quarta-feira, 8 de junho de 2011

Levantado do Chão, de José Saramago

Domingos Mau-Tempo é um giramundo, um sapateiro, um artesão cujo espírito não se ajusta comodamente ao modo de vida do latifúndio alentejano de fins do século XIX e início do XX. Com sua esposa, vagará de lugar em lugar em busca de emprego para sustentar a família e de taberna para sustentar o vício da bebedeira.

Que fazer? Artistas assim são, embriagam-se sempre de vida e, havendo dignidade pouca nela, embriagam-se doutras coisas. Esse é Domingos Mau-Tempo, de bar em bar, perdido o rumo de casa na confusão da embriaguez, que se não distingue o latifúndio que o vergasta, aplaca sua consciência insatisfeita.

Quando atar a um pé de pau sua corda de enforcar-se, terá pensamentos na esposa, Sara da Conceição, e nos filhos que deixará. Porém, já separado em definitivo deles por conta de seu desregramento imprevisível, de suas andanças e de seus sumiços episódicos, saltará no ar e morrerá suspenso, com mais esse nó na garganta.

Do pai, João Mau-Tempo, o primogênito, herdará o sobrenome, recebido como mensageiro de maus presságios ou como objeto de galhofa, e a indisposição em relação ao latifúndio que, com o padre Agamedes e a guarda, forma a santíssima trindade da exploração, sempre violenta sobre os camponeses do Além-Tejo, sul de Portugal, atados à terra como outrora estiveram os negros africanos às correntes da escravidão.

João Mau-Tempo consumirá sua infância no trabalho da terra tão logo suporte o peso de uma segadeira, foice, enxada ou pá. Em jornadas de dezesseis, dezessete, dezoito horas atravessará a juventude e penetrará a velhice arrastando às costas o fardo do latifúndio, que para os pobres constitui-se de exaustão física e nada de seu além da cova em que se deitará por último.

A esse peso no corpo – de resto, espécie de força de gravidade de uma estrutura fundiária escandalosamente injusta e cruel, cujos efeitos se abatem sobre todos os pobres – João Mau-Tempo acrescentará o dos castigos por – ao invés do pai, que esmagado pelo modo de vida semi-feudal se enforcou – aderir à resistência comunista que se alastra por meio de folhetos volantes largados pelo caminho e do jornal Avante! do PC Português.

Diferentemente do pai, que sucumbe pelas próprias mãos, João Mau-Tempo resistirá a setenta e duas horas de ininterruptas torturas, sairá do calabouço alquebrado, mas vivo para participar ativamente de uma semeadura cujas flores desabrocharão em forma de cravo, na Revolução de 25 de abril de 1974, a qual encontrará seu filho, Antônio Mau-Tempo, em idade de compreender os mecanismos injustos, mas passíveis de serem derrotados, que, no campo, atam o homem à terra e, na cidade, o homem à máquina.

Por meio da saga dos Mau-Tempo, José Saramago destrinça literariamente entre setenta e oitenta anos de lutas camponesas no Sul de Portugal, e põe em cena personagens cuja beleza reside em parte na arte do escritor, mas também em grande parte nos próprios referenciais da vida real em que ele se inspirou.

Do giramundo, que se enforca por não se ajustar à uma vida indigna, ao militante clandestino, que enfrenta a tortura por lutar contra essa mesma existência aviltada, Saramago colhe traços para compor um enredo com um pé na ficção, outro na realidade, dois braços na enxada e dois olhos em um futuro mais digno para o artista, representado na figura de Domingos Mau-Tempo, e para o trabalhador, na de seu filho, João Mau-Tempo.

Quanto a Antônio Mau-Tempo, neto do primeiro e filho do segundo, no enredo do romance participante das manifestações que vão dar na Revolução dos Cravos, de 1974, me ponho a pensar: já ancião, como terá recebido a vitória da direita portuguesa nas eleições de 2011?

