sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Vidas Secas


Resumo de aula
Prezados Alunos do curso de Metologia II da História-USP:

Em primeiro lugar, devo agradecer ao Professor Marcos Silva e a vocês a oportunidade de voltar a ministrar uma aula para o Ensino Superior. Desde que pus o pé na estrada da vida de escritor profissional exclusivamente, há seis anos, não enfrentava uma turma de alunos. Fiquei emocionado e me senti  um tanto enferrujado – tomara não os tenha decepcionado, nem ao amigo que me convidou. Em segundo lugar, vamos ao que interessa:

Os métodos de uma ciência ou de uma atividade intelectual específica podem ser extrapolados  para outras, todavia, com os devidos cuidados e ajustes. Os métodos da história (mas também os da Sociologia, Antropologia, da Geografia e das ciências ditas da natureza) foram amplamente empregados pela literatura, particularmente a partir do século XIX, seja na produção de obras literárias estrito senso, tais como romances, contos, poesia e teatro, seja na produção teórica tais como história literária, crítica ensaística, literatura comparada etc.

O chamado naturalismo explorou descobertas do evolucionismo darwinista, do positivismo comteano, do pessimismo sterneano à larga para representar literariamente a vida das sociedades ou para criticar e estudar textos. Aluísio Azevedo, no Brasil desse mesmo século, enquanto artista das palavras, não foi o único, nem o último, tampouco Silvio Romero enquanto historiador e crítico.

A busca de representar por meio da literatura a realidade climática, social, intelectual, emocional de uma época foi experimentada por vários autores brasileiros, entre os quais, a nossa joia da coroa, Machado de Assis.

Porém, tanto o desenvolvimento incipiente das ciências sociais, quanto o império das ciências biológicas sobre as demais resultou, num momento em que essa ciências resvalavam para explicações rácicas e mesmo racistas do homem, numa hipervalorização de aspectos relativos ao meio e à genética para explicar as relações sociais.

Assim, a aplicação mecânica de métodos originários principalmente no campo da biologia e da botânica evolucionistas levaram a literatura a depositar muitas vezes na conta da natureza as injustiças sociais resultantes da exploração do homem pelo próprio homem, no âmbito do império do capital.

Euclides da Cunha, citado em nossa aula, buscou explicação na genética e na natureza para a resistência do homem nordestino, que para ele seria antes de tudo “um forte”, mas por razões de adaptação do indivíduo, ao longo do tempo, ao meio inóspito, responsável por selecionar os mais aptos e mais fortes - assim, ele encontrou séria dificuldade para explicar como Canudos, um ajuntamento de esfarrapados e fanáticos, derrotou por várias vezes um exército bem armado e treinado.

Para Graciliano Ramos de Vidas Secas, objeto de nossa aula, o sertanejo é também um forte, mas não apenas por gozar de boa compleição física: ele é forte porque tem um sonho: alcançar as terras do sul, que também são suas para ver seus filhos bem tratados e na escola. O sul também é seu, uma vez que é brasileiro, e todo o Brasil lhe diz respeito e lhe pertence.

Muito se tem enfatizado nesse clássico de nossa literatura o aspecto bruto de Fabiano, sua linguagem feita de ruídos guturais, sua resistência aparentemente animalesca. Porém, dói nele ter de matarem o papagaio para comerem, tanto quanto o tortura pôr fim à amiga baleia, tratada como membro da família até que o drama se impusesse de forma violenta e incontornável.

A apropriação da realidade feita por Graciliano Ramos em Vidas Secas, como de resto em todos seus demais romances e biografia (Memórias do Cárcere), apoia-se não numa aplicação mecânica de teorias, métodos analíticos e interpretativos oriundos de campos das ciências da natureza, mas da reflexão sobre conquistas teóricas já no campo das ciências humanas, entre as quais a História, a Geografia human e a Sociologia, que na chamada Escola do Recife desenvolve um pensamento autócone, voltado para nossa realidade, para o bem e para o mal, haja vista o luso-tropicalismo freyreano. Porém, Graciliano se apoia igualmente, e com crescente ênfase, no marxismo teórico e militante, de que tomará partido franca e definitivamente.

