Jardineiros e suas searas
Comparações são sempre imprescindíveis na vida, caso
contrário não saberíamos discernir entre o justo e o injusto, o correto e o
incorreto, o bom e o ruim. Já analogias são perigosas, porém, guardando-se os
devidos cuidados, podem ser úteis.
Quando entrei na universidade, em Fort Hare, parte de minhas atribuições era
cuidar de jardim. Outros considerariam essa atividade um tanto sem graça, não
eu, que vivi minha infância descalço, a observar a beleza de colinas, árvores,
arbustos, gramíneas, e os insetos e animais que se beneficiavam da vegetação.
Naturalmente, quando menino, de pé no chão e pedra nas mãos para dar em
passarinho, minha preocupação essencial era trepar nas árvores e sentir, lá do
alto, a brisa fresca ou o mormaço quente a subir do chão empoeirado. E também
observar o azulado das montanhas ou a linha perfeita do horizonte.
Na universidade, se tratava de aproveitar a quietude das plantas para pensar
sobre o curso, sobre a vida e sobre o porquê de haver tantos pobres e tão
poucos ricos sobre a face da terra. Uma ou outra vez levei uma ferroada de
abelha enquanto pensava, mas, muitas vezes, meus pensamentos me ferroaram muito
mais.
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Porém, observei que alguns passarinhos e insetos polinizadores frequentavam
apenas um dos tipos de flores, enquanto outros, apenas o outro. Também observei
que a simples mudança de lugar de um vaso pode injetar novas energias numa
planta ou arruiná-la de uma vez.
E não apenas o grau de incidência de sol era determinante de sucessos ou
insucessos, mas também a exposição ao vento. Algumas plantas suportavam
excelentemente correntes contínuas de vento, outras, em pouco tempo murchavam e
perdiam as folhas, se expostas a elas.
Confesso que estraguei algumas plantas ao realizar poda errada ou,
simplesmente, por temor, não realizar poda nenhuma. Embora um jardim pareça uma
realidade uniforme, não é. Cada planta tem sua própria forma de ser e de viver.
Uma poda mais cuidadosa é exigida por uma, enquanto outra, de tempos em tempos,
necessita de uma poda radical para que novos ramos verdes e sadios surjam.
As particularidades chegam mesmo a minúcias inimagináveis para um iniciante,
como era o meu caso. Em algumas ocasiões, doido para terminar rápido o trabalho
e ir me divertir com os amigos, me precipitava no trato de alguns exemplares.
Uma vez me surpreendi com o desenvolvimento insatisfatório de um tipo de
trepadeira, e passei a observá-la com maior atenção. Ela lançava ramos até
vigorosos para todos os lados, mas estes não chegavam a lugar algum.

Tratar cada planta como um indivíduo do jardim foi uma descoberta muito
significativa. Enquanto algumas exigem cuidados diários, para outras esses
cuidados diários se tornam um estorvo. Algumas aceitam ser manipuladas, outras,
principalmente nas regiões de brotos, o simples calor humano ou toque das
pontas dos dedos as condena à morte. É mesmo curioso, mas essas mesmas plantas
que rejeitam o contato humano, por mais afeto que se imprima nele, aceitam bem
ser manipuladas com hastes de metal ou de bambu.
E há eventos com as quais temos simplesmente que nos conformar: algumas plantas
crescem rapidamente, tornam-se altas e frondosas, enquanto outras crescem
lentamente, nunca atingem grandes alturas e seus galhos são, embora elegantes,
finos como taquaras.
Some-se a isso que é necessário sempre contar com as ervas daninhas, que devem
ser eternamente removidas, pois sempre voltam, seja por um pedaço de raiz ter
permanecido oculto na terra, seja pela ação do vento, que não cessa de
semeá-las.
Porém, há ainda, é preciso reconhecer os limites de nossa condição, as perdas, algumas inevitáveis e extremamente dolorosas.

Nossa luta por um mundo mais justo se
parece muito com um jardim, em que os jardineiros são aqueles que pugnam por
transformações verdadeiras, aqueles que os republicanos espanhóis, em sua luta
contra o fascismo, chamavam “juventude do mundo”.
Mas isso é uma analogia, uma licença poética, que requer o máximo de cuidado e
atenção da parte de quem a recebe, pois o mundo dos dias atuais não é
exatamente um jardim para todos e, embora revolucionários sejam uma espécie de
jardineiros, sua seara é de esperanças e sonhos, que não são nada se não
brotarem do povo, se não estiverem enraizados no povo, e se não florescerem e
frutificarem para o povo.
(Capitulo 13 d'OJovem Mandela)
(Capitulo 13 d'OJovem Mandela)
NOTAS
1) Duas das atividades mais apreciadas por Nelson Mandela eram a jardinagem e a
horticultura. Quando estudante cuidou do jardim de um dos professores de Fort Hare, como uma
de suas atribuições extraclasse. Tão logo lhe foi permitido, cultivou na ilha
de Robben hortaliças e tomates, que inclusive chegaram a abastecer modestamente
a cozinha da penitenciária. Sem nunca perder oportunidade para extrair lições
de tudo na vida, Mandela aproveitou essa sua inclinação para refletir sobre o
movimento de luta contra o apartheid. Em sua autobiografia ele observou: “De
certa forma, eu via a horta como uma metáfora para certos aspectos de minha
vida. Um líder também deve cuidar de sua horta; ele também planta sementes, e
então observa, cultiva e colhe o resultado. A exemplo do jardineiro, um líder
deve se responsabilizar pelo que cultiva; ele deve ocupar-se com seu trabalho,
tentar repelir os inimigos, preservar o que pode ser preservado e eliminar o
que não pode prosperar” (Mandela, 2012, p. 597-598)
2) Em março 1980 o jornal Johannesburg Sunday Post estampa em primeira página o
slogan da campanha internacional LIBERTEM MANDELA! Idealizada por Oliver Tambo
e pelo CNA, agora uma força poderosa e irresistível, a campanha personaliza no
prisioneiro 466 da ilha de Robben todo o esforço pela libertação dos presos
políticos da África do Sul e pelo fim do apartheid. A partir desse momento, a
história se acelera também dentro da penitenciária: a estratégia de aniquilação
dos líderes da luta pela liberdade fracassou. A semente da liberdade, plantada
com cuidado por todo o país, inclusive dentro das prisões, e regada
amorosamente pelo sacrifício de milhões de africanos ao longo dos anos,
tornou-se uma árvore frondosa, que começa a dar uma exuberante florada, cujos
frutos eclodirão em abundância a partir do final dessa década.
3) Leia também: África do Sul faz festa para comemorar os 95 anos de Mandela.
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Jeosafá, professor, foi da equipe do 1o, ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo. É escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, lançou em 2013 O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria); em maio de 2015, nos 90 anos de Malcolm X, O jovem Malcolm X, pela mesma editora; no mesmo ano publicou A lenda do belo Pecopin da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela editora Mercuryo Jovem. Leciona atualmente para o a Educação Básica e para o Ensino Superior privados.