
Tanto o libelo de acusação quanto a peça de defesa giram em
torno de pretensas ofensas à moral pública e à religião. O promotor público
acusa o romancista de imoral e de atentar contra a religião do Estado, enquanto
o defensor o apresenta como um moralista da melhor cepa e de respeitador dos
dogmas cristãos.
Ora, o judiciário, aqui também, se revela um teatro de gosto
duvidoso, que nem de longe necessita quer da verdade (com o
que devia se preocupar), quer da verossimilhança (que,no caso da literatura, não é absolutamente de sua conta). Historicamente, para a "justiça" dos poderosos, uma história precária, contada de forma a
dar álibi para Pilatos lavar as mãos, é o bastante.
É óbvio que a acusação contra o autor é uma forma ridícula
de atores de segunda categoria (o promotor e a corte, que inclusive se arroga a
prescrever na própria sentença o que deva ser a literatura), apanharem carona na notoriedade do escritor, o que obriga o defensor menos a provar a inocência de seu cliente e amigo, mais a livrá-lo
da arapuca montada por invejosos, de má consciência e ainda pior caráter.
Seja como for, vão aí trechos que destaquei, entre outros
que valem a pena conhecer, na mesma edição:
* * *
O Ministério Público
Ação do ministério público interposta pelo advogado
Imperial, Sr. Ernest Pinard

Insipidez no casamento, poesia no adultério! Ora é a
degradação do casamento, ora é sua insipidez, mas é sempre a poesia do
adultério. Eis, senhores, as situações que o sr. Flaubert gosta de pintar e
infelizmente pinta bem demais.
A defesa
Defesa apresentada pelo acusado por meio do advogado sr.
Sénard
O sr. Flaubert não é um homem que vos pinte um encantador de
adultério para fazer em seguida chegar o deus
ex machina; saltas-te com demasiada rapidez da página que lestes para a
última. O adultério em sua obra é somente uma sequência de tormentos, de
pesares, de rermosos; e além disso, chega a uma expiação final, assustadora.
O advogado de defesa citando Lamartine em entrevista com
Flaubert:
Ao mesmo tempo que vos li sem restrição até a última página,
censurei as últimas. Fizeste-me mal, fizeste-me literalmente sofrer! A expiação
é proporcionalmente maior do que o crime; criastes uma morte horrível,
assustadora! Geralmente uma mulher que mancha o leito conjugal deve esperar uma
expiação, mas esta é horrível, é um suplício como nunca se viu. Fostes muito
longe, fizeste-me mal aos nervos; este poder de descrição, nos últimos
instantes de morte deixou-me um indizível sofrimento!
A sentença
Visto que Gustave Flaubert protesta seu respeito pelos bons
costumes e por tudo que está ligado à moral religiosa [...];
Que ele somente cometeu o erro de perder às vezes de vista
as regras que todo escritor que se respeita nunca deve ultrapassar e de
esquecer que a literatura, como a arte, para cumprir bem o que é chamada a
produzir não somente deve ser casta e pura em sua forma e em sua expressão;
O tribunal os absolve [Flaubert, o escritor; Pichat, o
editor; e Pillet, o gráfico!] da incriminação de que foram acusados e os
dispensa sem custos.
* * *
Assim, a sentença favorável a Flaubert, seu editor e o gráfico não se deu pelos motivos justos, quais sejam o de que não o romance ou seu autor são imorais, mas o de que a sociedade burguesa é que é imoral, e o de que há imoralidade no romance é o que vazou dessa sociedade para a literatura. Porém, não se diga que a sentença se deu por erro judicial: se deu pelo caráter farisaico do judiciário burguês, que vige hoje pelo mundo, quem há de negar?
Nesse caso, menos mau que o farisaísmo tenha resultado em justiça, ainda que enviesada, ao grande escritor francês
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