, pois conhecíamos todas as galerias do centro velho de São Paulo, então era
fácil para nós armarmos uma confusão e desaparecer na multidão. Para mim, nossa
revolta infantojuvenil soava como os gritos de guerra do nosso líder de
esbórnia, o impagável Nivaldo Moura, o nosso hilário Mick Jagger ladrão de oxigênio: “– I
can’t get no!” ... “– Satisfaction!”.
No fim desse ano difícil, em que eu ficava à noite em casa
chutando bola na parede de uma construção mal iniciada que meu pai mantinha no
quintal, até me esgotar, para esquecer que estava fora da escola, prestei o
vestibulinho, passei e, enfim, combinei comigo que esse fora meu rito de passagem.
No início de 1980, ao fazer a matrícula, já me incorporei ao
piquete de alunos que faziam protesto contra o pagamento "obrigatório" da taxa da
APM (Associação de Pais e Mestres). Por um deles, o Luís Randolfo, fui levado até o guichê. Lá ele fez um
discurso contra a ilegalidade da obrigatoriedade, a moça da secretaria fez
minha matrícula sem se chocar com ele e me preveniu: fique longe desses
baderneiros
Ainda em 1980, participei de uma passeata de office-boys na avenida Paulista, onde então trabalhava, no número 1499, 15º andar, esquina com a alameda Casa Branca, sítio onde anos antes fora assassinado Carlos Marighela — por essa coincidência, ganhei de um dos membros do Centro Cívico uma biografia clandestina do “inimigo número 1 da ditadura”, com a qual desfilava pelos corredores da empresa em total inocência. Da janela, vi a passeata, que não chegava a quarenta pernas, vindo do Trianon.
Fiz um cartaz com o fundo de uma caixa de sapatos na sala
dos vendedores de trigo do Moinho São Jorge. Lembro o que escrevi com giz de
cera, vermelho, emprestado à esconsa pela secretária do diretor comercial, um
gaúcho que torcia pelo Internacional, única simpatia que eu nutria por ele:
“Liberdade” – palavra que sempre achei das mais lindas do dicionário.
Desci correndo as escadas, pois os elevadores demoravam, a
tempo de pôr mais duas pernas na desmilinguida manifestação. Antes de chegar à
alameda Campinas, já tínhamos nos dispersado nas lanchonetes para comer misto
quente, o sanduíche campeão dos office-boys.
Muitos anos depois, quando li 1933 foi um ano
ruim, de John Fante, entendi cada vírgula do que ele escrevera sobre o fundo do
poço da crise de 29 nos EUA. O 1933 dele foi o meu 1979. Porém, seria ingrato
se não admitisse que é meu ano sagrado: foi aquele em que, saído da casca do ovo,
saltei da beira do ninho para o mundo e me tornei não sei quantos por cento do que sou hoje,
talvez 100.