Vidas secas, diferentemente de Os sertões situa os problemas cruciais da literatura não nas relações entre homem e meio, mas nas relações injustas, desniveladas e de exploração do homem pelo próprio homem.

O drama que afeta a família de retirantes - representativa das milhares e mesmo milhões envolvidas no mesmo drama - é mais social do que climático , uma vez que a exploração rural aproveita o flagelo da seca para lançar seus tentáculos sobre as terras abandonadas pelo agricultores arruinados.

Estes vão-se embora, enquanto os donos do latifúndio, tão logo as terras sejam abandonadas, avançam suas cercas por sobre elas, de maneira que, superada a seca, seu império territorial se veja acrescido substantivamente, para uma nova fase de exploração concentrada da terra ainda mais aguda.

Subjacente ao drama de Fabiano, Sinhá Vitória, dos filhos mais velho e mais novo, Baleia e papagaio, está a luta de classes, que na nova etapa de acumulação de capital aberta pela revolução de 30, necessita de mão de obra para as lavoura de São Paulo e para a indústria nascente, com seus capitalistas ávidos por lucro fácil a partir de força de trabalho mal remunerada em escala industrial.

É por essa razão que Graciliano Ramos amargará futuramente o cárcere em Ilha Grande, e é também por essa razão que se filiará ao Partido Comunista: seu projeto literário, solidário da luta pelo fim da exploração do homem pelo próprio homem, não se contenta em pôr nas intempéries climáticas a culpa de injustiças decorrentes da ganância capitalista: os pobres sofrem na exata proporção em que os ricos concentram riqueza.

Agradeço a oportunidade de lhes ter ministrado aula na simbólica sala Edgard Carone, da Faculdade de História da USP.  E sendo o patrono dessa sala um guerreiro da liberdade e da justiça social, convido-os a lerem e a postarem comentários no Manifesto em defesa das bibliotecas públicas e escolares de São Paulo e por um política do livro e de incentivo à leitura em nosso município, clicando aqui:

Fórum de Cultura e Educação

Amplexos a todos do
Jeosa

domingo, 29 de julho de 2012

Leitura e Paródia

Este texto, foi publicado na década de 1990 em meu LIVRO DO PROFESSOR, volume sobre práticas de ensino de literatura para os Ensinos Fundamental e Médio, publicado pela Editora Plêiade. Nas próximas postagens, publicarei os demais, com eventuais atualizações.



Rir é o melhor remédio


COTA ZERO
Stop.
A vida parou
ou foi o automóvel? 
Carlos Drummond de Andrade

Fato ocioso para a literatura é o que o autor quis dizer com o que escreveu. No entanto não há dúvida mais presente e insolúvel do que esta. E, porque insolúvel, deve ser descartada?

Que pretenderá Drummond ter dito com o poema com que iniciamos este texto? Ponhamo-nos todos a fazer análises, conjeturas, indagações que vão da filologia à semiótica. E estejamos certos de que nenhuma explicação responderá à nossa questão inicial: nenhuma leitura que fizermos de nenhum texto será a leitura do autor: será sempre a nossa leitura. E, mais importante que nossa, uma nova.

O poema de Drummond é uma realidade textual. Ponhamos o poeta a lê-lo uma, duas, dez vezes. Cada leitura do poeta será uma paráfrase do poema. E por que a leitura do poeta é mais válida do que qualquer outra?  E por que haveria, dentre todas as leituras feitas pelo próprio poeta, uma que fosse a verdadeira, a original, a genética? Eis aqui uma questão a ser explorada.

Objetividade e subjetividade

Nas escolas, a maior parte do ensino de leitura restringe-se à decodificação mecânica dos signos linguísticos, silenciosa ou vocal.  O aspecto decodificador é o mais pobre e inexpressivo da atividade de leitura. Poderíamos chamá-lo até de grau zero da paráfrase, já que a referência ao texto que se lê é direta e a atualização deste na leitura é feita à base da quase não-ação do sujeito-leitor: a atividade do leitor restringe-se ao papel decodificador, não desdobrando-se em atividade interpretadora, portanto subjetiva.

