terça-feira, 24 de maio de 2011

O dia da criação, de Vinicius de Moraes


Nasce, em meio a forte temporal, na madrugada de 19 de outubro , no antigo nº 114 (casa já demolida) da rua Lopes Quintas, no Jardim Botânico, ao lado da chácara de seu avô materno, Antônio Burlamaqui dos Santos Cruz. São seus pais d. Lydia Cruz de Moraes e Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, este, sobrinho do poeta, cronista e folclorista Mello Moraes Filho e neto do historiador Alexandre José de Mello Moraes. FONTE: http://www.viniciusdemoraes.com.br

Esta semana uma amiga, que tive o prazer de conhecer em uma de minhas infindáveis peregrinações à Meca da literatura, a professora Ademilde Souza, Coordenadora de Ensino de Suzano, na Grande São Paulo, chamou minha atenção para a expressão “Overture do Fiat”, no poema “O dia da criação”, de Vinicius da Moraes.

Poderia ter conversado com ela sobre esse particular por e-mail, como fizemos outras vezes, porém isso significaria desprezar a chance de abordar em público o poeta que embalou minha adolescência e juventude.

De maneira que esta conversa, em sendo privada, pode ser acompanhada, sem o menor receio de censura, pela leitora ou pelo leitor que não seja Ademilde.

Viu, Ademilde, então, como eu ia dizendo, né, em que pese a expressão fruto da discórdia ter sido enfatizada pelo poeta em itálico no poema, ela não pode ser compreendida isoladamente, muito embora os dois termos que a compõem tenham sentidos próprios inequívocos.

O termo “Overture”, do inglês, remete diretamente à música, mais especificamente à música sinfônica, dita clássica, que por tradição tem um movimento de abertura. O segundo termo da expressão, “Fiat”, remete à Bíblia, especificamente ao livro Gênese, 1, 27, que, aliás, serve de epígrafe ao poema: “Fiat lux”. Deus disse: faça-se a luz, e a luz se fez e por aí vai.

Vou falar mais baixo, que em sendo esta conversa pública, pode haver quem se incomode.

Então, Adê, como dizia, o poeta eleva Deus à condição de regente de orquestra sinfônica. Alguns dirão que isso seria rebaixar Deus ou representar um deus rebaixado, nesse caso, o Diabo. Como não desejo atiçar ódios religiosos nem cair em tentação de polêmicas santas ou diabólicas, vou falando baixo, quem não gostou, finja que não ouviu, que é isso comportamento civilizado que demonstra grande elegância de quem o pratica.

Pois bem, essa orquestra sideral ao invés de produzir som, produz luz. Convenhamos, é uma bela imagem, seja qual for o regente. A expressão em destaque está na estrofe a seguir, que lhe serve de placenta, estou eu agora a escorregar para o vocabulário sedicioso da reprodução humana:

"Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens,
                                                                            ó Sexto Dia da Criação.
De fato, depois da Overture do Fiat e da divisão de luzes e trevas
E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra
E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra
Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado"

A “Overture do Fiat” corresponde ao momento exato em que Deus separou as trevas da luz, ou, na metáfora sinfônica, o som do silêncio. O motor da vida, posto em movimento, segundo o poeta, na estrofe acima, foi muito bem até o sexto dia, quando o Regente Supremo decidiu abandonar o Andante, partir para o Allegro Vivace e fazer o homem e a mulher.

É evidente se tratar de um largo abraço da ironia, dado por quem já se afasta das Escrituras, sim, pois esse poema pertence à segunda parte da Antologia Poética, organizada pelo próprio Vinicius:

“Não obstante certas disparidades, determinadas pela necessidade de demarcar bem as duas tendências referidas [na Antologia], impôs-se o critério cronológico para uma impressão verídica do que foi a luta mantida pelo A.[Autor] contra si mesmo no sentido de uma libertação , hoje alcançada, dos preconceitos e enjoamentos de sua classe e do seu meio, os quais tanto, e tão inutilmente, lhe angustiaram a formação.”

