Que fazer? Artistas assim são, embriagam-se sempre de vida e, havendo dignidade pouca nela, embriagam-se doutras coisas. Esse é Domingos Mau-Tempo, de bar em bar, perdido o rumo de casa na confusão da embriaguez, que se não distingue o latifúndio que o vergasta, aplaca sua consciência insatisfeita.
Quando atar a um pé de pau sua corda de enforcar-se, terá pensamentos na esposa, Sara da Conceição, e nos filhos que deixará. Porém, já separado em definitivo deles por conta de seu desregramento imprevisível, de suas andanças e de seus sumiços episódicos, saltará no ar e morrerá suspenso, com mais esse nó na garganta.
Do pai, João Mau-Tempo, o primogênito, herdará o sobrenome, recebido como mensageiro de maus presságios ou como objeto de galhofa, e a indisposição em relação ao latifúndio que, com o padre Agamedes e a guarda, forma a santíssima trindade da exploração, sempre violenta sobre os camponeses do Além-Tejo, sul de Portugal, atados à terra como outrora estiveram os negros africanos às correntes da escravidão.

A esse peso no corpo – de resto, espécie de força de gravidade de uma estrutura fundiária escandalosamente injusta e cruel, cujos efeitos se abatem sobre todos os pobres – João Mau-Tempo acrescentará o dos castigos por – ao invés do pai, que esmagado pelo modo de vida semi-feudal se enforcou – aderir à resistência comunista que se alastra por meio de folhetos volantes largados pelo caminho e do jornal Avante! do PC Português.
Diferentemente do pai, que sucumbe pelas próprias mãos, João Mau-Tempo resistirá a setenta e duas horas de ininterruptas torturas, sairá do calabouço alquebrado, mas vivo para participar ativamente de uma semeadura cujas flores desabrocharão em forma de cravo, na Revolução de 25 de abril de 1974, a qual encontrará seu filho, Antônio Mau-Tempo, em idade de compreender os mecanismos injustos, mas passíveis de serem derrotados, que, no campo, atam o homem à terra e, na cidade, o homem à máquina.
Por meio da saga dos Mau-Tempo, José Saramago destrinça literariamente entre setenta e oitenta anos de lutas camponesas no Sul de Portugal, e põe em cena personagens cuja beleza reside em parte na arte do escritor, mas também em grande parte nos próprios referenciais da vida real em que ele se inspirou.

Quanto a Antônio Mau-Tempo, neto do primeiro e filho do segundo, no enredo do romance participante das manifestações que vão dar na Revolução dos Cravos, de 1974, me ponho a pensar: já ancião, como terá recebido a vitória da direita portuguesa nas eleições de 2011?
Tremo de horror em pensar que ele tenha participado com seu voto dessa “consagradora” vitória, uma vez que sem o voto popular,ela não se teria concretizado. Nesse caso, teria feito como o avô: passado a corda no pescoço e saltado para o nada.
Porém, ouso um palpite. Não: Antônio Mau-Tempo não saiu ao avô, mas ao pai.
Nesse caso, a luta continua.