Num outro estágio do ensino de leitura, joga-se com a hipótese de que haveria uma maneira correta de se ler o texto. Com base nessa hipótese, facilmente se encontrará falhas na leitura dos textos feita por alunos e mesmo pelo professor. Porém, falhas à luz de qual leitura correta? A do autor? A do professor, entendido como especialista da área? A dos críticos que contribuíram na formação do professor? A do senso comum?

O fato é que toda leitura é uma paráfrase. E se a leitura do professor é uma paráfrase mais sofisticada, nada impede que ela não tenha nada a ver com o texto parafraseado, posto que a subjetividade é inerente a sua ação.

Então, qual é o problema?

O problema é que, enquanto fica-se à caça do que “teria sido a intenção do autor”, atividade frustrada na origem,  ou de uma verdade única que explique o texto, perde-se a oportunidade de explorar o texto na sua concretude e nas suas infinitas possibilidades de leituras, todas relativas, nunca absolutas, portanto, mais corretas ou menos corretas a depender do ponto de vista, dos critérios adotados e do desempenho tanto de quem lê quanto de quem eventualmente ouve a leitura.

Aliás, cada um lê em um texto o que quiser, inclusive o que está escrito. Ou não? Se não, então a paródia não existe. Sucede que a paródia existe.


Paródia e paráfrase

A realidade de que podemos ler num texto tudo quanto quisermos é exposta pela paródia. Enquanto a paráfrase encerra uma respeitosa reverência ao texto parafraseado - o que é uma excelente máscara para a atividade ostensiva do sujeito parafraseador, a paródia erige-se como peça abertamente desprendida do texto fonte.

A paródia explicita a subjetividade do sujeito que a constrói – contrariamente à paráfrase, que a mascara – e afirma o texto parodiado por constituir-se polo antitético, negativo e destruidor.

De que modo devemos ler  “Cota Zero” de Drummond? Devemos lê-lo rindo? Ou talvez com voz monótona? Devemos lê-lo com expressividade ou com uma voz grave e neutra? Devemos imitar Drummond? Mas, como era mesmo Drummond? Tímido? Como será ler um poema timidamente? Haveria mais de uma forma de leitura tímida? E se Drummond se permitisse, vez por outra, menos sisudez?

E mais, por que deveríamos ler um poema de Drummond à maneira drummondiana, se o que nos atraiu no seu poema foi o que vimos de nós nele, poema?

Questionar é sempre um ótimo passo, se bem que sempre em falso, porém, isso aqui não vem ao caso, e uma vez toda e qualquer leitura implica em risco de maior ou menor grau, então assumamos esses riscos e leiamos o poema à nossa moda. Mas qual mesmo é o nosso modo de ler?

A realidade é que se só temos uma maneira de ler, então somos muito pobres. Pobres como talvez não haja maior pobreza.


Paródia: um caso

A paráfrase é uma paródia amaneirada, que rouba do texto parafraseado a sua autoridade e que mascara a subjetividade do parafraseador. Penso que no ensino de leitura ou de literatura devemos acusar a paráfrase como Cristo acusou aquele beijo. A paráfrase é falsa. E não vai se enforcar nunca.

Numa atividade de leitura, entendida aqui como prática vocal e interpretativa, portanto hermenêutica – a leitura silenciosa não nos interessa aqui –, a paródia permite a destruição dos textos por meio de todas as armas que o sujeito parodiador detém. A leitura paródica permite, por isso, que o sujeito-leitor mobilize toda sua capacidade de leitor-apreendedor e criador, produtor de sentidos.

Todo sujeito possui meios de penetrar os sentidos possíveis de um texto. Se não o faz é porque os seus meios são desmobilizados ou simplesmente censurados, no caso da escola, muitas vezes pelo próprio professor, que considera válidos – dada a sua crença na paráfrase – somente os seus instrumentos de averiguação, sacralizados pela sua formação especializada – e se houvesse somente leitores especializados a própria literatura como a conhecemos hoje inexistiria!

