quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

ZONA OESTE

 Reproduzo aqui o release que a jornalista Renata Vs fez para o lançamento de meu romance ZONA OESTE.

ZONA OESTE é o quarto e penúltimo romance do ciclo Era uma vez no meu bairro, do escritor paulistano Jeosafá Fernandez Gonçalves. Resultado de mais de vinte anos de pesquisa sobre a violência, particularmente contra crianças e jovens, em jornais, livros, documentos oficiais e a partir de entrevistas em trabalho de campo, ZONA OESTE é a quarta estação de uma obra cujo enredo, em forma de espiral, tendo partido da ZONA NORTE e passado por ZONA LESTE e ZONA SUL, atingirá o CENTRO, estação derradeira, em 2014. Cada região da metrópole, um romance enraizado na realidade e, como ela, cheio de surpresas, expectativas e, naturalmente, sonhos.

Quem por São Paulo ande sem destino certo pode ser que encontre o que não espera – e isso pode ser bom, ou não. Talvez esta seja a mensagem em torno da qual se articula o enredo deste ZONA OESTE. Neste romance – cujos personagens se movem pelas ruas da Lapa e Pompeia, por regiões da Paulista e além do rio Pinheiros  – as vozes se sucedem ao vivo, diante do leitor que, convertido em testemunha, acompanha, em tempo real, fatos e dramas ainda em processo, sem saber ao certo o rumo para o qual se encaminha a trama. 

Aqui se está no terreno escorregadio do “tudo é possível”, com a advertência de que o pano de fundo dessa geografia meio inventada, meio real, é uma cidade que oferece as maiores singelezas e os maiores horrores – às vezes simultaneamente. 

A lógica aparentemente fantástica deste ZONA OESTE é a mesma que permeia os romances anteriores da série: a partir de pesquisas bibliográficas, históricas, urbanísticas, documentais, de reportagem fotográfica e de entrevistas com pessoas reais o autor teceu uma teia em que o real parece absurdo (a exemplo de depoimentos de moradores e ocupantes ocasionais de túmulos da necrópole homônima da cidade) e em que o ficcional é contrabandeado para o interior do enredo como fato aceitável (uma vez que, em São Paulo, cidade ou necrópole, nada é de duvidar). 

Quando um organismo social de despedaça as consequências – quem não sabe? – são sempre dramáticas. Quando esse organismo é uma família, nem sempre sobra quem possa recolher os cacos, os escombros, os espólios. Porém... às vezes sobra. Neste romance, com um dos pés fincados na realidade e outro na possibilidade legitimada pela fantasia, a sobrevivente de um desses eventos dramáticos, em busca de aquietar seu coração despedaçado, reinsere numa narrativa mais humana e amorosa os cacos de vida que colecionou, em surdina, durante os anos de aprendizagem e maturidade.


JEOSAFÁ Fernandez Gonçalves nasceu em São Paulo, em 24 de novembro de 1963. Trabalhou como jornaleiro, operário metalúrgico, vendedor de roupas, porteiro de cineclube, entre outros, até ingressar no curso de Letras da Universidade de São Paulo e tornar-se professor, carreira que exerceu por dezesseis anos, na Educação Básica e no Ensino Superior. Doutorou-se em Literatura pela mesma Universidade em 2002, publicou seu primeiro livro em 1986 e reúne hoje em sua obra, entre poesia, ficção, ensaio e ensino, mais de cinquenta títulos.

Para ver algumas fotos do lançamento, clique aqui.



terça-feira, 8 de outubro de 2013

Todo mundo quer Vinicius só para si

PROJEÇÃO NA PAREDE
Comemoração de 100 ano de Vinícius de Moraes na Editora Nova Alexandria

O Colégio Pioneiro adotou meu livro O jovem Mandela para turmas finais de Ensino Fundamental e inicial do Ensino Médio. A conversa foi muito legal com os alunos. Como nesse livro há incrustações de trechos do poema Mensagem à Poesia, acabei sendo convidado a participar do evento comemorativo dos 100 anos do Poetinha.