Tremo de horror em pensar que ele tenha participado com seu voto dessa “consagradora” vitória, uma vez que sem o voto popular,ela não se teria concretizado. Nesse caso, teria feito como o avô: passado a corda no pescoço e saltado para o nada.

Porém, ouso um palpite. Não: Antônio  Mau-Tempo não saiu ao avô, mas ao pai.

Nesse caso, a luta continua.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Do lirismo à galhofa, num salto de Jerônimo

Este blog salta do lírico para a galhofa gritando: JERONIMÔÔÔÔÔ, o que explica a presença de Vinicius de Moraes neste espaço por uma semana e até hoje, e a de Bruno Azevêdo de hoje até quarta-feira próxima, isso se o Armagedon não acontecer ou se dele escapar este virtual espaço de meditargumentação litero-humorístico-cineclubeástica.

Escritor maranhense com cara de cineasta da boca do lixo paulistana, só porque São Luís está mais próxima de Nova Iorque do que São Paulo, Bruno Azevêdo se acha no direito de entrar de sola na cultura texana ianque pelo atalho goiano das duplas sertanejas de música de corno. Tudo bem, galhofa também é cultura.

Faço aqui uma digressão: dizem que vem da terra dos Sarney, mas também de Aluísio Azevedo, vamos mostrar o lado bom de todas as coisas, a anedota segundo a qual a espingarda de cano duplo foi inventada para matar dupla caipira. Maledicência contra os maranhenses, pois essa piada existe desde que os filmes de caubói entortaram a cabeça dos filhos dos verdadeiros caipiras, com micagens de chapéu de mocinho do velho oeste.

Breganejo Blues é um deboche hilário de Bruno Azevêdo, que junta dupla sertaneja oportunista com quadrinhos Tex, bate tudo no liquidificador de uma linguagem esperta, cheia de segundas intenções, despeja num copo de coquetel paródico, chacoalha mais um pouco e põe sobre o balcão do boteco maranhense, à frente do qual o leitor está sentado, e diz, toma aí, hombre, de una sola vez, sem gorgolejar.

Não sei porque, o andamento enredo me lembra A grande arte, de Rubem Fonseca. Há um clima de perseguição policial interessante, meio noir, muito embora o escracho explícito compareça a cada parágrafo, enquanto no escritor mineiro radicado no Rio esse escárnio de linguagem seja mediado pelo lirismo que, afinal, sobreleva, afinal, todo escritor mineiro tem dívidas enormes com Tomás Antônio Gozaga, não nega, e vai pagando de pouquinho.
Adailton, espada, e Adahilton, vulgo Ada Hilton, transformista assumido, porém clandestino, estão envolvidos em trapaças típicas do show business tupiniquim: jabaculê para emplacar sucessos, músicas compradas a terceiros, bacanais orgiásticos encobertos pela imagem de dupla sertaneja bom-mocista, tráfico de drogas com escolta policial em avião de turnê e otras cositas más.

Noutras palavras, nem metade do que essas turmas fazem de mal ao país e aos ouvidos está na vitrine, mas o leitor fica autorizado, pela amostragem, a inferir o que rola nos bastidores das duplas de sucesso que estragam nosso gosto musical com aquelas caras de vaqueiros texanos e com aqueles falsetes que não enganam ninguém, a não ser quem gosta desse gênero (se é que é gênero) musical (se é que é música) – aqui a gente é assim, arruína a imagens, arruma inimigo, mas conta a piada inteira.

Quem leu Galvez, Imperador do Acre, de Márcio Souza, não se frustará ao ler Breganejo Blues. Estão na mesma corrente da literatura picaresca, que no Brasil tem pratos e pratos e pratos cheios de assunto para chorar de rir, ou só chorar, ou só rir, a depender de o freguês conseguir engolir tudo sem gorgolejar.

De quebra, o leitor passeia pela mão de um narrador envolvente e matreiro por lugares proibidos, aos quais, no entanto, teria medo de ir sozinho, ou nos quais teria vergonha de ser flagrado acompanhado.