Ao montar uma leitura paródica, o estudante é forçado a inventar os cânones da sua própria teoria literária. Em atividades de leituras paródicas, durante os muitos anos de docência para a Educação Básica e para o Ensino Superior, percebi que cada estudante realizava uma gama de tipos de paródias e não outra. Isto porque construiu em sua mente um instrumental de particular teoria literária que validava certas destruições de textos, mas que evitava outras.

Na leitura de um poema de Ferreira Gullar, “Verão”, uma turma toda de 7ª. série chegou à conclusão de que o poema não se prestava a uma leitura “melada”, lírica, por causa da incidência dos “ãos” e da mensagem de resistência que claramente encerra.

Isso, não seria um grau bastante elaborado de consciência acerca dos problemas técnicos da leitura e da literatura? O cruzamento de explicações de ordem fonológica com explicações de ordem semântica foi mobilizado pelas inúmeras leituras paródicas realizadas – que só eram certas ou erradas à medida em que tudo o é.

Todavia essas paródias não conseguiram desmontar um sentido fortemente construído pelo Gullar-poeta. E exato aquilo que não foi possível desmontar por meio da paródia é que saltou aos olhos dos sujeitos interpretadores que, vencidos, por descobrirem os limites das suas ações interpretativas, venceram, por refugarem conscientemente atribuições de sentido que o poema não admitiria.

Paródia: outro caso

Grande vantagem da leitura paródica é que ela, construída sobre texto parodiado, autoproclama-se autônoma, diferentemente da paráfrase, que depende de comunicação recorrente com o texto fonte. E nisso a paródia põe em evidência as habilidade do leitor-interpretador.

Parafrasear o professor é o que todos fazemos quando não desejamos “complicar” nossas “notas”. Contudo, a paródia não tem essa função referencial e utilitária: é sempre poética.  Um leitor que parodia não apenas apreendeu uma gama dos sentidos possíveis do texto de que se vale, mas  excluiu outros tantos sentidos, e criou sobre o texto parodiado o seu próprio texto.

Sobre este aspecto verificamos, nas centenas – talvez milhares – de leituras realizadas nos cursos que servem a esta nossa reflexão que a paródia mal construída acabava virando uma paráfrase bastante aceitável. No entanto, os próprios estudantes pugnavam por afastar-se da paráfrase, tão evidente ficou tratar-se de um recurso modestíssimo do processo de ensino-aprendizagem.

Outro caso: paródia faz milagre!

Houve o caso particular de dois estudantes com extrema dificuldade de leitura, quer entendida como atividade interpretadora, quer entendida como atividade decodificadora, quer entendida como atividade vocal. Gago um e “envergonhado” o outro, por motivo da sua leitura silábica e de sua auto-atribuída feiura física, ambos excluíam-se das atividades coletivas. Durante leituras “normais”, parafrásicas, não houve o que os demovesse da decisão de auto-isolamento, nem o que os tirasse da situação estéril mas confortável em que se meteram.

Com as atividades de leituras deliberadamente paródicas coletivas a turma sentiu-se mais livre e mais segura em relação às censuras e críticas do professor e dos colegas. O fato de que inicialmente toda a turma teve dificuldades em apreender as técnicas experimentadas igualou todos na situação de iniciantes. Descobriu-se por fim que o estágio de prática de leitura pública da imensa maioria era semelhante: gaguejos, omissão de palavras, os olhos a perderem-se de linha e mesmo de parágrafo, dicção ruim por conta da falta de prática – ao ponto de realizarmos exercícios faciais para melhorar a pronúncia geral de todos.

Nossos amigos venceram a autocensura, que era mais violenta do que a censura dos colegas e do próprio professor. Desandaram a praticar em casa, orientados particularmente pelo professor e perderam o medo da exposição.