Será que estamos incomodando alguém com nossa conversa em que só eu falo, Adê? Bom, depois você comenta o quanto quiser, mas sempre sem perturbar o próximo, que em estando ele ou Ele próximo demais, pode estar a ouvir o que não queira, e em estando longe, pode estar a ouvir tudo enviezadamente e colher interpretações excessivamente livres para um assunto em si já propenso a todo tipo de interpretações mais ou menos eréticas, e quem ouviu “eróticas” ouviu mal, embora o Gênese trate exatamente disso, e ninguém veja mal em disso tratar. Ai que este parágrafo me saiu a lusitano.

Voltando ao Brasil do Vinicius, Adê, Deus não fez a luz, ele ordenou que a luz se fizesse por conta própria. Disse eu “voltando ao Brasil” e disse mal, porque não há garantia que esse portentoso evento se tenha dado por aqui, mas isso não é objeto deste artigo.

Segundo o poeta:

"Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa
Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos
[...]
Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes
Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia
Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo
Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda e missa de sétimo dia."

Veja, Adê, que desagradável pode ser conversar sobre poesia em público: já um mal educado me cutucou com o cotovelo achando que as palavras sarcásticas há pouco ditas são minhas... quem dera, são do grande poeta, que não está aqui para levar cotoveladas de gente fanática e ruim de verso e mais ainda de riso.

Agora, que o poeta está a afirmar ser o Maestro um mal regente, ah, isso sou eu quem digo, pois a lógica elementar permite, pelo elementar mecanismo dedutivo: tivera Ele acertado o movimento final, o Allegro Vivace – não o inicial, o Fiat, pois este, Andante, acertou em cheio – não haveria necessidade dos Dez Mandamentos, insinuados no versos da estrofe aí de cima.

Bem, Adê, levei outra cotovelada, já não pelo que disse o poeta, mas agora pelo que disse eu. Não sei se contribui com suas dúvidas, que, espero, só tenham aumentado com este meu artigo, santo em ironia e dolorido nas costelas, às quais talvez uma falte, a não ser que Adão não seja mesmo mãe de Eva, do que sempre desconfiei por princípio filosófico cético, que se bem não faz, nunca soube que mal fizesse. De todo modo, não sou a pessoa mais bem informada do mundo.

FONTE: Vinicius de Moraes. Antologia Poética. Companhia das Letras, 2009.





quinta-feira, 5 de maio de 2011

Trevas no paraíso, de Luiz Fernando Emediato

Quem deseja mergulhar de cabeça, não sem risco de arrebentá-la, no fundo duro da década de 70, que vá imediatamente à livraria mais próxima, que pode estar a um clic do mouse, com o perdão pelo trocadilho infame com o nome do autor, e adquira Trevas no paraíso – Histórias de amor e guerra nos anos de chumbo, de Luiz Fernando Emediato.

Nas páginas desse volume estão a violência do aparato policial do Estado ditatorial e a loucura dos jovens que, em busca de uma saída a qualquer custo para o sufoco da clausura política e moral imposta por generais, e reproduzida na família por pais-patrões, foram fundo ou na resistência armada ao regime ou no “sexo, drogas e rock’nd roll”.

O peso daqueles tempos difíceis durante o qual, um a um, líderes da oposição armada ou não foram caíndo nas malhas dos Doi-Codi, permeia cada palavra das histórias desse volume que, no entanto, exala liberdade, seja pela linguagem inusitada, às vezes diversionista em razão da necessidade de driblar a burra mas truculenta censura, seja pelo caráter das experiêncas representadas, sempre no limite da emoção, da comoção e da vontade de explodir pelos ares o “Reinado de Artaroth”, espécie de deus cruel da gerra, cuja soberania violenta toda beleza da cidade de Mondoro.

O Brasil esmagado pelas botinas dos generais e pela "Marcha da Famlia com Deus etc." está todo aí, acrescido da engenhosidade de um escritor moço, que entre 1973 e 1979 empapuçou-se de vencer prêmios literários e depois mandou a literatura à merda, com todos os prêmio juntos, bem ao estilo Pasquim de ser.

O trabalho de Luiz Ruffato, organizador e apresentador do livro, faz chegar ao leitor o olor fresco e vivo dessas páginas indignadas, sardônicas e às vezes amargamente hilárias, que remetem em muitos e excelentes momentos ao melhor de Bukowski.