Como se está, porém, no mundo cínico da literatura picaresca, esse adjetivo cheio de segundas intenções, ninguém vai reparar quem está segurando na mão ou em outras partes de quem, que esses preconceitos no Brasil já acabaram, só não avisaram o Jair Bolsonaro e o lobie religioso  ultraconservador mal humorado, positvos e operantes por todo lugar, lobie para o qual, diferente de Mário de Andrade, os problemas do Brasil são três: a falta de fé e moral, as droga e o homossescualismo.

A não ser que se leia o livro no ônibus e um curioso ou uma curiosa pegue os olhos nas letras mal sediciosas dessa novela trezoitão, cano duplo, está o leitor liberado para ler o dito cujo no busão. Além do mais, o ônus de quem fica fuxicando as intimidades das páginas alheias recai sobre o próprio fuxicante.

No final deste mês, publico nesta mesma bat hora e neste mesmo bat blog ENTREVISTA TARJA PRETA com Bruno Azevêdo. Se você não sentir dor de barriga de tanto rir, cara e caro radiouvinte, mando a produção devolver o dinheiro da entrada. Aliás, para receber esse valor, o leitor deverá enviar mensagem para: http://bazevedo.blogspot.com, que não sou trouxa.

FONTE: Bruno Azevêdo. Breganejo Blues - Novela trezoitão. São Luís. Ed. Pitomba, 2009.

terça-feira, 24 de maio de 2011

O dia da criação, de Vinicius de Moraes


Nasce, em meio a forte temporal, na madrugada de 19 de outubro , no antigo nº 114 (casa já demolida) da rua Lopes Quintas, no Jardim Botânico, ao lado da chácara de seu avô materno, Antônio Burlamaqui dos Santos Cruz. São seus pais d. Lydia Cruz de Moraes e Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, este, sobrinho do poeta, cronista e folclorista Mello Moraes Filho e neto do historiador Alexandre José de Mello Moraes. FONTE: http://www.viniciusdemoraes.com.br

Esta semana uma amiga, que tive o prazer de conhecer em uma de minhas infindáveis peregrinações à Meca da literatura, a professora Ademilde Souza, Coordenadora de Ensino de Suzano, na Grande São Paulo, chamou minha atenção para a expressão “Overture do Fiat”, no poema “O dia da criação”, de Vinicius da Moraes.

Poderia ter conversado com ela sobre esse particular por e-mail, como fizemos outras vezes, porém isso significaria desprezar a chance de abordar em público o poeta que embalou minha adolescência e juventude.

De maneira que esta conversa, em sendo privada, pode ser acompanhada, sem o menor receio de censura, pela leitora ou pelo leitor que não seja Ademilde.

Viu, Ademilde, então, como eu ia dizendo, né, em que pese a expressão fruto da discórdia ter sido enfatizada pelo poeta em itálico no poema, ela não pode ser compreendida isoladamente, muito embora os dois termos que a compõem tenham sentidos próprios inequívocos.

O termo “Overture”, do inglês, remete diretamente à música, mais especificamente à música sinfônica, dita clássica, que por tradição tem um movimento de abertura. O segundo termo da expressão, “Fiat”, remete à Bíblia, especificamente ao livro Gênese, 1, 27, que, aliás, serve de epígrafe ao poema: “Fiat lux”. Deus disse: faça-se a luz, e a luz se fez e por aí vai.

Vou falar mais baixo, que em sendo esta conversa pública, pode haver quem se incomode.

Então, Adê, como dizia, o poeta eleva Deus à condição de regente de orquestra sinfônica. Alguns dirão que isso seria rebaixar Deus ou representar um deus rebaixado, nesse caso, o Diabo. Como não desejo atiçar ódios religiosos nem cair em tentação de polêmicas santas ou diabólicas, vou falando baixo, quem não gostou, finja que não ouviu, que é isso comportamento civilizado que demonstra grande elegância de quem o pratica.