Quando eu concluíra o então Segundo Grau, hoje Ensino Médio, cometi uma de minhas maiores ousadias. Sucede que, desde que entrei na escola, ler foi uma atividade mágica, de prazer fruído ora com euforia, ora com concentração, ora com sofreguidão - porém, livros, só  os das bibliotecas públicas, oásis em que me livrei de tanto deserto de humanidade semeado pela metrópole.

A ousadia foi que, comprometendo a renda familiar, entrei em uma livraria do centro da cidade e comprei, de uma só tacada, dois volumes de poesia de Cecília Meireles; Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto; uma antologia de Carlos Drummond de Andrade; e, de Vinicius de Moraes, além da Antologia Poética por ele organizada, os livros Para uma menina com uma flor e Para viver um grande amor. Era o ano de 1982, anotado nas folhas de rosto desses exemplares, que trago até hoje, amarelecidos no papel, mas sempre intactos no coração.

Eu tinha então 19 anos. E quando apanho esses livros, continuo tendo. Esses poetas eu já frequentava em namoros sempre interrompidos pela necessidade de devolver o exemplar à biblioteca circulante. Levá-los em definitivo para casa selou um casamento desejado e sempre adiado pela falta de dinheiro. Minha família não ficou mais pobre por causa dessa ousadia e, passado o sentimento de culpa, vi que tinha feito a coisa certa.

Vinicius, sedutor como lhe é característico, adiantou-se sobre os outros poetas e dominou minha preferência por anos. Ainda mais que eu era tímido e, numa época em que todos os meus amigos estavam namorando e se casando, eu disfarçava essa timidez jogando futebol quatro vezes por semana e me enterrando nos livros o restante do tempo que sobrava do trabalho.

Decorei textos inteiros de Vinicius, a exemplo do Poema de Aniversário, que eu recitava de memória no ônibus superlotado para um amor platônico meu de então:

Porque fizeste anos, Bem-Amada, e a asa do tempo roçou teus cabelos negros, e teus grandes olhos calmos miraram por um momento o inescrutável Norte...
Eu quisera dar-te, ademais dos beijos e das rosas, tudo o que nunca foi dado por um homem à sua Amada, eu que tão pouco te posso ofertar. 
Quisera dar-te, por exemplo, o instante em que nasci, marcado pela fatalidade de tua vinda. Verias, então, em mim, na transparência do meu peito, a sombra de tua forma anterior a ti mesma.

O mistério da poesia e da vida estava todo lá, nos versos articulados que transpiravam angústia, exasperação e tristeza - mas também amor, entrega e verdade. Foi Vinicius de Moraes quem acabou me empurrando para a escrita da poesia e para o violão, que toco canhestramente. Ouvir sair de meus dedos pela primeira vez os acordes de Onde anda você, que as pessoas insistem em chamar de "E por falar em saudade", foi a suprema glória para um jovem, encantado com a beleza de viver os seus menos de vinte anos, em meio à música e à poesia.

Nas viagens de trem para o interior de São Paulo que fazíamos para jogar futebol pelo Instituto Dom Bosco (comandado pelo rigoroso padre Rosalvino - que engolia muito mal derrotas de seu time e gritava da beirada do campo como um Muricy Ramalho mais raivoso), íamos de jeans e camiseta branca cantando Regra Três, Garota de Ipanema, Por que Será e outras do poeta que, morto em 1980, movia nossa geração, que começava a conhecer o amor, e ingressava na juventude por essa porta de beleza por ele aberta.

Imagem inline 1Alternando minha preferência, sempre retorno, após voltas e voltas, ao poeta que engarrafou o melhor amigo do homem e, hilariamente, caricaturou Magalhães Pinto, à banheira, colocando os óculos de aro grosso na base do próprio joelho:

Imagem inline 2
A foto eu conhecia de há muito, porém a particularidade da caricatura marota feita pelo poeta me foi revelada por sua filha, Georgiana, com quem estive recentemente em um evento em São Paulo.