Na denúncia artisticamente formulada ao modo de colagem, até discurso de palamentar opositor da ditadura serve para romper o silêncio imposto pelos coturnos, pela censura e pela perseguição.

Viajar pelas páginas de um então Luiz Fernando Emediato de cabelos encaracolados no reinado de Artaroth é entrar de sola na corda bamba que Aldir Blanc e João Bosco esticaram para Elis Regina trilhar com a voz limpa de canário fugido da gaiola.

Quem topa?

FONTE: Trevas no paraíso - Histórias de amor e guerra nos anos de chumbo. Org. e Apres. Luiz Ruffato. São Paulo, Geração Editorial, 2004.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

O corvo, de Allan Poe CENSURADO



Quando da morte de Peter Sellers, em 1980, um jornalão de São Paulo estampou sua foto humoristicamente séria sobre uma frase em letra garrafais a ele atribuída:

"Pobre de quem acredita que no mundo há um grama de seriedade.

Acometido pelo espírito (para os espíritas), ou do exemplo (para os materialistas) do grande ator cínico, antes de inglês, decidi ingressar em minha fase zen. Isso mesmo, chega de chorar o Ferreira derramado, até porque só o Ferreira passado movia-se contra moinhos. O atual vive em redemoinhos.

Caros telespectadores e radiouvientes, estou zen. Bem-vindos à tenda do OH! GRANDIOSO FÁ! Para provar que superei minha fase anterior, séria, de óculos, gravata e em fundo branco e preto, mudo de assunto. O assunto de hoje é a censura.

Viram como estou humorado: disse que ía mudar o tema, mas não mudei. Isso deve produzir algum efeito humorístico, segundo os estudos feitos pela USP sobre o assunto. Em breve um pesquisador da FFLCH dessa séria instituição deve procurar quem me ouve agora ao vivo e em cores para medir o índice de riso provocado por essa artimanha da linguagem.

Se não riram antes, rirão agora da história que vou contar, baseada em fatos verídicos. Os nomes das instituições e das pessoas serão preservados para não expô-las à galhofa, muito embora ela, a galhofa, derive de ações e patacoadas dos mesmos aqui protegidos pelo segredo jornalístico.

Participei ano passado da banca de seleção de obras literárias para a Secretaria de Estado da Educação de São Silvestre. Foi um trabalho bacana, em que pesem duas figuras de pastelão de filme mudo que puseram lá para melar com chantily de torta o trabalho da banca selecionadora.

Atiçadas diretamente pelo então secretário Fulano de Tal Apegado à Torta, essas duas persongens, cujos nomes fictícios são Goseli e Tara, saídas com certeza de um filme dos Irmãos Marx, deram asas a seus delírios hipocondríacos.

Quem assitiu à minha postagem anterior está por dentro do assunto. Quem não leu, então que leia, ora essa! Continuando o filme de pastelão comandado pelo secretário Groucho Atirador de Tortas, Goseli e Tara saíram caçando livros com suas vassouras (digo, tesouras, vejam o que é o ato falho) voadoras. Do seu gabinete, o Groucho sem graça atiçava: "Vai, fundo, meninas com a tesouras".

Além de Nelson Rodrigues, Plínio Marcos, Ferreira Gullar antes da crise de consciência, Vinicius de Moraes, entre muitos outros, para elas, "imoraes", um veto de espetacular candura causou assombro - porém depois deliciosas gargalhadas entre os membros da banca do certame (membro, essa palavra insidiosa de ser prounciada nos corredores da Secretaria da Educação de São Silvestre City).

O diálogo é  quase inventado, mas é quase esse, tirando algumas quase vírgulas. Tara, olhos arregalados, exofitálmicos, alterada, falando e cuspindo ao mesmo tempo, atirava sua torta, enquanto sua parceira de vassoura voadora, digo, tesoura (vejam o que é o ato falho), Goseli Goselina, se escondia atrás do livro candidato a apara de papel:

Tara Equestre: Esse livro não pode ser enviado aos alunos da rede pública. É pornográfico.

Séria Indignalda (titular da banca): Qual o problema desse livro?

Tara Equestre: Não está vendo? Está na cara!

 Séria Indignalda: Como assim, na cara?

 Tara Equestre: Ora, esse Allan Poe dos quadrinhos tem um pênis na cara!