Numa atividade que consistia na leitura de um texto em velocidade crescente descobriu-se que o nosso amigo gago lia perfeitamente bem em velocidade crescente. E quanto maior a velocidade, melhor lia. O outro, o tímido, ao perceber que progredia, afundou-se em leituras domiciliares em frente ao espelho. Relatou que tinha mais dificuldades quando ficava ansioso, por isso queria, ao ler diante do espelho, ver a cara que tinha ao errar a pronúncia.

O caso acima ilustra como o próprio estudante foi à luta contra suas limitações, inventando inclusive uma  técnica bastante defensável: a do espelho. Sua leitura saltou de silábica, no curso de pouco tempo, para um estágio mais corrente. Já com a sua feiura, não houve o que fazer – não vou aqui perder a piada, uma vez que ele a deu de bandeja.

Paródia: sem contraindicações

Os estudantes, ao montarem suas leituras paródicas, mobilizaram todos os seus conhecimentos, selecionando entre eles os adequados aos propósitos desejados. Todavia, tinham grande consciência de que aquelas eram suas leituras. Passaram a pugnar pelo direito de que suas leituras fossem aceitas, debatendo questões de ordem literária, filosófica, gramatical e mesmo idiossincráticas. A leitura do professor foi entendida como mais uma, dentre inúmeras possíveis.

De toda essa atividade o que mais importa é que a prática de leitura paródica mobilizou os conhecimentos dos estudantes. O texto em estudo foi mastigado, digerido, destruído, reconstruído sob os ângulos mais surpreendentes e o texto, a obra, foi mantida no centro do estudo o tempo todo. Acreditamos que isto é mais importante do que emitir receitas. E, para não perder também esta piada, vamos a uma receita.


RECEITA

  • Selecionar um trecho de sermão do Padre Vieira. Distribuir cópias desse trecho aos estudantes.  Solicitar aos estudantes que acompanhem a leitura do professor. O professor inicia a leitura de um modo e altera-a paulatinamente.
  • O professor prossegue a leitura – acompanhado pela classe – desviando-a para a imitação de um discurso de tribuna.
  • O professor, acompanhado pela turma, faz uma outra leitura, agora irônica, do texto.
  • O professor escolhe um estudante para realizar uma leitura paródica, a qual todos acompanharão em voz alta.
  • O professor propõe tipos de leituras públicas individuais selecionando estudantes para realizá-las. Os restantes estudantes ouvem as leitura feitas pelos colegas, criticam-na e realizam as suas próprias leituras, que serão também alvo de comentário do professor e dos outros colegas.
  •  O professor separa em grupos os estudantes, que realizarão leituras concorrentes do mesmo texto.
  • O professor organiza um menu  de leituras (romântica, modernista, exaltada, pessimista, irônica, sarcástica etc., de acordo com o item curricular em estudo) e os estudantes propõem-se a realizar esta ou aquela, sendo avaliados pelo público da sua própria turma acerca do grau de eficácia e dos desempenhos alcançados.

Indicações

Aconselhável para todos os casos.

Contraindicações

Não se tem histórico.

Reações adversas

No princípio podem ser observados processos de resistência, que todavia cessam diante da manutenção da terapia.

Advertências 

No estudo das escolas e dos estilos literários, pode-se avaliar até mesmo a profundidade de entendimento do estudante pela leitura pública dos textos literários. A leitura mecânica dos textos literários indica baixíssimo grau de apreensão dos sentidos envolvidos. 

A administração de qualquer nova terapia deve seguir acompanhamento cuidadoso. A associação desta terapia com música pode causar dores-de-cabeça na sala ao lado. Particularmente se pretender-se parodiar um texto usando Carmina Burana ou o Bolero de Ravel como base musical.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Leitura literária na escola

QUESTÃO DE SINTONIA

Este texto foi publicado na década de 1990 em meu LIVRO DO PROFESSOR, volume sobre práticas de ensino de literatura para os Ensinos Fundamental e Médio, publicado pela Editora Plêiade. Nas próximas postagens, publicarei os demais textos, com eventuais atualizações.