A esse evento, uma feira cultural organizada pelo Colégio Pioneiro, de tradição japonesa, fomos convidados eu (em razão de meu livro O Jovem Mandela ter sido adotado pela  escola), Georgiana e Maria, filhas do poeta (em razão da comemoração do centenário de nascimento de Vinicius). Entre descidas e subidas de escadarias para participar de atividades com jovens e crianças, fomos trocando ideias e sentimentos; ela, de filha; eu, de leitor antigo da obra de seu pai. A informação óbvia sobre a brincadeira de Vinicius me foi transmitida num desses degraus pelos quais nos cansamos de subir e descer.

Num deles é que também revelei a Georgina o contrabando que fizera em O Jovem Mandela: num dos capítulos, aproveitando a deixa de o próprio herói da luta contra o apartheid ter-se declarado em sua autobiografia um romântico - no que diz respeito às relações amorosas -, incrustei na fala de seu personagem a transcriação de um trecho de Mensagem à Poesia, de Vinicius, talvez um dos mais belos poemas contra a guerra escritos em língua portuguesa.

Prof. Jeosafá, Georgiana e Maria de Moraes nos 100 anos de Vinícius - Colégio Pioneiro.
 Perguntei a Georgiana se era fácil ser filha de Vinicius de Moraes, ao que ela respondeu, entre risos: "Nada que mais de trinta anos de psicoterapia não dê algum jeito". Na verdade, continuou, mais ou menos nessas palavras: "Dividir o pai com todo mundo não foi e ainda não é fácil - afinal, toda filha quer o pai todo pra si". Disse isso e encaminhou-se para ouvir o coral da escola cantar Garota de Ipanema em japonês, numa homenagem emocionante. Depois, subiu ao palco, com sua irmã, Maria, para acompanhar as crianças e os jovens no restante da canção, agora em português, embalada também nas vozes da plateia.

A propósito, a plateia, além do coro, também queria Vinicius só para si.

Texto elaborado para a Revista Princípios.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Fernando “Pessoas”: seu nome é legião

Susana Ventura, o mais recente heterônimo de Fernando Pessoa descoberto

Era novembro de 1935, fazia frio e o céu de Lisboa insistia no gris e no chuvisco, que são a placenta de tudo que é aziago, informe e desconhecido. Era manhã e a recomendação médica estabelecia internação irrevogável.

Então ela ajeitou carinhosamente os volumes inéditos em uma arca, conferindo a ordem para que não dessem trabalho a quem por Ventura os visitasse, em futuro próximo ou não. Estava tudo lá, linha a linha, página por página, tudo devidamente apontado e corrigido. Assim deveriam ser todos os espólios. Baixou a tampa, apertou-a e impulsionou a arca para o mar de penumbra do quarto mal amanhecido.

Dobrou e acondicionou na pequena valise as poucas roupas necessárias para a estada digna no Hospital. Fechou-a. Ajeitou os óculos de aros redondos na face, calçou os sapatos, vestiu o impermeável, trouxe a valise pela alça, apagou a lâmpada pálida, abriu a porta, passou por ela, puxou-a até que encostasse no batente sem produzir palavra, que pensam? coisas também falam, olhando para a chave e depois para o chão. O chuvisco na rua Coelho da Rocha era uma eloquência de pontos finais, não os visse quem não quisesse, não esta, que sendo Ventura, nunca para a desventura fechou os olhos.

Os poemas e outros escritos que ficaram na arca se salvariam, fossem quais fossem as posteriores notícias, afinal, para tanto servem as arcas. Porém os que ficaram na cabeça, os que se esvaíram durante o trajeto de pedras, os que penetraram a neblina da agonia, esses se perderam para sempre, pois uma coisa é ter o coração para aventuras, outra, para adivinhações.

Mas ficaram os rastros que, colhidos por Guazelli, comprovam a existência de mais uma pessoa em Fernando: Susana Ventura. Esta, ciente dos riscos de Alice através do espelho, não hesitou em colher dele um caco em que se mirar e, em forma de ensalmo evocatório, proferir as palavras mágicas: Eu, Fernando Pessoa. Passe um anjo, diga amém, e viva para sempre esse novo caco agora não  mais indescoberto.