Séria Indignalda: Ora, você está surtada, sua louca!

OH! Grandioso Fá: Ora, cada um vê o que quer na cara de quem quiser. Já que falei em ver, cara Tara, viu quem traduziu esse livro?

Tara Equestre: Não!

OH! Grandioso Fá: Ora, foi o Machado de Assis! Também está na cara, ou melhor na capa. Então você fica de olho no nariz avantajado do personagem e esquece do texto? Não é qualquer textículo não, minha cara Tara, é um baita textão clássico e glandioso! (vejam agora o que é um ato fálico com justa motivação).  Mas que bela atiradora de tortas está me saindo, cara Tara!

Goseli Goselina: Ora, veja bem, com um pênis desse tamanho no cara do leitor...

Mara Tara: Do leitor, não, colega, do Allan Poe.

Fábio Lobo (outro titular da banca): Vocês vão censurar um livro por causa de um delírio proveniente de recalque sexual e... e... (o coitado até gaguejou) surto psicótico?

Tara Esquestre e Goseli Goselina (em coro ensaiado lá no gabinete do secretário das tortas): Ah, é, não é? Se é assim, agora é que vamos para as cabeças mesmo. Tá censurado, se insistirem, melamos o processo.

Séria Indignalda: Aí, me segura que vou ter um troço.

Outros dois membros da banca, até ali só ouvindoOH! Grandioso Fá, você nos convida para um filme de pastelão, oras bolas! Nossa simpatia por sua titulação da USP e pelos parcos larjans que vão nos pagar a... a... (os caras também engasgaram) assim periclita, bacana!

Outros titulares até ali pasmos sem entender patavinas: OHHHHHHHHHHHHHHH!

OH! Grandioso FÁ (entrando de sola, mas bem zen): Calma, gente, é só um surtinho que vem lá das altas esferas, para não falar bolas, o que soaria indecente em conformidade com o delírio peniano. É só um surtinhozinho, já já passa... Vamos abrir as janelas e tomar um ar que dessufoca...

Séria Indignalda: OH! Grandioso Fá, não estudei para tamanha provação. Nunca imaginei nem durante a ditatura mais cruel ceder ouvidos a tanta patacoada... Essas duas que vão fazer psicoterapia, vão de retro, discípulas de Torquemada! Arre! Ainda não desisti de ter um troço imediatamente não!

Tenho que me curvar às evidências: o surtinho não passou coisa nenhuma. E o diagnóstico  do furibundo acometimento abunda ainda no insuspeito órgão da constitucionalissimamente São Silvestre.

Telespectadores e radiouvintes, foi um sufoco. Vocês não imaginam o que é a gente se ver  subitamente no meio do fogo cruzado de um filme de pastelão. Elas duas lá, mandando ver nas tortas e o restante da banca só se desviando para escapar do chantily azedo que o secretário Preparador de Tortas precariamente cozidas.

Resumo da ópera bufa, em volume alto para todo mundo ouvir:

O CORVO, DE ALLAN POE, COM TRADUÇÃO DE MACHADO DE ASSIS, EM QUADRINHOS, FOI CENSURADO PORQUE DUAS... DUAS... DUAS... (gente, até engasguei) SAÍDAS DE UM FILME DO GROUCHO MARX FORAM POSTAS NA BANCA PELO SECRETÁRIO PÂNDEGO PARA ARREMESSAR TORTAS LOUCAS!

Telespectadores e radiouvintes, o volume agora retorna ao normal, bem zen, como prometi.

A ilustração da discórdia está no alto deste artigo. Deem uma boa olhada nela e no órgão nela supostamente implantado pelo excelente ilustrador Luciano Irrthum. Comparem agora com órgão olfativo da foto do poeta norte-americano a seguir:



Que acham? É para rir ou para chorar? Sei lá. Sabe, gente é tão difícil ser zen...

Encerram-se neste momento as tramissões transcedentais da tenda meditativa do OH! Grandioso FÁ.



LANÇAMENTO
Era uma vez no meu Bairro
ZONA NORTE – Nova Edição
ZONA LESTE – Inédito
Dia 18 de outubro de 2011
19:30h
Livraria do Espaço Unibanco de Cinema da Rua Augusta
SÃO PAULO - SP