Lembro os leitores que na Bienal do Livro deste ano, em São Paulo, lançarei, pela Edtiora Nova Alexandria, ZONA SUL, o terceiro romance de minha série ERA UMA VEZ NO MEU BAIRRO.

1
Este texto nasceu e cresceu da necessidade de sistematizar algumas experiências doces e não tão doces adquiridas durante a minha atividade de professor de Língua Portuguesa de Ensino Fundamental e de Ensino Médio do ensino regular e do supletivo. A bem da verdade, as experiências “não tão doces” estimularam-me mais à produção deste texto do que as bem sucedidas.

Isto porque me pareceu não haver sentido em refletir acerca de coisas que deram certo num ou noutro momento. Não sei se erro, mas parece-me que as coisas que dão certo morrem potencialmente: nosso time foi campeão; ótimo, mas o que fazer dessa realidade, a não ser comemorar? Nosso time foi mal no torneio: há já aí uma questão viva a ser tratada, pensada, mastigada.

 2
Ao mesmo tempo professor do curso regular de Ensino Fundamental, durante o dia, e  do curso supletivo, durante a noite, senti a necessidade de estabelecer comparação entre as duas atividades. Por motivo de objetividade, tratarei apenas da questão leitura-literatura, que é o tema central destas reflexões. E por motivo de ordem ética não se especificará o estabelecimento de ensino em que as experiências se deram.

 3
 A convicção de que o texto é o objeto central do trabalho de leitura encontrou resistências. Da parte da direção do estabelecimento de ensino, da parte dos estudantes e da parte dos colegas. Não por questões teóricas, mas por questões práticas.

4
Os estudantes do curso regular estavam habituados com as famosas “fichas de leitura”. Do total de aulas semanais de Língua Portuguesa, apenas duas aulas estavam reservadas à leitura e à produção de textos, nas quais o item “ortografia” era a questão dominante, da 5a. à 8a. série. Mas o item “ortografia” dividia espaço ainda com a atividade de leitura silenciosa. As restantes aulas consistiam em overdoses de manuais de gramática.

No curso supletivo a questão era dramática: língua portuguesa tornara-se sinônimo de análise sintática. Não é necessário dizer que as aulas de Língua Portuguesa tornaram-se a maior unanimidade da escola: eram absolutamente detestadas.

5
Confesso que, de início, foi uma grande tristeza descobrir que a língua de Camões, de Pessoa, de Machado, de Graciliano, de Amado, de Drummond, de Mário, de Bandeira, de Clarice, de Braga, de Gullar, de Trevisan, de Vinicius, de Chico, de Gil,  de Cartola, de Elis, de Dalva, de Maria, de João, de José, de Ednalva, minha e tua era detestada.

6
Que fazer?

7
Obviamente, primeiro, comer o pão que o diabo amassou.  Depois, mas não muito depois, na verdade quase junto a isto, iniciar uma campanha de amplo esclarecimento das opiniões conflitantes, das divergentes, das opostas e das radicalmente contra  qualquer mudança.

De início a campanha sofreu ataques. Mas depois, sofreu verdadeiros bombardeios. Enfim, as forças contrárias eram tão poderosas que decretaram que eu era um chato. E que não valia a pena perder tempo comigo. Então decretaram que minha punição seria implementar aquilo pelo que eu tanto os aborrecia: o simples direito de, alterando o planejamento, reservar à leitura, como conteúdo curricular, não apenas como prática de ensino, o espaço que lhe é devido.

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Foi aí que começou o inferno deles.

9

As 5as. e 6as. séries toparam de saída. Combinamos as mais incríveis técnicas de leitura. Dentre elas, algumas foram torpedeadas de saída. O conto “O ciclista”, de Dalton Trevisan, fez sucesso e polêmica - e barulho, muito barulho.

Combinou-se que iniciaríamos a leitura, todos os quase quarenta alunos mais este professor que vos escreve, numa velocidade tão lenta que “desse nos nossos nervos”. Paulatinamente acelerando a oração, teríamos de atingir o máximo de velocidade de leitura,, sem comer palavras ou sílabas pelo caminho, e o máximo de harmonia entre as vozes.