Pois bem, essa orquestra sideral ao invés de produzir som, produz luz. Convenhamos, é uma bela imagem, seja qual for o regente. A expressão em destaque está na estrofe a seguir, que lhe serve de placenta, estou eu agora a escorregar para o vocabulário sedicioso da reprodução humana:

"Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens,
                                                                            ó Sexto Dia da Criação.
De fato, depois da Overture do Fiat e da divisão de luzes e trevas
E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra
E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra
Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado"

A “Overture do Fiat” corresponde ao momento exato em que Deus separou as trevas da luz, ou, na metáfora sinfônica, o som do silêncio. O motor da vida, posto em movimento, segundo o poeta, na estrofe acima, foi muito bem até o sexto dia, quando o Regente Supremo decidiu abandonar o Andante, partir para o Allegro Vivace e fazer o homem e a mulher.

É evidente se tratar de um largo abraço da ironia, dado por quem já se afasta das Escrituras, sim, pois esse poema pertence à segunda parte da Antologia Poética, organizada pelo próprio Vinicius:

“Não obstante certas disparidades, determinadas pela necessidade de demarcar bem as duas tendências referidas [na Antologia], impôs-se o critério cronológico para uma impressão verídica do que foi a luta mantida pelo A.[Autor] contra si mesmo no sentido de uma libertação , hoje alcançada, dos preconceitos e enjoamentos de sua classe e do seu meio, os quais tanto, e tão inutilmente, lhe angustiaram a formação.”

Será que estamos incomodando alguém com nossa conversa em que só eu falo, Adê? Bom, depois você comenta o quanto quiser, mas sempre sem perturbar o próximo, que em estando ele ou Ele próximo demais, pode estar a ouvir o que não queira, e em estando longe, pode estar a ouvir tudo enviezadamente e colher interpretações excessivamente livres para um assunto em si já propenso a todo tipo de interpretações mais ou menos eréticas, e quem ouviu “eróticas” ouviu mal, embora o Gênese trate exatamente disso, e ninguém veja mal em disso tratar. Ai que este parágrafo me saiu a lusitano.

Voltando ao Brasil do Vinicius, Adê, Deus não fez a luz, ele ordenou que a luz se fizesse por conta própria. Disse eu “voltando ao Brasil” e disse mal, porque não há garantia que esse portentoso evento se tenha dado por aqui, mas isso não é objeto deste artigo.

Segundo o poeta:

"Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa
Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos
[...]
Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes
Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia
Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo
Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda e missa de sétimo dia."

Veja, Adê, que desagradável pode ser conversar sobre poesia em público: já um mal educado me cutucou com o cotovelo achando que as palavras sarcásticas há pouco ditas são minhas... quem dera, são do grande poeta, que não está aqui para levar cotoveladas de gente fanática e ruim de verso e mais ainda de riso.

Agora, que o poeta está a afirmar ser o Maestro um mal regente, ah, isso sou eu quem digo, pois a lógica elementar permite, pelo elementar mecanismo dedutivo: tivera Ele acertado o movimento final, o Allegro Vivace – não o inicial, o Fiat, pois este, Andante, acertou em cheio – não haveria necessidade dos Dez Mandamentos, insinuados no versos da estrofe aí de cima.

Bem, Adê, levei outra cotovelada, já não pelo que disse o poeta, mas agora pelo que disse eu. Não sei se contribui com suas dúvidas, que, espero, só tenham aumentado com este meu artigo, santo em ironia e dolorido nas costelas, às quais talvez uma falte, a não ser que Adão não seja mesmo mãe de Eva, do que sempre desconfiei por princípio filosófico cético, que se bem não faz, nunca soube que mal fizesse. De todo modo, não sou a pessoa mais bem informada do mundo.

FONTE: Vinicius de Moraes. Antologia Poética. Companhia das Letras, 2009.