Em uma aula, uma aula, não mais que uma aula, a técnica estava implementada. E os erros coletivos e individuais relativos à aprendizagem da técnica eram saboreados às gargalhadas.

Propôs-se que  alguns estudantes fossem selecionados para testar a técnica individualmente. Problema instalado, pois o clima de segurança e de não-censura estimulou todos a candidatarem-se.

Passado um tempo, descobriu-se que toda a turma treinava em casa para a aula de leitura. Égalité, liberté, fraternité.

10
Fui chamado à diretoria do estabelecimento: as técnicas de leitura estavam atrapalhando as aulas dos outros colegas.

11
Os alunos da 7a. e da 8a. séries foram reclamar à diretoria que o professor de português não ensinava as novas técnicas de leitura que ensinava às 5as. e 6as. séries.

12
Numa reunião com os outros professores, acertaram-se pontos-de-vista. Programando e deslocando conteúdos, as práticas de leitura foram mantidas e ninguém se sentiu prejudicado.  O professor da sala vizinha àquela em que seria aplicada a ruidosa técnica de leitura programaria sua aula de modo a que as práticas pedagógicas não entrassem em contradição.

Obviamente que problemas continuaram a ocorrer. Todavia eram já problemas de adequação concreta, tais como: “Amanhã vou aplicar aquela técnica do barulho, tem jeito?” ou “Amanhã vai haver prova, será que dá pra...” É lógico que dá. Sempre acaba dando.

Mais tarde foi que refleti sobre o fato de que as práticas adotadas nas  aulas de leitura promoveram uma verdadeira alteração nas práticas dos outros colegas. Como que com susto verifiquei as proporções e extensões das atividades a que me propusera:  minha ação, transformada pelas ações de outros colegas e de professores do curso superior, agiu sobre a ação dos outros colegas, numa reação em cadeia.

Compreendia-se a resistência: era todo um cotidiano escolar em vias de ser alterado, não apenas o fórum interno das aulas de língua portuguesa.

Logo outros professores estavam experimentando novas técnicas e práticas em suas disciplinas específicas. Já se conversava sobre práticas adequadas a conteúdos, relações entre práticas disciplinares, resultados positivos ou negativos de práticas pedagógicas etc.

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O curso supletivo foi outra história. Os professores já insistiam por maior criatividade e liberdade na aplicação dos seus conteúdos específicos. Vencida a resistência da direção do estabelecimento, o problema centralizou-se nos estudantes.

As duas maiores de resistências vieram na forma de oposição à leitura coletiva de textos: muitos achavam “infantilidade” semelhante prática,  outros argumentavam que “ninguém poderia obrigá-los a ler”. Dois enfrentamentos, duas barreiras a serem transpostas. Tanto melhor que fossem duas - se os antigos estivessem certos  “quem tem um não tem nenhum”.

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Convenci a coordenação pedagógica e a direção escolar  da necessidade de que a leitura fizesse parte do planejamento não como prática pedagógica, mas como item de conteúdo. Pronto. Agora já podia-se avaliar o aluno pela sua leitura - entendida aqui como atividade vocal e interpretativa. Aqueles que desejavam ser obrigados conseguiram-no.

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A 7a. série supletiva ajudou a dissolver o argumento da “infantilidade”. Todos, adultos e bem-humorados, toparam as atividades: leram Mário de Andrade como um coral de canto gregoriano;  leram Mário como uma narração de futebol, leram Mário como numa marcha militar, leram Mário-funk, Mário-rap, Mário-samba, Mário-pagode, Mário-baião, Mário-triste, Mário-alegre, Mário-exaltado.
E tentaram ler Mário-Mário, para tanto realizando pequena pesquisa sobre o poeta. Houve divergências sobre como Mário leria o seu próprio texto. E houve divergência sobre quem era Mário. E aqui não houve sintonia. Mas até aí...

16
 Até hoje ninguém sabe quem é Mário.